No fim da primavera de 1933, uma das poucas chances de escapar à fome que ceifou quase 4 milhões de pessoas na Ucrânia comunista era trabalhar como “coveiro coletivo”. Tratava-se de equipes de coleta de corpos — e havia muito a ser feito — que recebiam pão e arenque de acordo com a quantidade de cadáveres recolhidos e enterrados em valas anônimas. Os relatos dos sobreviventes do período são de um impacto difícil de descrever. “Houve casos em que as pessoas foram enterradas ainda meio vivas. ‘Por misericórdia, deixe-me em paz. Não estou morto’, os cadáveres costumavam gritar. ‘Vá para o inferno! Você quer que a gente volte aqui amanhã’, era a resposta”, lê-se em um dos depoimentos. “A terra se mexia”, narra outra sobrevivente.
Esses e outros horrores que assolaram os ucranianos entre 1932 e 1933 não se deveram a tragédias naturais, a colheitas adversas ou a guerras. Quase 14% da população morreu vítima da “fome política”, resultado direto da coletivização forçada do campo promovida pelo ditador soviético Josef Stalin. Suas ações tinham a deliberada intenção de, pela fome, esmagar qualquer sentimento antissoviético entre a população ucraniana e provocaram o extermínio premeditado de vastas porções da classe camponesa.
Tal é a tese do terrivelmente brilhante A Fome Vermelha, da historiadora americana Anne Applebaum. Professora na The London School of Economics and Political Science e jornalista de prestígio, Anne escreve uma obra de fôlego sobre uma das grandes tragédias do século XX: o Holodomor, o genocídio pela fome posto em prática por Stalin. O próprio termo ucraniano para designar o horror que se abateu sobre a nação deriva das palavras “fome” (holod) e “extermínio” (mor), e foi desde sempre utilizado pelos sobreviventes para descrever aquele momento histórico.
Amplamente documentada, a apavorante narrativa estende-se das disputas pelo território da Ucrânia ainda no século XVIII às mais recentes crises naquele país, com a revolução de 2014, que derrubou um governo pró-Rússia, e a interferência militar russa na Crimeia. Essa abrangente investigação, contudo, concentra-se na consumação e nos desdobramentos da grande fome provocada por Stalin.
Os capítulos iniciais de A Fome Vermelha descrevem as dificuldades enfrentadas por essa conturbada nação antes mesmo do período stalinista, seja na fase da rebelião contra os soviéticos, em 1919, seja ao longo das enormes dificuldades da década de 20 (terríveis, mas incomparáveis ao que estava por vir). O livro documenta a escalada de opressão da Rússia comunista contra a Ucrânia. Foi o próprio Lenin, líder da Revolução de 1917, quem escreveu em 1922 que “agora, e apenas agora, que as pessoas estão sendo devoradas em áreas afetadas pela fome e centenas, se não milhares, de corpos jazem nas estradas, nós podemos (na verdade, devemos) buscar a remoção da propriedade da Igreja com a maior sofreguidão e impiedosa energia, e não hesitar em acabar com qualquer oposição”. A possibilidade de um poder ucraniano independente da Rússia soviética não poderia ser tolerada. Com Stalin como sucessor de Lenin, as coisas ficariam ainda piores para os ucranianos.
Desde o fim dos anos 20, Stalin passara a executar uma agressiva política de coletivização forçada do campo: toda e qualquer pequena propriedade familiar seria confiscada pelo poder soviético. O ditador comunista não escondia sua intenção quando, em 1928, declarou que o campo deveria sofrer para que a União Soviética se industrializasse. E o campo sofreu. Não apenas milhões de camponeses foram alijados de tudo o que tinham, como também aqueles que tinham mais — chamados de kulaks — foram alvo de deliberado extermínio. As colheitas desastrosas conduzidas pela coletivização resultaram em grave escassez de alimentos — e tudo o que havia deveria ser enviado a Moscou, que não só consumia, como ainda exportava grãos para ter moeda forte, matando milhões de camponeses no caminho. Pelotões comunistas promoviam buscas de todo e qualquer tipo de alimento nas casas, e uma onda generalizada de execuções e deportações teve início. Quase uma década antes de os nazistas ganharem fama por ações como as deportações massivas e o extermínio étnico, os comunistas inventaram-nas em solo ucraniano. A cada denúncia dos milhões que morriam de fome — e até praticavam canibalismo — Stalin dobrava a aposta na opressão dos ucranianos. O medo de perder aquele outrora rico território e a psicopatia que caracteriza essencialmente o stalinismo resultaram em um dos genocídios mais brutais de todos os tempos.
Enquanto milhões de ucranianos desceram ao inferno da fome, jornalistas e intelectuais ocidentais ocultavam, com entusiasmo, o que de fato viam. O correspondente do The New York Times em Moscou, Walter Duranty, levou o Prêmio Pulitzer por matérias elogiosas à coletivização stalinista — prática negacionista que segue viva na esquerda ainda hoje. Anne Applebaum, que já ganhou o mesmo prêmio por sua pesquisa sobre os campos de concentração comunistas — os gulags —, merecia outro por seu relato assombroso sobre o Holodomor.
Eduardo Wolf, Veja