O Estado de São Paulo
Nesta altura dos acontecimentos, segundo a previsão de quem concebeu a
transformação do País e de um sem-número de suas principais cidades em palco de
um evento global como a Copa do Mundo, o clima psicossocial - para usar um termo
de tristes tempos, que têm deixado sua marca retórica até mesmo nos discursos
presidenciais - deveria ser de festa e celebração.
Uma grande corrente pra
frente coroaria uma década, ou pouco mais, de êxitos sociais retumbantes e, como
decorrência, manteria junto à bandeira do escanteio uma oposição à míngua de
propostas e lideranças: uma oposição carcomida, sitiada num gueto "neoliberal",
incapaz de compreender um tempo de revolução social, de mobilidade e gestação de
novas classes médias, de prosperidade e expansão do consumo privado.
Não faltou quem insinuasse a perenidade da nova ordem ou a projetasse até os
fastos de 2022, quando, simbolicamente, o País se daria conta de que sua face
cruel e excludente, velha de 500 anos, teria ficado perdida para sempre em algum
espelho do passado.
A poucas semanas da Copa, porém, todas essas fantasias
parecem caducas. Se a sorte da pátria de chuteiras está nos pés de Neymar e
companhia, a quem só se pode desejar o êxito das magistrais gerações anteriores
de Garrincha, Pelé ou Gerson, há laivos de imprevisto maracanazo na visão que
temos de nós mesmos, como sociedade e comunidade política, e na visão que
projetamos para os outros, a tal "imagem do Brasil no exterior", para recorrer
novamente ao léxico de antanho.
Alguma coisa deu errado na receita da celebração: eis-nos às voltas com o
renitente complexo de vira-latas, de rodriguiana memória, chamados a encarar as
duras realidades de uma "sociedade incivil".
Nesta última, que constitui a trama
concreta do cotidiano de milhões de (sub)cidadãos, o que se eterniza é, antes, a
precariedade dos serviços públicos e a improvisação das políticas, remendadas
por "projetos de impacto", a exemplo da importação de médicos ou paramédicos,
como se nessa dimensão - serviços públicos e políticas sociais - não estivesse
em jogo um aspecto decisivo da luta hegemônica que deveria ser a preocupação
essencial de uma esquerda com vocação dirigente, à moda "ocidental", sem flertes
com as "democracias autoritárias" que nos rodeiam.
Ou alguém duvida de que um
sistema público de saúde com gestão modelar modificaria em sentido luminoso o
modo de vida dos brasileiros, com ampla repercussão na sociabilidade e mesmo na
elevação da renda real?
Em vez da luta hegemônica, temos uma política partidária frequentemente
mesquinha e permeada de estéril conflituosidade. O grande partido
social-democrata, entre nós, dividiu-se em metades inconciliáveis por toda uma
época histórica que podemos datar da Constituição de 1988; e a reconciliação das
duas metades nem sequer está à vista.
O primeiro ramo da social-democracia, que de todo modo nos legou o controle
do processo inflacionário ainda no governo "peemedebista" de Itamar Franco,
operou certamente nas condições de crise do nacional-desenvolvimentismo e de
ajuste à impetuosa globalização dos anos 1990, o que teria implicado, em
qualquer circunstância, reformas favoráveis ao mercado. Mas, exceção feita a um
ou outro de seus expoentes, jamais se penitenciou da confiança desmedida nos
mecanismos de mercado que arrastou os social-democratas da terceira via, como o
reconheceram Bill Clinton e Massimo D'Alema.
Fundamentalmente, comportou-se como uma cabeça sem corpo, um conjunto de
personalidades respeitáveis que não logrou lançar raízes e se articular
capilarmente com a sociedade, assim desatendendo a um requisito essencial da
política de massas, na qual os partidos são "a democracia que se organiza".
A
húbris - a desmedida - se revelaria ainda na intenção anunciada de permanecer 20
anos à frente do governo, para reformar o Brasil, e na desastrada emenda da
reeleição, implantada, ainda por cima, sem os cuidados que levaram a democracia
norte-americana a limitar mandatos presidenciais no pós-guerra, mesmo
considerando a importância histórica do reformismo rooseveltiano.
Corpo sem cabeça, ou com uma cabeça majoritariamente atrasada, não obstante o
trabalho intelectual que cercou o seu nascimento, é como muitas vezes se
comporta o segundo ramo da social-democracia. Partido originalmente de massas,
com forte enraizamento sindical e laços "orgânicos" com a intelligentsia, que
lhe deu uma teoria do Brasil classista e antipopulista, esse ramo conhece o
descomedimento de forma inversa e simétrica ao primeiro.
Suas ações à frente do
Estado parecem reciclar vetusto lema revolucionarista: "Temos o governo, ainda
não temos o poder". Mas a ocupação do poder não tem - historicamente não pode
ter - o sentido de outrora, o da construção de um novo modo de produção e da
"transição para o socialismo". Por isso se estiola em acordos sem programa
mediante os quais, paradoxalmente, se legitima toda a política patrimonialista,
desde que as armas estejam apontadas contra a primeira fração - "neoliberal" -
do grande partido social-democrata que não temos.
O travo amargo de maracanazo terá origem nessa política manca, que se reitera
a cada rodada eleitoral e afeta violentamente a qualidade do discurso público,
alimentando o fanatismo, o sebastianismo e vícios correlatos de secular memória.
Não há estratégias de aggiornamento econômico nem de inclusão social que alterem
este sentimento de derrota.
Até que progredimos um pouquinho, como dizia o poeta da Pauliceia Desvairada:
afinal, progredir também é uma fatalidade. Mais problemático é saber se temos
uma cidadania vibrante, livre de tutela, capaz de dar mais do que o consenso
passivo na hora da bonança ou de explodir em fúria na hora inevitável das
dificuldades.
*
TRADUTOR E ENSAÍSTA, É UM DOS ORGANIZADORES DAS 'OBRAS' DE
GRAMSCI NO BRASIL