Após 25 anos sob a administração da CCR, rodovia vai ser relicitada e terá inovações como o ‘free flow’ e Wi-Fi em toda sua extensão; tudo isso com o desafio de reduzir a tarifa em 20%
Ao longo de 70 anos, a Rodovia Presidente Dutra (BR-116), que liga São Paulo ao Rio de Janeiro, já teve vários títulos. Foi considerada a estrada mais moderna do Brasil nos anos 1950, ganhou o título de “rodovia da morte” na década de 1980 e agora quer ser a mais tecnológica do País. A exemplo da época da inauguração, em 1951, quando foi construída com novas técnicas de engenharia e equipamentos de última geração, a rodovia será pioneira na implementação de algumas inovações, como o “free flow” (sistema de cobrança sem praça de pedágio), programa de fidelidade para quem mais usar a estrada e Wi-Fi em toda a sua extensão. O desafio será fazer tudo isso e reduzir em 20% a tarifa de pedágio.
As inovações foram incluídas no edital de relicitação da Dutra, cujo leilão vai ocorrer nesta sexta-feira, 29. O Estadão apurou que apenas Ecorodovias e CCR apresentaram propostas para participar da disputa. Especialistas esperavam mais investidores no leilão pela dimensão e potencial do projeto. Responsável pela movimentação de quase metade do Produto Interno Bruto (PIB) nacional, a estrada é considerada a “joia da coroa” nas concessões rodoviárias por causa do tráfego e por ligar duas das regiões mais ricas do Brasil. Além disso, corta o importante polo industrial do Vale do Paraíba.
Atualmente, a estrada é administrada pelo grupo CCR, que assumiu a concessão em março de 1996. Naquela época, a Dutra estava sucateada pela falta de investimentos e o número de mortos em acidentes era da ordem de 500 pessoas por ano. Nesses 25 anos, a rodovia teve muitos avanços na infraestrutura, com inúmeras obras de pistas, viadutos e pontes.
Mas, aos poucos, começou a enfrentar um estrangulamento das vias, sobretudo nas regiões metropolitanas. Seja em São Paulo ou no Rio de Janeiro, a Dutra virou quase uma avenida, com intenso tráfego durante todo o dia, na chegada das cidades. Só no ano passado, 120 milhões de veículos passaram pela BR-116, cujo pedágio varia entre R$ 3,50 e R$ 14,20.
Nas regiões metropolitanas, Dutra virou uma grande avenida,
TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO
O Ministério da Infraestrutura quer aproveitar o leilão da segunda geração de concessões (a primeira foi na década de 1990) para eliminar esses gargalos e criar uma estrada modelo para o restante do País. Algumas iniciativas ainda serão um projeto-piloto, como a instalação do free flow. O sistema, bastante disseminado nos Estados Unidos e na Europa, terá sua estreia no Brasil num trecho entre Guarulhos e Arujá (SP).
A cobrança do pedágio será feita pela leitura de tags ou pela placa do carro. A cada entrada e saída, haverá um pórtico com câmeras instaladas para detectar os veículos e calcular a tarifa pela quilometragem rodada. No caso de leitura pela placa, o usuário receberá o boleto para pagamento em casa, como ocorre com as multas.
“O desafio será entender qual o nível de inadimplência nesse sistema, uma vez que 34% dos brasileiros estão com o licenciamento de veículo atrasado”, diz a secretária do Ministério de Infraestrutura, Natália Marcassa. Segundo ela, se tudo der certo, há expectativa de ampliar o sistema para toda a rodovia e, no futuro, para o País inteiro.
“Desafio será entender qual o nível de inadimplência haverá no sistema de free flow, uma vez que 34% dos brasileiros estão com o licenciamento de veículo atrasado”
Outra novidade será o desconto de usuário frequente, uma espécie de programa de fidelidade que reduz a tarifa para quem mais usar a rodovia. Mas, nesse caso, apenas quem tiver tag terá os descontos, que podem reduzir em até 25% o valor total a pagar no fim do mês. O programa será válido apenas para veículos de passeio e não inclui caminhões.
