Thomas Sowell escreveu certa vez que qualquer um
com muito apetite pelo poder é o menos adequado para ser a ele confiado. Se Lord
Acton estava certo ao diagnosticar que o poder corrompe, e o poder absoluto
corrompe absolutamente, o que esperar de alguém que já demonstra tanta sede pelo
poder? Este será um entorpecente forte demais, irresistível demais, para alguém
assim.
Esse foi justamente o
tema da coluna de hoje de Nelson Motta no GLOBO. O escritor fez uma
analogia direta com as drogas, lembrando que os políticos viciados em poder
farão de tudo para não perdê-lo, farão o “diabo”. Motta argumenta, com razão,
que isso tudo é prejudicial ao avanço de nossa democracia e cidadania, que
necessitam de mais serenidade, não das fortes emoções instigadas pelos viciados
em poder, que leva inexoravelmente ao populismo.
Mantendo a analogia com o vício em drogas, Nelson
Motta busca na máxima dos Alcoólicos Anônimos um alerta para os políticos, e uma
inspiração para nós, eleitores:
Se quisessem mesmo servir ao país, deveriam repetir como
um mantra a Oração da Serenidade, popularizada pelos Alcoólicos Anônimos:
“Concedei-nos, Senhor, a serenidade necessária para aceitar as coisas que não
podemos modificar, coragem para modificar aquelas que podemos, e sabedoria para
distinguir umas das outras’’.
Alguns problemas brasileiros são insolúveis a curto e
médio prazos, como a ladroagem e o compadrio, atrasos culturais que só mudam ao
longo de gerações. Outros, como as reformas política e tributária, dependem de
competência, honestidade e coragem para enfrentá-los.
Não é de emoções, mas de serenidade para distinguir uns
dos outros, que eles — e nós — precisamos.
Não há como discordar: é de serenidade que
precisamos, e de razão! Mas nem sempre temos aquilo de que necessitamos. Ser
realista é aceitar isso, as limitações impostas pela dura realidade. Democracia
valoriza a razão? A racionalidade dos eleitores é o nosso ponto forte? Fosse o
caso, creio que o PT sequer teria chegado ao poder, não é mesmo? Muito menos
permanecido por lá esse tempo todo.
Sim, precisamos de
serenidade e razão, mas talvez seja uma doce ilusão acreditar que teremos isso.
Eu mesmo já disse aqui que o departamento de marketing dos liberais
fracassou, justamente por contar em demasia com o peso racional de nossos
argumentos, assim como com toda a experiência favorável ao liberalismo. Não
foram suficientes para garantir um mundo mais liberal, pois, infelizmente, as
pessoas agem mais por impulsos irracionais, por emoções, perigosas emoções.
Afinal, como explicar o culto patético ao Obama,
mesmo em um país rico como os Estados Unidos? Como explicar o comunismo, o
socialismo, o nazismo, em pleno século 20? Como explicar o PT? Como explicar o
bolivarianismo? Como explicar o triste tango argentino, vítima da demagogia
peronista e do casal K? Razão? Serenidade? Conta outra!
Nós precisamos, sem dúvida, de mais serenidade e
razão. Mas precisamos, também, de realismo para reconhecer que não teremos tais
qualidades, ao menos não na magnitude de que precisamos. E nós, liberais ou
conservadores, ou todos aqueles que desejam ver o PT fora do poder e eliminar o
risco de o Brasil ser a próxima Argentina ou Venezuela, devemos ter sabedoria
suficiente para entender que é preciso, também, mexer com as emoções dos
eleitores. E, acima de tudo, tentar reduzir o escopo da política em nossas
vidas, pois esta sempre estará sujeita ao populismo dos viciados em poder.
Segue uma resenha que escrevi do instigante livro
de Bryan Caplan, The Myth of Rational Voter, que fala justamente desse
assunto:
Democratas fundamentalistas

“In a secular age, politics and economics have
displaced religion itself as the focal point for passionate conviction and
dogmatism.” (Bryan Caplan)
Uma das premissas mais difundidas no meio econômico é que
indivíduos são seres racionais em busca da maximização de resultados. Mesmo os
economistas que apontam as falhas de governo costumam partir desta premissa,
mostrando apenas que os incentivos no meio político levam a escolhas ruins,
ainda que tomadas por seres racionais. Mas Bryan Caplan, em seu instigante livro
“The Myth of Rational Voter”, questiona a própria premissa em si, alegando que
eleitores não são máquinas de cálculo racionais, e sim pessoas com crenças
enviesadas que acabam potencializadas no mecanismo democrático.
