sábado, 2 de outubro de 2021

Steve Jobs seria cancelado em 2021?

Temperamental e colecionador de episódios controversos, o pai do iPhone seria um forte candidato a ‘culpado’ no tribunal das redes sociais





Nesta terça, 5, a morte de Steve Jobs, fundador da Apple, completa 10 anos. Considerado um gênio por muitos, o pai do iPhone era uma figura de extremos: por um lado, sua capacidade criativa causou grandes saltos tecnológicos. Por outro, sua personalidade tosca costumava machucar pessoas ao seu redor. Ele era obcecado pelos detalhes de suas criações, como se fosse um artista, mas chegava a mentir, a blefar ou a ser abusivo com funcionários, amigos e parentes para conseguir as coisas da maneira que queria.

Vítima de um câncer no pâncreas aos 55 anos, Jobs não testemunhou um desdobramento da popularização dos smartphones na última década: a cultura do cancelamento nas redes sociais. Mas, com tantas características polarizadoras e um contêiner de histórias pessoais e profissionais pesadas, ele seria um forte candidato a ser cancelado nos dias atuais.

Temperamental, ele costumava se justificar da seguinte maneira: “Eu sou assim.” Mas não era só a língua afiada que poderia tornar Jobs um alvo dos tribunais da internet. Ele rejeitou publicamente a filha, afastou a Apple de questões políticas e sociais, minimizou condições trabalhistas na China e fez ameaças e acusações a rivais como Microsoft e Google.

Tentar imaginar como Jobs seria recebido nas redes sociais em 2021 é um exercício que ajuda a contar a história de quem ele foi e das transformações da Apple e das redes sociais na última década. Por ser direto e gostar do embate, é possível que o chefão da Apple não recuasse diante das críticas, um efeito comum do cancelamento das redes.

“Steve Jobs seria cancelado em 2021. E acho que ele adoraria isso”, afirma Fábio Gandour, que liderou por quase dez anos o laboratório de pesquisas da IBM no Brasil. “Ser cancelado significaria um respeito ao tempo dele, que seria usado para outras coisas”, diz o pesquisador, que costuma lembrar de um encontro acidental que teve, no começo dos anos 2000, com Jobs no banheiro da Apple, na Califórnia (“foi impossível um aperto de mãos”, lembra, dando risadas).

Ignorar a opinião alheia talvez fosse um dos pontos fortes do executivo, que, ao contrário de muitos colegas em empresas rivais, orgulhava-se de não aplicar pesquisas de mercado para entender o que queriam os clientes. Uma de suas frases mais famosas é: “Os consumidores não sabem o que querem até que mostremos a eles.”

“Steve Jobs seria cancelado em 2021. E acho que ele adoraria isso”

Fábio Gandour, cientista-chefe do laboratório de pesquisas da IBM no Brasil entre 2011 e 2018

Ser ignorante à opinião alheia poderia não fazer tanta diferença para Jobs em termos pessoais. Mas seus comportamentos poderiam reverberar na Apple, criada em 1976 por ele e pelo melhor amigo Steve Wozniak.

Para Carlos Affonso Souza, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS-Rio), da “porta da Apple para dentro”, o cancelamento poderia tornar os funcionários da empresa “muito mais vocais” quanto a abusos e práticas no ambiente de trabalho. “Por mais que comportamentos abusivos possam passar a impressão de mais produtividade, essa maneira de trabalhar não é a forma desejada”, diz.

Já da porta para fora, a figura de Jobs, tão conhecida quanto a da Apple, poderia ser fustigada pela opinião pública. “É de se esperar que, numa cultura do cancelamento, que explodiu muito depois do falecimento de Jobs, você também iria ter situações em que as pessoas poderiam apontar que é para boicotar o produto da empresa”, explica Souza.

NOVOS TEMPOS

cultura do cancelamento põe em questão as pessoas por falas ou comportamentos tomados como desrespeitosos, controversos ou passíveis de penalidades, como em casos de assédio moral ou sexual. O professor Fábio Mariano Borges, da ESPM, lembra que o fenômeno coloca um novo peso sobre a reputação de figuras públicas para além do trabalho.

