Apesar da torcida para que nada desse certo, o acordo de desnuclearização da Coreia do Norte foi mais rápido e decisivo do que até os otimistas esperavam
Não que houvesse muitos deles. Se dependesse dos vudus lançados pela imprensa americana, além seus imitadores em outros lugares, Donald Trump iria ser completamente enganado e feito de bobo pelo ex-homenzinho-foguete, agora gentil negociador Kim Jong-Un.
Imaginem só: o presidente americano pega um avião para uma reunião de cúpula histórica, no caminho dá umas rasteiras em uns e outros que estão pensando em fazer coisa feia (Justin Trudeau, exatamente), e volta de mãos vazias, tadinho. Um tolo precipitado
É claro que as coisas não funcionam assim. O acordo foi negociado em ritmo alucinante, mas por profissionais de alto gabarito, com destaque para a coordenação geral de Mike Pompeo, primeiro como diretor da CIA e agora secretário de Estado.
Quando os representantes de dois países se encontram para um acordo dessas proporções, tudo já está acertado. Por isso a “discussão” entre Trump e Kim durou exatamente 38 minutos.
Todos os jornalistas e analistas do universo sabem disso, mas 99% deles insistiram que tudo dependeria de Trump e seu temperamento instintivo, mercurial, imprevisível, voluntarista, incontrolável etc etc.
Esperavam o quê? Que Trump atacasse Kim com um palito chinês?
A parte mais tola veio das constantes tentativas de colocar Trump e baby Kim no mesmo patamar, como se um presidente eleito dos Estados Unidos e um ditador hereditário da Coreia do Norte pertencessem à mesma matriz.
Já a parte da montagem com os cabelos trocados foi engraçada. E talvez possa inspirar Trump a dar uma renovada no estilo.
Mas foi exatamente o estilo trumpiano em estado puro que produziu o acordo. Que outro presidente enquadraria nos mais agressivos e categóricos termos o tiranozinho que falava grosso com seus foguetinhos?
“É melhor a Coreia do Norte não ameaçar mais os Estados Unidos”, disse Trump, de improviso, em agosto do ano passado. “Eles vão ter como resposta fogo, fúria e, falemos sinceramente, um poder como o mundo jamais viu igual.”
Dez meses depois, Kim estava em Singapura. E com bons motivos para mostrar seu lado bonzinho: além da garantia de que não será varrido do mapa pelo incomparável poderio bélico americano, uma opção terrível pelo que traria de destruição às duas Coreias, ele ganha legitimidade e reconhecimento.
As sanções econômicas, a pressão exercida sobre e pela China, o consenso mundial sobre o perigo Kim, o pavor de países no caminho da bomba como o Japão e até um governo sul-coreano extremamente flexível combinaram-se para criar o resultado positivo.
Tudo parece tão bom que dá para desconfiar. Um dos maiores focos de instabilidade do mundo, com o potencial de provocar justamente o pior dos pesadelos – uma guerra nuclear “empurrada” pela lógica da rivalidade das grandes potências – foi neutralizado na base da diplomacia.
É possível que Kim dê para trás, invente alguma desculpa para romper o acordo e volte tudo à estaca zero. Um processo de desmantelamento de arsenais nucleares demora anos, demanda dinheiro e enorme fortitude política. Muito pode mudar.
Mas foi feito na Ucrânia, “herdeira” de um terço das armas nucleares (mas não do controle operacional) da União Soviética quando esta se desfez.
O fim do império soviético também levou o governo da África do Sul, já na transição para o fim do apartheid, a anunciar a eliminação “até do último pedacinho” dos seis artefatos nucleares não declarados que tinha.
Apesar de todas as obrigatórias reticências sobre o nível de confiabilidade de Kim e companhia, e do nível de imprevisibilidade envolvido, o mundo amanheceu hoje um lugar melhor. Será que o New York Times vai dizer “Obrigado, senhor presidente”?
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