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A possibilidade de um desastre ainda é remota, mas é bom pensar no futuro
Os mercados financeiros internacionais tomaram um baita susto com a crise da Evergrande, a segunda maior incorporadora imobiliária da China. O fato merece algumas reflexões. O que aconteceu? Quais são as possíveis repercussões no curto prazo sobre a economia mundial em um momento em que muitos países ainda sofrem com a destruição causada pela pandemia? Com desemprego, inflação e escassez de produtos já se enxerga uma desaceleração das atividades econômicas no país asiático. O que se pode prever para o futuro?
O proprietário de cerca de 80% das ações da Evergrande é Hui Ka Yan, detentor de uma fortuna avaliada em US$ 10,7 bilhões. Segundo a Forbes, é a 53a pessoa mais rica do mundo e a décima de seu país. Yan retrata bem o êxito de muitos empresários made in China: de origem humilde, é membro do comitê nacional do Partido Comunista, uma posição que equivale à de ministro.
Há poucos dias, a Evergrande se viu no epicentro de uma crise que levou vários analistas a compará-la com a do Lehman Brothers: seu passivo atingiu o valor incrível de US$ 300 bilhões — o equivalente a cerca de 2% do PIB chinês ou a todo o PIB do Chile. O que aumentou fortemente a aversão ao risco nos mercados e, consequentemente, trouxe incertezas quanto à possibilidade de um efeito dominó se espalhar por todo o planeta. Afinal, não se pode deixar de levar em conta que dez dentre as 15 maiores imobiliárias da China estão profundamente endividadas. Além disso, a expectativa hoje é que os bancos centrais devem subir as taxas de juros mundiais para fazer frente à inflação que se espalha pelo mundo. Portanto, se os preços dos imóveis caírem, a coisa vai ficar ainda mais feia para essas empresas. E, por tabela, para o mundo.
O temor, em princípio, tem certo sentido, uma vez que a possibilidade de um default (calote) — reconhecida pela própria companhia, que conta com grandes investidores internacionais — deixaria bancos, poupadores e investidores com as calças nas mãos, com dezenas de bilhões de dólares pendentes. Isso configuraria o que na teoria financeira chamamos de risco sistêmico. Nessa situação, a incapacidade de uma instituição em honrar seus compromissos provoca uma reação em cadeia, com os problemas de liquidez e de crédito estendendo-se pelos mercados mundiais, ameaçando a estabilidade do sistema financeiro como um todo. Esse risco, um velho conhecido nos mercados, é um problema essencialmente microeconômico, associado a uma ou poucas empresas ou a um setor. Costuma ser tanto mais forte quanto maior for a integração com o sistema financeiro nacional e mundial e maior for a extensão da sua cadeia de produção. É o caso de incorporadoras, bancos, petrolíferas, agroexportadoras e montadoras de veículos.
Não existe “economia socialista de mercado”
Mas o risco sistêmico, contudo, não é o que mais deve ser levado em consideração no momento. É pouco provável que ocorra uma catástrofe imediatamente, porque as autoridades chinesas certamente dispõem de um arsenal de medidas para espantar os urubus, tal como o governo americano na bolha de 2008 — porém, com muito mais instrumentos, dada a característica do regime político do país.
Entre essas armas podem constar, por exemplo, honrar diretamente os compromissos da empresa ou injetar liquidez na economia, como o banco central chinês fez na semana passada, quando somente em um dia despejou US$ 17 bilhões no sistema financeiro para “acalmar” os ânimos do mercado. Ou, ainda, simplesmente estatizar abertamente a empresa.
É importante frisar que os efeitos de providências desse tipo são transitórios e apenas darão alívio temporário, empurrando os problemas com a barriga para o futuro. O que importa é o outro tipo de risco, o sistemático, de longo prazo, que não tem relação direta com a maneira com que as empresas são administradas, porque é de natureza macroeconômica e institucional. Quando se trata da China, é aí que mora o problema, em razão do desenho de organização política, jurídica e econômica daquele país.
Quem ainda não ouviu a falsa narrativa de que a economia chinesa é um caso bem-sucedido de “socialismo de mercado” ou “economia socialista de mercado”? Ora, alguém que afirma algo desse tipo mostra que não sabe nem o que é socialismo e muito menos o que é economia de mercado. Sob o ponto de vista da lógica, a possibilidade de convivência entre ambos não existe. Os problemas de organização econômica da sociedade não se apresentam em termos contrários, mas contraditórios. Termos contrários admitem um termo intermediário: entre frio e quente, existe “morno”. Entre fechado e aberto existe “semiaberto”. Entre branco e preto, existe “cinza”, etc.
