domingo, 3 de maio de 2015

"Carlos Lacerda", por Heitor Cony

Folha de São Paulo


Abril de 1964. No Rio, houve pânico, exaltação e valentia por parte do governador Carlos Lacerda, que se entrincheirou no Palácio Guanabara com uma turma de amigos e desconhecidos que se ofereceram para o sacrifício.

Durante algumas horas, sua posição foi crítica, pois os tanques que estavam no Palácio Laranjeiras (onde se situava a última resistência do governo de João Goulart, comandada pelo almirante Candido Aragão) podiam marchar contra o Guanabara –a distância entre os dois palácios, em linha reta, não chega a um quilometro.

Mas tudo terminou bem: quando afinal apareceram dois tanques do 1º Exército e a turma do Guanabara pensou que ia ser massacrada, descobriu-se que as duas peças blindadas não vinham atacar, mas defender Carlos Lacerda.

Mesmo assim, temendo uma investida dos fuzileiros navais comandados pelo almirante Aragão, volta e meia Lacerda ocupava um microfone que tinha alto-falantes espalhados pelos jardins do palácio. Fazia apelos de luta: "Aragão, covarde e incestuoso, deixe seus soldados e venha decidir comigo essa parada!"

Além de querer decidir a revolução no pau, no duelo pessoal, na justa medieval entre dois duques de campos opostos, Lacerda trazia à confusão daquele momento uma herança dos clássicos, e clamava por Aragão sem esquecer seus tempos de panfletário, acusando-o de incestuoso numa hora daquelas. Um personagem de Shakespeare perdido na rua Pinheiro Machado.

O fato é que Aragão não apareceu, nem para decidir a parada pessoalmente com Lacerda, nem para se defender da acusação de incesto bradada pelo governador sitiado. De resto, a história não se preocupou, até agora, em apurar o incesto de Aragão –detalhe marginal dos eventos de 1964. (Lacerda faria 101 anos nesta semana).