Quinhentos quilos de uva são erguidos por um robô. Uma família faz o merendim, lanche típico sob os parreirais, nos moldes do hábito dos imigrantes italianos que chegaram à serra gaúcha a partir de 1875.
Uma mensagem por WhatsApp avisa um visitante que o vinho que ajudou elaborar um ano antes acaba de ser engarrafado. Com pés descalços, uvas são pisadas como no passado.
Tecnologia e tradição convivem nos vinhedos do Rio Grande do Sul, um setor que movimenta anualmente, em média, R$ 3 bilhões, segundo a Seapdr (Secretaria da Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural) do estado.
“O setor vitivinícola do Rio Grande do Sul representa 90% da produção nacional. O estado soma 750 vinícolas, e a vindima fomenta o turismo e engrandece o vinho produzido aqui”, afirma Covatti Filho, secretário da Seapdr.
De janeiro a março, milhares de turistas experimentam a vindima gaúcha, a colheita da uva. A época, porém, também é a mais aguardada pelos produtores.
Segundo a Seapdr, o estado tem pelo menos 15 mil produtores da fruta em atividade. Não raramente, os viticultores enfrentam intempéries climáticas. Na vindima, eles podem, literalmente, “colher os frutos” do trabalho.
Por isso, a atmosfera nesse período é de entusiasmo, com corais cantando em italiano, comida e bebida em abundância servidas para os turistas que passeiam nos vinhedos de cidades como Bento Gonçalves, Pinto Bandeira, Flores da Cunha e interior de Caxias do Sul.
“O ambiente é bastante festivo, bem alegre. Quem visita a região acaba aprendendo sobre a produção do vinho e passa a entender as dificuldades dos produtores ao longo do ano. Temos aqui uma vitivinicultura heroica. O turista passa a entender o porquê de tanta festa”, diz Gabrielle Signor Rodrigues, gerente comercial da Giordani Turismo.
Rodrigues calcula que, somente em Bento Gonçalves, pelo menos 330 mil turistas são esperados. Segundo a diretora, o consumo diário de um visitante na serra gaúcha é de cerca de R$ 434.
“Em Bento, os turistas costumam permanecer pelo menos dois dias. Isso deve movimentar cerca de R$ 286 milhões exclusivamente no município”, explica.
Colher a própria uva e fazer uma refeição entre os parreirais como os imigrantes italianos faziam acaba alterando a rotina das propriedades familiares. Os agricultores passam, então, a trabalhar
também no atendimento.
também no atendimento.
Erguer uma taça de vinho com a paisagem dos vales ao fundo rende bons registros fotográficos.
“As imagens são bem instagramáveis”, brinca Rodrigues sobre o aplicativo de compartilhamento fotos. Todavia, a diretora garante que a maioria dos turistas está realmente interessada em vivenciar a chamada “cultura do vinho”.
Parte dessa cultura envolve conhecimento técnico sobre a produção da bebida. Vinícolas como a Aurora, que recebeu 200 mil pessoas no ano passado, abrem suas portas para visitas guiadas gratuitas.
No tour da Aurora, os turistas caminham por passagens subterrâneas, conhecem artigos históricos da vinícola fundada em 1931 e degustam vinhos na Cave di Bacco.
É possível até se deparar com um dos dois robôs da Aurora em pleno trabalho. Eles se parecem com um braço dos gigantes "Transformers", robôs de ficção da franquia de cinema que leva o mesmo nome.
Os robôs da cooperativa erguem até 500 quilos de uva de uma única vez e facilitam o descarregamento da fruta para o processamento, explica Hermínio Ficagna, diretor-superintendente da Aurora.
“A robótica poupa a força física nessa etapa, que antes era feita manualmente. É uma atividade pesada, então essa tecnologia traz benefício para o campo”, diz Ficagna.
A Aurora faturou R$ 558 milhões no ano passado e representa cerca de 15% da safra de uva no estado para este ano.
A tecnologia também permite que um visitante que colheu uva na vindima receba atualizações sobre o processamento da sua fruta.
“Enviamos as informações por WhatsApp e email. Avisamos quando o vinho vai para a barrica, quando é engarrafado, e combinamos a entrega, feita normalmente um ano e meio depois”, afirma André Larentis, enólogo da vinícola que leva seu sobrenome.
O vinhedo da Larentis fica em Bento Gonçalves, em uma propriedade que pertence à família há cinco gerações, desde a chegada do bisavô do enólogo ao local, em 1876. A vinícola é uma das que oferecem a colheita noturna. Mas engana-se quem imagina que a atividade à noite tenha caráter puramente de lazer.
“A colheita noturna é uma experiência voltada à parte mais técnica da elaboração do vinho. A motivação de fazer à noite é porque a temperatura é mais baixa, que resulta em uva mais fresca para elaborar o vinho”, afirma no enólogo. De acordo com ele, um público já “iniciado” costuma procurar a colheita noturna. “Abrimos as vagas em junho e, em setembro, já estavam esgotadas”, conta.
Os especialistas ouvidos pela Folha foram unânimes: embora esta safra possa ser um pouco menor que a passada, ela resultará em uma uva de excelência, comparada com as colhidas em 2005 e 2012.
Com a vindima em andamento, a projeção da colheita é de 695 mil toneladas de uva com propósito comercial, segundo técnicos da área.
“Talvez tenhamos uma das melhoras uvas dos últimos anos”, diz Deonir Argenta, presidente da Uvibra (União Brasileira de Vitivinicultura) e diretor da vinícola Luiz Argenta.
“A uva fica sensível na fase da maturação. Se o tempo está bom, sem chuva, não arrebenta, não cria acidez, o grão não apodrece. O cacho fica perfeito”, comemora.
R$ 434 é o consumo diário de um visitante na serra gaúcha
200 mil é o número de pessoas que a vinícola Aurora recebeu em 2019
90% é quanto o setor vitivinícola do Rio Grande do Sul representa da produção nacional
750 é o número de vinícolas no estado
Paula Sperb, Folha de São Paulo