domingo, 3 de maio de 2015

"Vietnã, a vitória capitalista", por Clóvis Rossi

Folha de São Paulo


Há 40 anos, completados dia 30 de abril, o Viet Cong derrotou os Estados Unidos e unificou o Vietnã sob o domínio comunista.

Mas, se perderam a guerra, os Estados Unidos ganharam a paz, conforme dados impressionantes de uma pesquisa do Pew Research Center.

Apesar de todos os horrores praticados pelas tropas norte-americanas, fartamente documentados, inclusive pela televisão dos próprios EUA, os vietnamitas adoram a América: mais de três quartos deles (76%) têm uma opinião favorável do antigo inimigo.

Essa porcentagem sobe para 89% quando os pesquisados são jovens entre 18 e 29 anos, que não viveram a guerra. Mas, mesmo entre os que foram testemunhas do horror (os de 50 anos ou mais), acima de 60% gostam dos Estados Unidos.

O grande paradoxo é que os EUA lutaram no Vietnã para evitar que caísse nas mãos do comunismo, então o inimigo existencial, no contexto da Guerra Fria.
Não conseguiram com armas, mas o capitalismo ganhou a paz.

Incríveis 95% dos vietnamitas pesquisados concordaram com a proposição segundo a qual as pessoas vivem melhor em uma economia de livre mercado, mesmo que alguns sejam ricos e outros sejam pobres.

Conceitos essenciais para o livre mercado têm ampla aceitação no Vietnã, uma ditadura capitalista: o livre-comércio, por exemplo, tem efeitos positivos na criação do emprego para 78% e, para 72%, favorece o aumento dos ganhos dos trabalhadores.

Duvido que porcentagens parecidas sejam encontradas no Brasil, por exemplo, ou mesmo nas democracias avançadas da Europa.

Nesse ambiente, não chega a ser surpreendente que Bruno Philip, enviado especial de "Le Monde", registre a ironia de que Saigon, a antiga capital do Sul (hoje Cidade Ho Chi Minh), retomou "os ares furiosos de 'Saigon, a depravada' que os comunistas austeros do Norte prometiam corrigir" ao ocupá-la em 1975.

É igualmente sintomático que em um festival de filmes sobre os 40 anos da vitória, promovido pelas autoridades comunistas, apenas quatro sejam produções locais; dezenas de outras são "made in Hollywood".

"A indústria cinematográfica do Vietnã, agora privatizada, faz poucos filmes sobre a guerra, e poucas pessoas querem vê-los", escreve para "The New York Times" Nguyen Qui Duc, jornalista que inicialmente se refugiou nos Estados Unidos, mas voltou para dirigir uma galeria de arte em Hanói, por mais anticomunista que tenha sido e continue sendo.

Há um segundo paradoxo na história desses 40 anos: se os vietnamitas parecem ter perdoado o adversário, os norte-americanos ainda não perdoaram a própria derrota.

Afinal, como disse Henry Kissinger, o então secretário de Estado, o Vietnã foi "a primeira experiência da América com limites na política externa, o que foi algo doloroso de aceitar".

Tão doloroso que os Estados Unidos reincidiram no erro de forçar os limites, no Afeganistão e no Iraque, sem reconhecer que "os americanos têm pouco poder para de fato promover mudanças e a paz", como escreve para "The New York Times" a vietnamita Lien-Hang Nguyen, da Universidade de Kentucky.