segunda-feira, 3 de agosto de 2020

‘Até o investidor superconservador terá de mexer no portfólio’, diz Kairós

Para obter maior rentabilidade, o investidor tende a aumentar a participação de ativos com maior risco em sua carteira. Mas é preciso alongar o prazo de avaliação para ver se aquele investimento faz ou não faz sentido. Gestores de fundos multimercado também deverão escolher ativos com maior volatilidade para que o retorno dos produtos faça frente ao modelo de taxas de administração vigente. Atividade econômica está tão fraca que a inflação tem espaço para subir sem que isso force o BC a elevar a taxa de juros. Questão fiscal é urgente e deve ser encarada assim que o combate à pandemia sair da pauta Paciência é a palavra de ordem para o investidor em 2020. Diante de juros baixos que vieram para ficar, é preciso aumentar a participação de ativos com maior risco na carteira, e saber esperar. Só depois de dois anos de investimento é que dá para saber se o produto escolhido realmente faz sentido. O conselho acima foi dado por Fabiano Godoi, sócio e diretor de investimentos da Kairós Capital. Após passar por assets como Santander e Safra, nesta última como diretor estatutário e CEO, ele montou sua própria gestora em setembro de 2018. Hoje, a Kairós tem R$ 630 milhões sob custódia e um fundo multimercado com forte exposição internacional. Em entrevista ao E-Investidor, Godoi fala sobre como escolher um fundo, o peso das taxas de administração e também suas perspectivas sobre dólar, Bolsa e retomada da economia pós-covid-19. E-Investidor – A covid-19 mudou a métrica de avaliação dos riscos do mercado? Fabiano Godoi – A nossa métrica de riscos não mudou. Mas um baque desse tamanho aumenta muito a dificuldade de avaliar como vai ser a recuperação das economias. A visibilidade diminui. Quando isso acontece, você acaba trazendo o seu próprio horizonte de investimento mais para perto. Não adianta fazer projeções para cinco anos, sem saber como será a recuperação nos próximos seis meses. Nesses momentos de grandes chacoalhadas na economia mundial, você encurta o seu horizonte de avaliação macroeconômica. Em vez de carregar posições em um tema estratégico que queria perseguir por 12 ou 18 meses, você carrega por menos tempo. Isso é conjuntural, funciona até para quem tem horizontes mais curtos. Você reduz o alvo, passa a olhar prazos menores ao construir o portfólio. Nosso esforço agora é tentar olhar um pouco à frente e ver o que faz sentido. Que mundo teremos quando sair a vacina ou o remédio eficaz contra a covid-19? O crescimento econômico, a inflação, a taxa de juros, serão baixos ou elevados? Como moedas, bolsas e commodities falarão com esse novo mundo? Esse é o exercício que fazemos para traçar o cenário macroeconômico que achamos mais provável, e aí desenhar um portfólio condizente. E-Investidor – Fundos de investimento são apenas para investidores de longo prazo? Fabiano Godoi – A partir do momento em que o investidor final decide aumentar a participação de ativos com maior volatilidade em seu portfólio, ele precisa alongar o prazo de avaliação para ver se aquele investimento fez ou não fez sentido pra ele. Imagine que ele nunca investiu em Bolsa, e de repente resolve alocar 5% ou 10% do patrimônio. Ele não pode querer olhar o resultado diariamente, porque aí estará fazendo especulação. Quanto maior é a volatilidade do produto em que ele investe, mais ampliado deve ser o horizonte desse investimento, para que ele possa perceber o benefício de ter corrido mais risco para ter mais rentabilidade. O horizonte mínimo, para o cliente de fundos multimercado em geral, é de 1 a 2 anos. Voltando ao exemplo da Bolsa, o cara compra depois que a Bolsa subiu, aí a Bolsa cai e ele vende, porque se incomodou com o resultado. Aí, quando cai demais, ele não compra, e vai comprar quando subiu de novo. Ele se perde nas altas e baixas da volatilidade do ativo, e acaba não percebendo o benefício de carregar aquele investimento por mais tempo. Por