Inovações ligadas à segurança da estrada também exigirão investimentos por parte do novo concessionário, diz Natália. No quinto ano de concessão, por exemplo, a Dutra terá de alcançar a classificação cinco estrelas em nível de segurança. Hoje ela tem segmentos com duas e três estrelas, segundo o Ministério de Infraestrutura.
De acordo com o edital de licitação, a rodovia deverá adotar a metodologia do International Road Assessment Programme (iRap), que tem o objetivo de reduzir óbitos e lesões graves. Só em 2020, 141 pessoas morreram na rodovia.
Para chegar ao alto nível de qualidade, ajustes e correções terão de ser feitos na estrada, que ganhará iluminação de led em toda sua extensão. Além disso, as vias terão 520 câmeras de monitoramento e 1.282 para Detecção Automática de Acidentes (Dai) – uma a cada 300 metros.
CONCESSÃO PARA GENTE GRANDE
No total, o novo concessionário terá de investir quase R$ 15 bilhões para deixar a rodovia nos moldes definidos no contrato de concessão. “Com esse nível de investimento e o número de obrigações, essa concessão não é para amador. Tem de ser gente grande”, afirma o presidente da Associação Brasileira de Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib), Venilton Tadini.
Ele destaca que uma das principais obras que terá de ser tirada do papel será a duplicação de 16 km na Serra das Araras, uma área sensível do ponto de vista ambiental e complexa em termos de engenharia. Só essa obra, que já tem licenciamento ambiental, custará R$ 1,2 bilhão. O vencedor do leilão terá de construir uma nova pista de subida, com viadutos e um túnel, além de adequar a pista atual para descida. Serão quatro faixas em cada sentido.
Na avaliação de Natália, no entanto, um dos pontos mais importantes são as melhorias nas regiões metropolitanas, que hoje representam o maior gargalo da BR-116. Em São Paulo, cerca de 400 mil veículos circulam diariamente pela Dutra, sendo 85% de veículos leves de curta distância. Segundo a Confederação Nacional do Transporte (CNT), essas são as marginais mais congestionadas do País. Em média, o usuário gasta de 40 a 70 minutos para percorrer um trecho de 12 km entre Guarulhos e São Paulo, no horário de pico.
Estudos feitos na região mostram que, para devolver a fluidez nesse trecho, será necessário construir novas marginais, seis alças de acesso, faixas reversíveis e uma pista expressa. Essas mudanças vão custar R$ 1,4 bilhão e devem exigir modernas soluções de engenharia. Isso porque as áreas metropolitanas são altamente urbanizadas nas marginais e têm pouco espaço de manobra.
Apesar das mudanças e inovações, Natália diz que as tarifas de pedágio terão redução de 20%, mas alguns locais não poderão ter mudanças drásticas para não haver desequilíbrio entre as concessões. Em São Paulo, por exemplo, Dutra e Ayrton Senna são concorrentes. Uma redução muito grande numa delas pode provocar uma migração de tráfego.
Além dos 364 km da Dutra, o vencedor do leilão também será responsável por 271 km entre a cidade do Rio de Janeiro e Ubatuba, no litoral norte de São Paulo. A rodovia também exigirá uma série de obras de duplicação e túneis na sua extensão.
Como será a disputa pela rodovia
Pelas regras do edital de licitação, o leilão será híbrido. O diretor-geral da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), Rafael Vitale, explica que a disputa será pela menor tarifa de pedágio, mas com limite de 15% no deságio. Se mais de um concorrente chegar nesse patamar de desconto, o leilão irá para ofertas de outorgas, sem limite.
Do valor arrecadado no leilão, 50% irão para os cofres do Tesouro Nacional e 50% ficarão numa conta vinculada, administrada pela agência. Esse “fundo” será usado como mecanismo de proteção cambial, desconto de usuário frequente e para revisões tarifárias ordinárias e extraordinárias, se houver necessidade. “Essa é uma grande inovação. Antes, todo o dinheiro ia para o Tesouro. Agora servirá como um colchão para qualquer intervenção adicional e reequilíbrio ao longo do contrato”, diz Vitale.
