domingo, 24 de junho de 2018

Tecnologia para privacidade impede rastreamento de boatos no WhatsApp


Criptografia do aplicativo dificulta rastreamento - Emily Almeida / Agência O Globo


Daniel Salgado, O Globo


Enquanto o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luiz Fux, diz que eleições influenciadas por fake news podem ser anuladas, o papel político dos ambientes virtuais ainda é uma incógnita. Entre os inúmeros sistemas usados para distribuir boatos, o WhatsApp, em particular, é uma caixa-preta, blindando a origem e o compartilhamento dos conteúdos tanto para a Justiça como para a sua própria empresa-mãe, o Facebook. 

Não à toa, pelo menos dois juízes já suspenderam o serviço por tempo limitado em retaliação ao descumprimento, pelo Facebook, de decisões judiciais.

A Justiça determinara a abertura de mensagens trocadas por usuários. O problema para cumprir a ordem era simples, segundo a própria empresa: a criptografia impede a quebra de privacidade.

Diferentemente de redes sociais como Facebook, Instagram, Twitter e até a maioria dos serviços de e-mail, o WhatsApp foi construído com base em um sistema de criptografia de ponta a ponta. Ou seja, as mensagens são “inquebráveis”.

— O WhatsApp não pode ser interceptado. É impossível para a empresa ter acesso a essas informações — explica Fábio Malini, coordenador do Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).

É o que disse também Jam Koum, um dos fundadores da rede, numa das raras declarações de executivos da empresa ao comentar a derrubada do serviço por decisão judicial: “Não apenas criptografamos mensagens de ponta a ponta no WhatsApp para manter as informações das pessoas a salvo e seguras, como também não mantemos o histórico do chat nos nossos servidores. Quando você manda uma mensagem criptografada de ponta a ponta, ninguém mais pode lê-la — nem mesmo nós”, disse o executivo, em 2016.

ESPAÇO PRIVADO

Para entender esse tipo de criptografia, é possível pensar no WhatsApp como uma troca de cartas. A quebra da cifra das mensagens requer uma chave que só fica disponível para os usuários. A empresa sabe que houve uma troca de informações entre aqueles dois telefones, mas não qual foi o conteúdo dessa comunicação. É como no caso dos Correios: eles têm os registros de suas entregas, mas não sabem o conteúdo das cartas que enviaram.

A diferença para as redes sociais também tem um impacto jurídico no tratamento do WhatsApp, que é, antes de tudo, um espaço privado, assim como uma conversa telefônica. É o contrário dos perfis em redes como o Facebook e o Twitter, que são vistos como públicos, ainda que virtuais.

— O WhatsApp é tratado juridicamente de modo diferente das redes sociais, com proteções diferentes, por se tratar do direito constitucional à privacidade do cidadão — explica Diogo Rais, professor de Direito Eleitoral da Mackenzie e da FGV de São Paulo.

A briga jurídica envolvendo a rede tem diminuído. Anteriormente, não era raro ver as empresas e o Judiciário em posições antagônicas. O WhatsApp disse não ter posicionamento oficial sobre as decisões jurídicas no momento. Já o TSE, comandado por Fux, diz dialogar com empresas como o Facebook e a Google, além de agências de inteligência como a Abin para evitar a proliferação de notícias falsas na internet durante as eleições de 2018. E que só pode agir quando provocado — ou seja, ao receber uma denúncia.

As fake news, cada vez mais citadas por políticos, ministros e juízes, já existiam com outro nome na legislação brasileira: os “fatos sabidamente inverídicos”. E quem as espalha não necessariamente pode ser punido.

— A punição dos fatos sabidamente inverídicos tem mais a ver com uma questão de dolo do que de veracidade. Depende do dano causado. Se for uma injúria ou calúnia eleitoral, há apenas remoção do conteúdo — explica Diogo Rais.