Quem dá todas as cartas, na política, na economia, nos costumes, no número de filho e em praticamente tudo, é o Partido Comunista
Mas o princípio lógico da exclusão dos terceiros mostra que, quando os termos são contraditórios, não existe uma terceira possibilidade, intermediária, entre eles: por exemplo, entre chover e não chover, entre frio e não frio e, da mesma forma, entre economia de mercado e economia controlada pelo Estado. A formulação metafísica desse princípio é que a única possibilidade intermediária entre ser e não ser, que são dois termos contraditórios, é ser e não ser ao mesmo tempo, maluquice que viola o princípio de não contradição.
Portanto, não existe no longo prazo uma terceira opção entre “economia de mercado” e “economia não de mercado”. O que importa é se o Estado controla a economia ou não; se os consumidores dirigem o uso dos recursos ou não. Se, enfim, existe economia de mercado ou não. Usar a narrativa da “economia socialista de mercado” para explicar o crescimento do PIB de um país comunista é atentar contra a lógica. Podem conviver durante algum tempo, mas fatalmente chegará o dia em que terá de se decidir entre um ou outro. “Socialismo de mercado” é fake!
O mercado é um processo de descoberta permanente
A verdade é que nunca existiu economia de mercado ou capitalismo de verdade na China. Quem dá todas as cartas, na política, na economia, nos costumes, no número de filho e em praticamente tudo, é o Partido Comunista. Talvez o leitor se pergunte a essa altura se o fato de existirem empresas privadas e grande abertura ao comércio exterior não contradiz a minha afirmativa. Sim, é verdade que propriedade privada e comércio exterior são condições necessárias para definir economias livres, mas estão longe de ser condições suficientes. E é fato que ambos, na China, são controlados, direta ou indiretamente, pelo partido único, o dono do país. Ou seja, propriedade privada e abertura, mas nem tanto…
Uma economia de livre mercado, mas que seja regida por comandos, ordens ou instruções emanadas do Estado é necessariamente um arranjo que padece de um claro conflito interno, que o condena de antemão ao fracasso no longo prazo. A caracterização de uma economia livre pressupõe o exercício livre do empreendedorismo. É uma atividade que se desenrola por escolhas voluntárias ao longo do tempo, em ambiente marcado pela insuficiência e pela dispersão de conhecimentos. E, portanto, sujeita a erros, tentativas e descobertas.
Nesse processo, a ética dos lucros é justificada pelo êxito de cada empresário, que, necessariamente, deve assumir todos os riscos inerentes ao processo de descoberta de oportunidades inexploradas: aquele que tiver êxito nesse processo satisfará melhor os desejos dos consumidores e receberá desses um prêmio, que se refletirá em ganhos, merecidos; aquele que falhar em atender à demanda dos consumidores será punido com prejuízos, também justos.
Não é esse o arcabouço chinês, que se caracteriza por empréstimos do governo a juros subsidiados para empresas selecionadas (exatamente como os “campeões nacionais” eleitos pelos governos petistas), pelas dívidas enormes assumidas por essas empresas e por pressões indiretas do Estado para que seus diretores se filiem ao partido que é dono do país. O empreendedorismo é um produto exclusivo da economia de mercado, que pressupõe liberdade econômica e política, ausentes no caso chinês.
O conflito acontece porque uma economia livre e competitiva deve obrigatoriamente ser suportada por um aparato jurídico-institucional baseado em normas de conduta — leis — gerais, impessoais e prospectivas, cujo objetivo maior seja assegurar os direitos individuais. Entre os quais o direito de cada empreendedor participar competitivamente, em igualdade de condições com os demais, do processo de descoberta permanente que é o mercado. Ora, como o paradigma legal naquele país são comandos e ordens criados de cima para baixo, pessoais, desiguais e inibidores, por definição, da competição, o choque é inevitável.
Mais cedo ou mais tarde, o que pode significar décadas, a insistência nesse ordenamento geral híbrido acarretará sua destruição. Com efeito, as normas jurídicas centralizadoras, calcadas quase que exclusivamente em decisões políticas, envenenarão a competição, interferirão no processo de mercado e comprometerão a liberdade econômica. Assim, um sistema desse tipo convergirá, ao longo do tempo, para o intervencionismo econômico pleno. Ao interferir-se, mediante a aplicação de comandos específicos, em uma economia de mercado, cria-se desordem e agride-se a justiça. O resultado é que a economia de mercado passa a ser ilusória, e os consumidores deixam de dirigir o processo de alocação de recursos.
