domingo, 31 de maio de 2015

"A solidão de Levy", por Gustavo H.B. Franco

O Estado de São Paulo

Não duvido nada da gripe do ministro Levy, quem o faz não conhece a nossa capital e os efeitos da baixa umidade relativa do ar. Lá são frequentes as crises de insônia, e nada pode ser mais devastador para os aparelhos imunológicos das autoridades econômicas. É claro que não se trata apenas da secura, mas da climatologia político-parlamentar, sempre problemática nessa época do ano, quando é preciso contingenciar o Orçamento da União.
Capitais isoladas, como Brasília, produzem ambientes exóticos. Juscelino argumentava que a governabilidade aumentaria com a nova capital, pois, no Rio, segundo dizia, até uma greve de bonde ameaçava o presidente da República. Anos depois, contudo, estudo dos professores Filipe Campante e Bernardo Guimarães estabeleceu relação entre o isolamento das capitais e o crescimento da corrupção, uma conclusão explosiva, quem poderia imaginar?
Não conheço o estudo para julgar, prefiro me abster, mas acredito firmemente que Brasília é a capital da insônia e da solidão, e essas duas mazelas juntas produzem resfriados periódicos praticamente inevitáveis. Sobre o sono do ministro só é possível presumir, mas, de outro lado, não há precedente para uma solidão ministerial tão grande quanto esta do ministro Levy. 
Levy se tornou, ao mesmo tempo, uma figura de quem o governismo quer se afastar, e a quem a oposição também não se permite apreciar, mesmo tendo afinidades evidentes com suas ações. Discreta, ou talvez secretamente, muitos torcem por ele, ao mesmo tempo em que, de público, gostam de exibir hostilidade ou, no mínimo, independência quanto ao que ele propõe.
De um lado, Levy é para Dilma o reconhecimento de um erro em forma de ministro, sem ser um pedido de desculpa. Por isso, é um lembrete incômodo de excessos e ilusões, a personificação de um arrependimento jamais reconhecido quanto às “pedaladas” e “brincadeiras” perpetradas pelo ministro Guido Mantega, muitas delas em companhia de Nelson Barbosa, que continua por perto, e com a plena concordância da presidente. Levy significa a adesão da presidente ao que, no passado, designou como “rudimentar”, as ideias ortodoxas de Antonio Palocci. 
Do lado da oposição, o panorama não é melhor: Levy parece usurpar uma agenda que era de Aécio, ao menos em parte, e que agora, uma vez verificado o estelionato, é vista com desprezo, menos porque é cópia não autorizada e empobrecida, como whisky paraguaio, do que pelo fato de ser a opção de um governo que não acredita nessas coisas e por isso mesmo a receita será aplicada a meia boca e/ou terá eficácia muito menor, como costumam ser os plágios e enganações. Com raciocínios desse tipo, ou mais canhestros envolvendo azeitonas e empadas, os tucanos votam contra os ajustes de Levy pois a política é jogo de gente truculenta mesmo.
Nessa delicada geografia, o ministro Levy, traduzindo ao pé da letra uma expressão americana, parece pendurado nos cordões do próprio sapato, em uma situação de baixíssima imunidade. Não obstante, ele representa uma espécie de consenso envergonhado, uma virtude que, mesmo sendo majoritária, lamentavelmente, nenhum dos lados quer assumir como sua, em razão do pervertido ambiente político em que vivemos. 
Essa perversão se explica com base em uma máxima perpetrada, em 2006, pelo então deputado, hoje ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo: “No jogo mesquinho da política brasileira, muitas vezes interessa mais impor derrotas ao adversário do que construir coisas conjuntas”. O contexto para o enunciado desse axioma já se perdeu, o fato é que, na sua vigência, os estelionatos não funcionam mais como antigamente e a política se tornou um baile de máscaras, onde ninguém mais vota como acredita, e quem não acredita em nada, o “centrão”, é quem conduz as votações.
Pessoalmente, acho muito discutível a ideia predominante segundo a qual esse axioma explica o sucesso eleitoral do petismo. De fato, o PT votou contra tudo que lhe apareceu pela frente, inclusive contra a Constituição, o Plano Real e a Lei de Responsabilidade Fiscal. E teria detonado madre Teresa de Calcutá se ela fosse governo. Foi uma irresponsabilidade histórica, mas sem consequência, pois era só “para marcar posição”, quando o partido era uma minoria radical. Não foi por isso que ganharam, mas seria esta uma receita a ser imitada em nossos dias?
Preferia que a oposição seguisse Carlos Drummond de Andrade: “O perdão pode ser a maneira mais requintada de vingança”. Mas o parlamento não é o lugar dos poetas. Como dar vida boa a este governo que tanto mentiu e tanto sacrificou o bem do País em nome da demagogia?
Foi com esse espírito elevado que o Congresso esmerilhou as medidas provisórias do ministro Levy, aprovadas depois de lipoaspirações e contrabandos e, com a preciosa ajuda da oposição, e em consonância com o Axioma de Cardoso, detonou o “fator previdenciário”.
Caso o leitor não se lembre, o fator foi um expediente inteligente inventado pelos tucanos para salvar as contas da Previdência, uma vez verificada a impossibilidade de se aprovar uma idade mínima para a aposentadoria, a solução ideal. Não obstante, o PSDB guiou-se pelo Axioma de Cardoso, e não pelo de Drummond, e agora reza para que a presidente vete a traquinagem.
O problema, entretanto, foi que a derrubada do fator iniciou uma espécie de “contrarreforma” da Previdência, que parece acordar uma maldição bem descrita pela máxima de Millôr Fernandes: “As coisas de interesse de todos quase sempre não interessam a ninguém”. 
O problema aqui é um clássico no tema das reformas: custos concentrados e benefícios dispersos. As imensas populações beneficiadas pelas reformas, como a da Previdência, mal reparam nas mudanças, enquanto que as minorias prejudicadas se mobilizam com imensa facilidade de forma organizada, aguerrida e militante. Ainda que estejam fazendo um bem a muitos, e muito maior que os custos que provocam, os proponentes de reformas são duplamente punidos, pela indiferença das maiorias que beneficiam e pelo ódio das minorias cujos privilégios são eliminados.
Não é claro, portanto, que haverá o veto presidencial, ou se, num rasgo de lucidez, o governo resolve dobrar a aposta e vai propor a idade mínima. Tudo pode acontecer, o errado, é claro, com maior probabilidade.
A solidão do ministro Levy apenas tende a aumentar.