isso o horizonte de prazo deve ser mais longo. E-Investidor – Mas como lidar com aquele investidor mais conservador, que veio do conforto da renda fixa, e de repente está sendo forçado a diversificar? Fabiano Godoi – A primeira coisa é ter um pouco de paciência. Antes de sair comprando um monte de fundo imobiliário, um monte de fundo de ações, é preciso entender qual o apetite de risco, e essa é uma conversa complexa. Todo mundo acha que tem apetite, até sofrer a primeira perda. É preciso fazer uma avaliação mais honesta: quanto eu topo de risco para ter um retorno maior em um prazo mais dilatado? Essa é uma avaliação muito individual. Mas em um ambiente de taxas de juros mais baixas, todo tipo de investidor, do mais conservador ao mais agressivo, vai ter que fazer mudanças em seu portfólio, incorporar outras classes de ativos, para ter um retorno que seja razoável para o seu perfil de risco. Mesmo aquele cliente superconservador, que sempre teve todo o capital na renda fixa que seguia a Selic, também vai ter que buscar diversificação. Pode ser em fundos de crédito, em FII, em multimercado, em fundos de ações, em investimentos diretos no Exterior. As alternativas nesse sentido antes eram mais limitadas a tíquetes elevados, hoje há produtos mais acessíveis em bancos e plataformas. É uma tendência que veio para ficar. E-Investidor – Os cortes na taxa Selic foram desafiadores também para os gestores dos fundos. O modelo clássico de taxas 2×20 (2% de taxa de administração e 20% de performance sobre o que exceder o benchmark) não ficou pesado? Ela não aumentou demais a pressão por resultados, já que é preciso fechar no azul, mesmo com essas taxas? Fabiano Godoi – Vou ser bem direto. Nós nos acostumamos a ter taxas de juros elevadas, mas no resto do mundo elas já são baixas há muito tempo. E esse modelo 2×20 é padrão, mesmo onde as taxas de juros são baixas. Então não acho que os juros baixos facilitem ou dificultem esse lado das taxas cobradas pelos fundos. A questão é que a indústria de fundos multimercado no Brasil foi, por muito tempo, de baixa volatilidade, se comparada com produtos similares em outros países. E aí concordo com você: um produto de baixa volatilidade que cobra 2×20 terá mais dificuldade. Agora, a volatilidade média da indústria de fundos multimercado tende a crescer. Sem isso, ficará difícil entregar um retorno atrativo para o investidor. Em vários outros países, em que os juros já são baixos, as taxas de performances são cobradas sobre rentabilidade zero nominal. Aqui, são cobradas sobre uma taxa referencial de juros, já há uma barreira maior à taxa. Então, não concordo com a afirmação de que “taxa de juros baixa torna mais difícil o retorno”. O que o gestor tem que fazer é olhar para mais ativos do que costumava no passado. E-Investidor – A Kairós nasceu em setembro de 2018 e colocou seu primeiro fundo no mercado em abril de 2019. Nessa época o mercado teve um boom de gestoras independentes, criadas por egressos de grandes bancos. O que explica esse movimento? Qual é o diferencial da Kairós? Fabiano Godoi – A indústria de assets independentes vem crescendo em função de alguns fatores importantes. A taxa de juros no Brasil era elevada e dava ao investidor o tripé dos sonhos: boa rentabilidade, liquidez imediata e a segurança dos títulos públicos, que são os ativos de menor risco no País. Com retorno de 16%, 18%, 20% ao ano, ele tinha pouco interesse em diversificar o portfólio. Quando os juros foram caindo, e essa redução foi percebida como sustentável, veio o desejo de diversificar o portfólio para ter retorno melhor, ainda que com um prazo mais dilatado e um risco maior. O boom de novas gestoras em parte veio desse ambiente de juros menores, que estimula a diversificação. Antigamente, o acesso às assets independentes era muito restrito aos investidores de grandes tíquetes, os clientes do private banking dos bancos. Depois, com a criação das plataformas de investimento e a própria abertura da arquitetura dos grandes