O ponto de partida de Caplan é que os eleitores não são
somente ignorantes acerca da política; eles são irracionais. Diversas crenças
acompanham os eleitores desde cedo, e tais crenças prevalecem porque, de certa
forma, fazem com que eles se sintam bem ao defendê-las. Muitos economistas
justificam a ignorância voluntária sobre política com base no argumento de que
um voto não faz diferença e, portanto, seria racional ignorar a política. Caplan
vai um passo além e questiona: por que os eleitores controlariam suas reações
emocionais e ideológicas, o que demanda bastante esforço e reflexão dolorosa
muitas vezes, se o voto não altera o resultado?
A visão de Caplan é que a democracia falha porque
ela atende aos anseios das pessoas. Winston Churchill cunhou a famosa frase
em defesa da democracia, alegando que se trata da pior forma de governo, exceto
todas as demais já tentadas. Mas esta defesa nada diz sobre o escopo da
democracia. Talvez, para muitas coisas públicas, o método democrático seja mesmo
o menos pior. Mas e se inúmeras outras decisões simplesmente não precisarem
transitar pelo meio político, porque não cabe à maioria decidir? A alternativa à
democracia não precisa ser a ditadura; pode ser muito bem mais
mercado.
Muitos defendem a democracia com base no conceito de
teoria dos grandes números, assumindo que os erros individuais acabam eliminados
quando agregados. O problema, segundo Caplan, é quando ocorrem erros
sistemáticos dos eleitores. E eis justamente um dos principais pontos do
livro: a maioria dos eleitores possui crenças enviesadas. Há um claro viés
antimercado, por exemplo: poucos compreendem e aceitam o conceito abstrato de
“mão invisível” dos mercados, com sua capacidade de harmonizar interesses
privados em prol de um bem público. Adam Smith mesmo sabia que era algo
contraintuitivo, e por isso escreveu um grande livro para defender sua
visão.
As pessoas gostam de pensar que valorizam a verdade por
si própria, mas existem impulsos concorrentes, como o medo, a preguiça de
raciocinar, a vaidade, os preconceitos. Da mesma forma que acontece com crenças
religiosas, muitos suspendem a razão quando alimentam sua fé ideológica. O
desejo de acreditar é mais forte que a busca pela verdade. Muitos
encontram em suas visões políticas modernas o conforto semelhante ao das
religiões no passado. Para muitos, por exemplo, atacar os estrangeiros, como se
o comércio fosse uma batalha de soma zero, produz certo conforto e orgulho.
Estas mesmas pessoas podem expressar nas atitudes de seu cotidiano algo
diferente, quando compram produtos importados de acordo com seu julgamento de
custo e benefício. Mas no momento do voto, acabam sucumbindo ao prazer mental de
defender o protecionismo.
Como um voto não muda o resultado, os eleitores acabam
optando pela busca de prazer ideológico, mesmo que o resultado agregado desta
postura seja prejudicial à maioria. O custo individual de acreditar
politicamente naquilo que mais lhe dá prazer é muito baixo. Caplan acredita,
inclusive, que os eleitores votam genuinamente de acordo com aquilo que
percebem ser o melhor para o coletivo. O problema é que poucos adotam o
passo seguinte, de questionar seriamente se tais meios são os mais
eficientes para entregar os resultados esperados. O erro pode ser sedutor, e os
políticos que oferecem a ilusão se tornam mais populares.