O modelo híbrido já foi testado no início do ano com a BR-153/144/080, entre Tocantins e Goiás. O consórcio formado por Ecorodovias e GLP venceu o certame com oferta de R$ 117 milhões. A mudança na estrutura dos leilões está associada aos problemas enfrentados no passado que levaram ao descumprimento do contrato de concessão, seja pela tarifa muito baixa ou por outorga elevada.
Era manhã do dia 19 de janeiro de 1951, quando o então presidente General Eurico Gaspar Dutra inaugurou a BR-2, rodovia que ligava Rio e São Paulo. A estrada não estava totalmente pronta, com trechos ainda em terra batida, mas já era considerada a mais moderna do País.
Inaugurada em 1951, Dutra ainda estava inacabada, com pistas em terra batida ACERVO/ESTADÃO
A rodovia foi construída com modernas técnicas de engenharia e equipamentos de última geração, importados exclusivamente para a obra. O projeto, que mais tarde ganharia o nome do então presidente da República, Eurico Gaspar Dutra, teve várias intervenções e superação de obstáculos naturais que reduziram a distância rodoviária entre as duas capitais em 111 km comparado ao traçado de 1928.
Com as mudanças, o tempo de viagem que era de mais de 12 horas caiu para 6 horas. A construção da rodovia envolveu 35 empreiteiras, milhares de trabalhadores e oito mil toneladas de asfalto.
Sem novos investidores, disputa ficará entre empresas tradicionais do setor de concessões
Apesar de ser considerada a joia da coroa nas concessões rodoviárias, apenas CCR e Ecorodovias apresentaram propostas para disputar o leilão. O mercado não esperava a vinda de novos investidores, mas contava com a participação daqueles que já estavam aqui, como a canadense Brookfield e a espanhola Abertis, sócias da Arteris. Outro que desistiu foi a gestora Pátria. “É um ativo muito atraente e poderia ter a presença de investidores mais diversificados”, diz o sócio da consultoria Inter.B Cláudio Frischtak.
Alguns especialistas avaliam que não houve um esforço muito grande por parte do governo para atrair novos investidores para essa disputa, como a realização de mais road shows (apresentação do projeto a investidores internacionais). Além disso, o tempo de 60 dias para se preparar para o leilão foi considerado curto. “Um investidor internacional, como fundos que ainda não estão aqui, precisa de mais tempo para avaliar todos os detalhes do projeto. São muitas novidades incluídas no processo”, diz o sócio da consultoria Vallya João Pedro Cortez.
Com investimentos de quase R$ 15 bilhões e R$ 10 bilhões de custos operacionais, os números também acabaram selecionando os participantes. Não é qualquer empresa que tem fôlego financeiro para tocar um projeto dessa magnitude. “Se considerar que a Cedae (empresa de saneamento do Rio) foi licitada em lotes, a Dutra é a maior concessão do País hoje. É a joia da coroa em termos de receita e tráfego”, diz Caio Loureiro, sócio do escritório Cascione, Pulino, Boulos Advogados.
Segundo ele, a concessão envolve importantes desafios de engenharia, como a duplicação da Serra das Araras e de trechos da BR-101, na Serra do Mar, região de mata atlântica. “A parte tecnológica é a que menos preocupa, pois temos empresas nacionais com ferramentas para oferecer e também pode ser importada alguma solução facilmente.”
Nesse cenário, a CCR, atual concessionária da rodovia, é vista como a favorita para continuar com a concessão da Dutra por ter acesso a todas as informações com mais detalhes que os concorrentes, afinal ela administra a estrada há 25 anos. Mas, da mesma forma que conhece os pontos fortes da rodovia, também conhece as desvantagens, que outro concorrente não entende e pode subestimar numa oferta, diz Renato Sucupira, presidente da BF Capital.
Hoje a Dutra representa 13% das receitas totais do grupo CCR. No ano passado, a rodovia faturou R$ 1,3 bilhão com as tarifas de pedágio. Em 2015, o grupo perdeu a relicitação da Ponte Rio-Niterói para a Ecorodovias.
René Pereira, O Estado de São Paulo
Renée Pereira
Renée Pereira