sexta-feira, 28 de maio de 2021

"A versão cangaceira do Inspetor Clouseau", por Augusto Nunes

 


Renan Calheiros busca na Alemanha nazista provas de que um Hitler brasileiro está em ação desde o começo da pandemia


Até a manhã de 25 de maio do ano da graça de 2021, nenhum brasileiro sequer desconfiava da existência de uma versão cangaceira do Inspetor Clouseau, o investigador doidão interpretado por Peter Sellers em Pantera Cor-de-Rosa. Agora já sabem disso todos os que acompanharam naquele dia o desempenho de Renan Calheiros na CPI da Pandemia, nome oficial do circo montado no Congresso em que o senador alagoano capricha no papel de superdetetive de picadeiro. Só um trapalhão vocacional mostraria já na terceira semana de apresentações que o relatório ficou pronto antes de colhido o primeiro depoimento, e foi redigido pelo pior aluno da classe na faculdade de direito em Maceió.

Só um sócio remido do clube dos cretinos fundamentais, identificados por Nelson Rodrigues, divulgaria tão cedo o trecho do parecer que compara Jair Bolsonaro a Adolf Hitler, mortes provocadas pela covid-19 num país sul-americano ao Holocausto dos judeus na Alemanha nazista, integrantes do governo federal ao primeiro escalão do Führer e vigaristas aglomerados na CPI aos juízes do Tribunal de Nuremberg, que puniram o que restara do alto-comando do III Reich. Só um Inspetor Clouseau cangaceiro, enfim, enxergaria semelhanças entre a mais feroz ditadura do século passado e o Brasil democrático do terceiro milênio.

Renan andou estudando com especial interesse a figura de Hermann Goering (Góringui, em cangacês castiço). Precisa aplicar-se muito mais, alertam as derrapagens ocorridas durante a selvagem sessão de tortura sofrida pela História. “Góringui acabou se suicidando e não foi executado na cela, como estava previsto”, viajou o relator. O que estava previsto era a execução por enforcamento num dos três cadafalsos armados no presídio de Nuremberg, não na cela. “Em várias ocasiões durante o julgamento, o acusado exibiu filmes dos campos de concentração nazistas e de outras atrocidades”, reincidiu. Os filmes foram exibidos pelos acusadores, claro. Não pelo acusado.

Interrompido aos berros por senadores perplexos com a comparação (imediatamente repudiada também por representantes da comunidade judaica), Renan não identificou o Góringui brasileiro. Seria a depoente do dia, Mayra Pinheiro, secretária de Gestão do Trabalho e da Educação do Ministério da Saúde? Difícil. O ex-ministro Eduardo Pazuello? Talvez. Seja quem for, pode esquecer desde já a ideia de ingerir veneno para escapar da forca, como fez Hermann Goering. CPIs não têm poderes para condenar alguém a coisa alguma. Quem faz isso é o Judiciário. É coisa para tribunais de verdade, não para magistrados de botequim em ação no Senado.

Se até Renan sabe disso, por que o paralelo com Nuremberg? A resposta está no parágrafo em que o relator afirma que as decisões do tribunal que condenou os nazistas foram contestadas por muitos juristas, o que não ocorrerá com as conclusões da CPI, que se basearão nas leis em vigor no Brasil. No julgamento histórico, as atrocidades cometidas pelos nazistas foram enquadradas numa nova espécie de delinquência — crimes contra a humanidade. Para punir assassinos patológicos, o tribunal teve de ignorar o princípio jurídico segundo o qual a lei só retroage em benefício do réu. Embora não veja diferenças entre os nazistas alemães e seus similares nativos, nosso Clouseau é homem clemente. Ninguém será enforcado, nem haverá inovações no Código Penal. O relator pretende apenas propor o impeachment do presidente Jair Bolsonaro, e condenar à danação todos os que ousaram acreditar na eficácia de tratamentos preventivos ou retardar encomendas de vacinas salvadoras.

Para que nenhum ministro do STF duvide da isenção que o orienta, e acuse um relator exemplarmente imparcial de agir como um Sergio Moro, Renan prometeu contratar uma “agência de checagem”. Infestada de patrulheiros a serviço do pensamento único, essa abjeção nascida do cruzamento da censura com o controle social da mídia não tolera jornalistas que prezam a liberdade de expressão e a independência intelectual. Coerentemente, bandidos que se juntam à manada são tratados com o carinho reservado a comparsas. O líder da bancada do cangaço no Senado, por exemplo, acaba de ter o prontuário reduzido por uma dessas agências. “É falso que sejam 17 os inquéritos em tramitação no Supremo Tribunal Federal que envolvem Renan Calheiros. São nove”, comunicou o responsável pela checagem. A capivara emagreceu quase 10 quilos. Mas continua suficientemente gorda para garantir-lhe uma larga temporada na cadeia — se os titulares do Timão da Toga prendessem os renanscalheiros.

A biografia do relator explica a sintonia com o presidente da CPI, Omar Aziz, que virou caso de polícia quando governou o Amazonas (2010-2014) por desviar dinheiro destinado ao sistema de saúde pública. Em campanha para voltar ao cargo, disputa espaços no palco com Eduardo Braga, também ex-governador e igualmente candidato ao regresso. (Até agora, ninguém se lembrou de perguntar-lhes por que havia no interior do Amazonas, no momento em que o primeiro vírus chinês pousou no país, um único e escasso leito de UTI.) Além de entender-se muito bem com os dois, Renan esbanja afinação nos duetos com o vice-presidente Randolph Frederich Rodrigues Alves, vulgo Randolfe Rodrigues, cuja voz de castrato supera até os agudos famosos do pernambucano Humberto Costa, o Drácula do Departamento de Propinas da Odebrecht. A penúltima de Randolfe foi a convocação do presidente da República para depor na CPI, proibida por lei de convocar presidentes da República.

As poucas mulheres do elenco fazem o que podem para ampliar o acervo de assombros. Líder da bancada feminina no Senado, Simone Tebet só levantou o cerco movido aos condutores dos trabalhos depois de atendida a principal reivindicação: senadoras que não são titulares da CPI queriam fazer perguntas aos depoentes. Primeira a usar o microfone, lamentou as mortes em Mato Grosso do Sul por 15 minutos, ao fim dos quais avisou que não tinha nada a perguntar. Autorizada a fazer duas perguntas, a paulista Mara Gabrilli quis saber se poderia formular uma terceira no lugar da segunda resposta do depoente, pela qual não tinha o menor interesse.

Desde a instauração da CPI, passaram-se três semanas de três dias, como determina o calendário do Congresso. Neste fim de maio, a contemplação da comissão conduzida por um Clouseau fora da lei informa que, abstraídas raríssimas exceções, os comissários se dividem em duas alas: a dos incapazes e a dos capazes de tudo. Uma coisa assim só pode dar em nada.

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Revista Oeste