A imprensa não cria tais ilusões, que já existiam antes
do surgimento dos meios de massa. Mas elas podem atuar como catalisadores,
servindo aos interesses dos líderes populistas. A audiência já está predisposta
a ouvir aquilo que a imprensa e os políticos oferecem. As pessoas são
perfeitamente capazes de se enganar sem a ajuda de jornalistas. Podemos analisar
o exemplo do viés pessimista para ilustrar o ponto. David Hume já sabia que o
hábito de condenar o presente e idealizar o passado estava bastante arraigado na
natureza humana. A despeito do avanço material fantástico dos últimos séculos,
muitos costumam temer um futuro apocalíptico para a economia, com fim de
recursos, miséria, desemprego etc. A Bíblia, Nostradamus, Malthus, o Clube de
Roma, a lista de previsões sombrias é vasta, e o público parece inclinado a
buscá-las. A imprensa, na missão de atender a demanda do público, faz um
excelente trabalho de recortes pessimistas, criando uma sensação de pânico. Os
políticos se aproveitam deste ambiente, que subestima o progresso econômico e
superestima os riscos e problemas.
Se eleitores são irracionais, por que consumidores não
seriam também? Caplan entende que os incentivos são bastante diferentes nos dois
casos. Na democracia há total incentivo para agir de maneira a gerar a maior
satisfação mental com as escolhas, uma vez que seu voto não altera o resultado.
Já no mercado, os consumidores são incentivados a agir de forma mais racional.
Isso não é garantia de racionalidade, naturalmente. Mas quando o consumidor
precisa colocar nos atos suas palavras, é ele quem paga o preço. Basta pensar no
exemplo do protecionismo: ele pode comprar um produto nacional, pior e mais
caro, para se sentir bem como um patriota; mas isso poderá lhe custar caro. O
efeito é direto sobre ele. É justamente por isso que vemos tanta contradição
entre discursos políticos e práticas consumistas. Os mesmos que atacam o
progresso tecnológico como destruidor de empregos em seus discursos, entendem
que fazer mais com menos em seus trabalhos é algo positivo, pois sobra mais
tempo para investir em outras atividades, como o lazer. O custo individual de
ser um ludista na política é quase nulo, enquanto o custo individual de rejeitar
o avanço tecnológico no mercado é absurdamente elevado.
Muitos economistas são acusados de “fundamentalismo de
mercado”. Caplan acredita que a acusação é uma caricatura. À exceção de alguns
poucos libertários mais fanáticos, a imensa maioria dos economistas aceita a
existência das falhas de mercado. Os próprios economistas costumam apontar tais
falhas e praticar a autocrítica. Milton Friedman, por exemplo, era o primeiro a
reconhecer diversas falhas no funcionamento dos mercados, e sabia que a
alternativa muitas vezes era entre o menor dos males. Quase ninguém afirma que
os mercados são perfeitos, e ninguém do “mainstream” de economia o faz. A
questão, porém, é partir desta premissa verdadeira, de falha dos mercados, e
concluir que a alternativa será sempre desejável e melhor. Os que agem assim,
segundo Caplan, são os “democratas fundamentalistas”, que pensam que qualquer
defeito econômico pode ser resolvido com mais democracia.
Para Caplan, estes fundamentalistas não são
ridicularizados porque existem em grande número. Se alguém atacar Zeus numa
reunião, ninguém vai reclamar; mas se atacar Cristo, poderá despertar a revolta
de muitos. De forma similar, ridicularizar o “fundamentalismo de mercado” é
fácil, pois seus adeptos são muito escassos. Mas atacar os “democratas
fundamentalistas” costuma gerar forte reação, pois eles existem em grande
quantidade. Acontece que a democracia não é uma panacéia, e como mostra Caplan,
ela pode incentivar o comportamento irracional dos eleitores, produzindo
resultados ineficientes. Isso não quer dizer que a solução seja uma
ditadura.
No passado, a religião sempre foi assunto de Estado, ou
seja, sujeito à escolha da maioria e depois imposto aos demais. Atualmente,
vimos a despolitização da religião, que passou a ser da esfera individual. A
maioria não mais controla a crença religiosa de todos. Assim como a religião,
muitos outros assuntos poderiam ser despolitizados, ou seja, retirados da esfera
pública e transferidos para o âmbito particular. Só porque alguma democracia é
necessária para certos assuntos públicos, isso não quer dizer que não devemos
ter menos democracia quando o tema em questão não diz respeito ao público
em geral. A mistura ótima entre mercado e governo não depende das virtudes
absolutas do mercado, mas sim de suas virtudes comparadas àquelas do
governo. Politizar tudo é o caminho da ineficiência e servidão.