O despertar da lua de mel
Há, então, uma inevitável convergência, no longo prazo, para uma economia dirigida. Um dos motivos é que a interferência do Estado nos fenômenos de mercado não só deixa de alcançar os objetivos desejados como provoca um estado de coisas que o próprio autor da intervenção considera pior do que pretendia alterar. Ao tentar corrigir os efeitos indesejados de uma intervenção, recorre a intervenções sucessivas cada vez maiores, o que acaba destruindo a economia de mercado e criando a sua antítese.
Logo, olhando para frente, em uma perspectiva para além do curto prazo, a China terá de optar entre ser uma sociedade livre, com liberdade política, econômica e de expressão para todos os cidadãos. Ou voltar ao passado de totalitarismo, com restrições a todas as liberdades. Quando, não se sabe.
A maioria das análises sobre o sucesso da economia chinesa nas últimas décadas geralmente enfatiza — corretamente — a abertura econômica, mas deixam de considerar a natureza dessa abertura, que pouco tem a ver com liberalismo. O que houve foi um comando para exportar, emitido nos anos 1960 pelos burocratas do PCC de Deng Xiaoping.
Essa missão foi cumprida mediante uma combinação entre pelo menos três políticas: 1) manter o iuane fortemente desvalorizado perante o dólar durante bastante tempo; 2) acumular compulsivamente reservas internacionais; 3) manter fortes subsídios às empresas exportadoras, mesmo em períodos em que a demanda se retraia. Em outras palavras, o comércio internacional da China não cresceu por ganhos naturais de produtividade econômica, ou seja, por serem os produtos chineses melhores e mais baratos. Mas sim por interferências políticas permanentes na economia, bem como por salários extremamente baixos (em outras palavras, de semiescravidão) em sua indústria, que os tornavam artificialmente mais baratos. Além disso, há que se considerar que o mercado interno não é pujante e que as empresas chinesas só se tornam grandes se possuírem ligações com o partido único.
A partir do governo Nixon, os Estados Unidos foram facilitando progressivamente a inclusão da China na economia mundial. Nos últimos dez anos, contudo, o crescimento chinês já tinha acendido um alerta, pela desconfiança natural associada ao excesso de intervenções promovidas por um governo ditatorial e pela insegurança jurídica e extremamente burocrática de fazer negócios com empresas chinesas. Adicionalmente, com o desenvolvimento da tecnologia da robotização, a vantagem comparativa associada aos baixíssimos salários já começava a perder força.
Mas a lua de mel do mundo do comércio exterior com a China só se reverteu a partir da reorientação das cadeias produtivas promovida com sucesso pelo presidente Donald Trump. Entretanto, sobreveio a pandemia, e, curiosamente, o único país com capacidade de produzir bens enquanto os trabalhadores do resto do mundo eram obrigados a ficar em casa foi a China. Com o choque do vírus, o mundo parece ter acordado da lua de mel e reagido, tanto que se está observando um fenômeno de saída de empresas estrangeiras do país e de expansão das negociações bilaterais entre outros países.
Por fim, quanto ao Brasil, em toda essa história, o melhor caminho a ser tomado é o do pragmatismo, sem olhar para ideologias. Se foi errada a decisão de transformar a China em nosso maior parceiro comercial, temos de levar em conta que, primeiro, esse erro não foi só nosso, pois foi compartilhado com praticamente todos os outros países. Segundo, que abandonar a parceria bruscamente seria um equívoco ainda maior. Reestruturações no âmbito do comércio internacional, como a busca de maior diversificação para reduzir riscos, sem dúvida são desejáveis em uma perspectiva de longo prazo. Vêm sendo buscadas por nosso governo, mas levam tempo para se concretizar.
O pragmatismo nos diz que “estamos presos em um curto prazo”, do qual no momento não podemos escapar: se a bolha explodir e a economia da China entrar em crise, ou simplesmente desacelerar, quem vai comprar nossos produtos? Para quem nosso agronegócio vai vender? O que será de nosso PIB? Mas a notícia boa é que a possibilidade de a China vir a quebrar, hoje, ainda é remota. Temos tempo para colocar mais ovos na cesta, mas não podemos dormir no ponto.
Ubiratan Jorge Iorio é economista, professor e escritor. @ubiratanjorgeiorio
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