Ainda que não seja o maior local de compartilhamento de fake news e boatos, o WhatsApp se diferencia das demais redes sociais pela natureza de suas conversas. Por se tratar de um espaço de conversas informais, localizadas e privadas, ele potencializa a proliferação de mensagens pautadas por sentimentos de emoção.

— Não há nenhum estudo que comprove que o WhatsApp é o principal vetor de notícias falsas. Mas os casos em que a emoção supera a razão, que geram ansiedade pelo futuro, acabam mais intensos nele. A história falsa ou distorcida é movida pelo envolvimento emocional, com frequência, com a melhor das intenções — explica Fábio Malini.

PRODUÇÃO DE BOATOS

Ainda assim, é preciso diferenciar a natureza do compartilhamento dos boatos políticos. Se boa parte deles advém desses contatos espontâneos entre as pessoas, mobilizadas em função de seus sentimentos, há também uma parcela significativa que tem origem em práticas eleitorais e massivas.

— É bom dividir os boatos em dois tipos: uma coisa é o que chega no grupo da família, que não acho que deva ser uma preocupação da Justiça Eleitoral. O problema está na produção industrial de notícias falsas — explica Fernando Neisser, coordenador adjunto da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político.

Segundo Neisser, a concentração dessa prática se dá nos “chipeiros”, máquinas — usadas legalmente na publicidade — em que milhares de chips de celular podem ser inseridos e que fazem disparo automático de mensagens de SMS e de WhatsApp. Com uma base de dados, essas máquinas podem enviar milhões de mensagens em poucas horas.

O fator “local” do WhatsApp também serve às campanhas políticas. Organizados em grupos para mobilizar diretórios e lideranças, os partidos já desenvolveram redes regionais que permitem o compartilhamento intenso de conteúdo de campanha a partir desses contatos.

CINCO FAKE NEWS SOBRE POLÍTICA QUE CORRERAM NO WHATSAPP EM 2018

Eleições em Tocantins
Um dos boatos mais recentes a percorrer o WhatsApp envolvendo as eleições aconteceu durante o pleito suplementar para a escolha de governador do Tocantins, que terá seu segundo turno hoje. Um áudio corria trazendo a informação falsa de que, caso houvesse 50% de abstenção no primeiro turno, um novo pleito seria convocado, contando obrigatoriamente com candidatos diferentes. A mentira, que já apareceu outras vezes em ciclos eleitorais, também trazia a informação de que os candidatos poderiam ficar inelegíveis por “rejeição popular”.

Intervenção Militar
A greve dos caminhoneiros, mês passado, foi prato cheio para boatarias no WhatsApp em função das características de descentralização de comando. Uma das mais graves foi a de uma possível intervenção militar, representada por um vídeo em que uma série de veículos das Forças Armadas passam por uma rua. Originalmente de 2015, ele mostrava na verdade a preparação de um desfile de 7 de setembro.

Prisão de Lula
A prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi das que mais geraram boatos. Diversas correntes apareceram no serviço e espalharam informações falsas, como a de que a ONU teria reconhecido o petista como “preso político”. Também houve notícias falsas de que o julgamento da liberdade de Lula no STF seria secreto, o que foi desmentido pelo próprio STF, e de que o filho de Lula teria sido anunciado como pré-candidato à Presidência pelo pai, diretamente do cárcere.

Assassinato de Marielle
O assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) foi marcado pelo compartilhamento de notícias falsas. Uma das mais reproduzidas era que Marielle teria sido casada com o traficante Marcinho VP e recebido ajuda de uma facção criminosa para se eleger. Ambas as informações são mentirosas.

Voto Impresso
Outro boato recorrente no WhatsApp em eleições é o do “chupa-cabra” do voto eletrônico. Um suposto método de transferência de votos de um candidato para o outro colocaria em xeque a veracidade da contagem nas urnas eletrônicas. Surgida em 2015, a história retornou após a decisão recente do STF de acabar com o voto impresso. O boato foi desmentido pelo próprio TSE, em checagem do “Estado de S.Paulo”.