“Antes, entrar em uma empresa e cumprir metas já bastava. Mas hoje todos nós viramos marca. Somos todos CPF e CNPJ ao mesmo tempo”, explica. Do final da década de 1990 até sua morte, o executivo viu acontecer a fusão entre a própria vida pessoal e a profissional - ele já era o rosto da empresa antes que o tuiteiro médio passasse a se enxergar como representante da sua própria marca.

Nos tempos atuais, esse fenômeno tem consequências diferentes. Para o público atual das redes sociais, não bastam as apresentações espetaculares de produtos. Imaginar Steve Jobs em 2021 significa que a sua vida pessoal seria um fator de peso para que consumidores optassem por um iPhone. No caso do executivo, a “ficha corrida” era extensa.

Jobs dava de ombros para as denúncias de condições de trabalho na Foxconn, na ChinaREUTERS


Nos anos 1970, Jobs escondeu de Wozniak que ambos receberam um bônus financeiro da Atari, onde trabalharam até fundarem a Apple – Jobs pegou a grana toda para si. Nos anos 1980, ele costumava perguntar aos candidatos em entrevistas de emprego se eles eram virgens e se haviam tomado ácido, com o suposto objetivo de saber como possíveis funcionários reagiriam a situações desconcertantes. Ele também costumava estacionar a própria Mercedes (sem placa, diga-se) em vagas para pessoas com deficiência, hábito que ele manteve, pelo menos, até 2008.

O pior dos casos, porém, talvez tenha sido a demora em reconhecer a paternidade de sua primeira filha, Lisa, nascida em 1978, quando ele tinha 23 anos. À época, ele insinuava publicamente que Chrisann, sua namorada naquele período, poderia ter se relacionado com outros homens.

Dado o peso das redes sociais na imagem da Apple, Borges imagina que o executivo buscasse algum tipo de adaptação. “Steve Jobs era o espírito do tempo e sabia se adaptar muito facilmente. Hoje, ele estaria nas apresentações da Apple falando sobre diversidade, por exemplo”, diz. Uma pista disso é observar a guinada da Apple sob Tim Cook, sucessor de Jobs no posto de comando da empresa.

Nesses 10 anos, além de lançar um relógio inteligente e fones de ouvido sem fio, a Apple tornou-se porta-voz das minorias, defendendo em público o movimento Vidas Negras Importam, promovendo a igualdade de gênero e manifestando-se contra projetos de lei que minem a diversidade sexual. Na gestão anterior, esses assuntos não tomavam tempo das apresentações de Jobs.

ANIMAL EXTINTO

A postura controversa, combativa e temperamental parece ter sido extinta com a morte de Steve Jobs - pelo menos entre os líderes das principais companhias de tecnologia do mundo. Hoje, elas se blindam para evitar críticas. Um caso recente ilustra bem o impacto da vida pessoal dessas personalidades em suas empresas.


Steve Jobs não viveu para ver a cultura do cancelamento, ao contrário do antigo rival Bill GatesASA MATHAT ALLTHINGSDCOM


Até 2021, o contemporâneo (e rival na Microsoft) Bill Gates era o estereótipo do “bom velhinho”. Como se fosse um Papai Noel bilionário da tecnologia, ele circulava pelo mundo financiando estudos para desenvolver vacinas contra a covid e promovendo a agenda climática do Planeta.

Tudo isso veio abaixo com o divórcio de Melissa Gates após 27 anos, anunciado em maio passado. Vieram a público uma série de histórias, dando conta de casos extraconjugais e investidas sexuais contra trabalhadoras. Não só isso, ele também era amigo de Jeffrey Epstein, bilionário acusado por crimes sexuais, inclusive contra menores de idade, e morto na prisão antes de seu julgamento. Reverberou tanto que a própria dona do Windows buscou distância do seu ex-homem forte.

O atual presidente executivo da Microsoft, Satya Nadella, afirmou que a empresa reabriu investigações para apurar o relacionamento de Gates com a funcionária em busca de medidas que “satisfaçam a todos”. “A Microsoft de 2021 é muito diferente da Microsoft de 2000”, acrescentou.

“Um CEO que possa desagradar a governos ou confrontar determinados grupos na opinião pública pode colocar em risco a estratégia de negócio dessa companhia”

Carlos Affonso Souza, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS-Rio)

“Quando Jobs estava vivo, os holofotes sobre a indústria de tecnologia não estavam colocados da forma como estão hoje”, explica Souza, do ITS-Rio. Ele lembra que essas empresas, em especial as Big Techs, estão sob a mira de órgãos reguladores e econômicos. “Um CEO que possa desagradar a governos ou confrontar determinados grupos na opinião pública pode colocar em risco a estratégia de negócio dessa companhia.”

Steve Jobs não viu acontecer nem a cultura do cancelamento nem a pressão regulatória, é claro. Mas, ao final da vida, não escondia o passado e queria ser conhecido tanto pelos seus méritos quanto pelos deméritos.

Em entrevista ao jornalista americano Walter Isaacson, autor de sua mais conhecida biografia, Jobs disse: “Eu não tenho nenhum esqueleto no armário”. Resta saber se isso seria suficiente para o tribunal da internet. COLABOROU BRUNO ROMANI


As 5 maiores controvérsias de Steve Jobs



● Abandono da filha
Talvez o ponto mais baixo da trajetória pessoal de Steve Jobs seja o abandono de sua primeira filha, Lisa Nicole Brennan. O fundador da Apple demorou cerca de um ano para reconhecer a paternidade. Antes, insinuou publicamente que a mãe poderia ter engravidado de outros homens. Um exame de DNA confirmou a paternidade, mas ele continuou questionando o resultado. A negação chegou ao ponto em que ele dizia que o computador Lisa não era uma homenagem à primogênita, mas um acrônimo para “Local Integrated Software Architecture” (ou Arquitetura de Software Local Integrada, o que não significa nada). A reconciliação só ocorreu na parte final da vida dele.

● Chefe abusivo
Jobs era conhecido por humilhar os próprios funcionários ou executivos de empresas rivais. Era comum ouvir gritos e palavrões e ou ganhar um dedo do meio - tanto em reuniões quanto em conversas individuais. Ele reconhecia o problema, mas dizia: “É o meu jeito.”

● Condições de trabalho na China
A Foxconn, principal fabricante do iPhone na China, enfrentou uma crise de suicídio de funcionários em 2010 - no total, foram 13 mortes. O problema era atribuído à sobrecarga de trabalho durante o ano do lançamento do iPhone 4. Em vez de pressionar a parceira,  Jobs declarou: “A Foxconn teve suicídios e algumas tentativas, mas eles têm 400 mil pessoas lá. Existem restaurantes, cinemas, hospitais e piscinas. Para uma fábrica, é bem legal”.

● Longe de causas sociais
Na gestão de Jobs, a Apple nunca se posicionou sobre causas sociais ou temas políticos, permanecendo afastada do que era decidido em Washington. Quando realizava doações filantrópicas, o executivo mantinha sigilo, como forma de não envolver seu nome nas causas. O cenário mudou quando assumiu o sucessor Tim Cook, muito mais ativo em favor de minorias, diversidade e outros temas sociais.

● Acusação de roubo
Nos anos 1980, Steve Jobs acusou Bill Gates e a Microsoft de copiarem a interface gráfica do Macintosh (de 1984) para criar o Windows, de 1985. Mas Gates argumenta que, na verdade, a ideia foi roubada da Xerox, que, no final dos 1970, desenvolveu o primeiro sistema de interface gráfica, o PARC. Jobs assumiu o “roubo”, mas o rancor por Gates e a rivalidade com Microsoft permaneceram por décadas.


Guilherme Guerra, O Estado de São Paulo