bancos a produtos de terceiros, o mercado de investidores disponível para gestoras independentes se ampliou muito. Além disso, aqueles gestores que têm sucesso nas próprias carreiras acabam querendo montar suas próprias gestoras, é natural. Entre os nossos diferenciais, eu destacaria que todos nós aqui fazemos gestão de fundos há muitos anos, isso não é novidade para nós. E sempre tivemos em nosso DNA o investimento em outras geografias, além do Brasil. E-Investidor – E quais são as geografias mais interessantes hoje? Fabiano Godoi – Nós operamos no G10, o grupo dos principais países desenvolvidos, e também nos mercados emergentes mais líquidos e relevantes: Brasil, México, África do Sul, Turquia, China, Taiwan, Coreia do Sul, Cingapura. Preferimos ter na carteira ativos líquidos, em vez de ilíquidos. Nas geografias com mais liquidez, é possível montar e desmontar posições sem um grande penalty nos preços. Em mercados menos líquidos, mudanças relevantes no ambiente político ou macroeconômico acabam causando grande impacto nos preços. Esse é o fundamento por trás das nossas escolhas. E-Investidor – O fundo Kairós Macro opera bolsa, juros, câmbio e commodities aqui e no Exterior. Você pode fazer um comentário sobre os resultados dele, em termos de rentabilidade? Fabiano Godoi – O primeiro ano, de abril de 2019 a abril de 2020, foi bom. Tivemos um retorno razoável, em torno de 150% do CDI. Este ano é mais complexo. Acabamos vivendo uma crise muito particular. Ela não foi causada pelo esgotamento da capacidade de produção, nem por problemas de crédito, mas por uma questão de saúde pública, um vírus que impactou a atividade econômica de todos os países ao mesmo tempo. Normalmente, as recessões não são tão sincronizadas. Então, o fundo está no zero a zero neste ano. Março não foi bom, em meio ao pânico, e de lá pra cá já recuperamos toda a perda. Ainda não estamos com a performance a que nos propusemos, mas ainda temos muito chão pela frente. E-Investidor – O que o investidor deve olhar ao escolher um fundo multimercado? Vale a pena aplicar em vários fundos diferentes, com estratégias diversas, ativos não correlacionados? Fabiano Godoi – Sim, é bom não concentrar os recursos em uma classe de ativos, nem em uma única gestora, qualquer que seja. Ninguém tem bola de cristal. Não é em todos os períodos que a gestora vai acertar de forma significativa. Por isso, faz sentido ter mais de uma alternativa dentro da classe de multimercados, para melhorar a performance do portfólio ao longo do tempo. Ele tem que olhar a qualidade e a história daquelas pessoas. Isso não significa que o futuro será igual, mas dá uma boa indicação de como elas funcionam. Um time que sempre perde vai cair de divisão. Analise a entrega dos resultados do fundo ao longo do tempo. Nesse mercado, nada supera você entregar resultados. E-Investidor – Qual é o cenário-base com que a Kairós está trabalhando para a retomada da economia? Fabiano Godoi – A retomada já está começando. Na medida em que a quarentena vai sendo flexibilizada nos diferentes países, a economia já dá sinais de reação. Mas essa recuperação dificilmente será rápida. Como essa recessão não é tradicional, mas causada por uma questão médica, enquanto não houver uma solução mais definitiva para esse problema, não dá para pensar em uma recuperação em V. Os efeitos do fechamento de muitos negócios por vários meses ainda serão sentidos ao longo do tempo. Pequenas e médias empresas, com menos recursos e menos acesso ao crédito, como vão se sair nesse momento? Será que muitas irão fechar as portas, ou reduzir muito a atividade e a folha salarial, impactando emprego e renda? Há muita incerteza nesse aspecto. Serão muitos importantes os estímulos monetários do BC, o estímulo fiscal em programas de ajuda, para ajudar a economia a atravessar este momento mais agudo, até que as empresas voltem a funcionar e as pessoas voltem a trabalhar e consumir. Mas vai demorar para voltar ao nível de crescimento do PIB do final de 2019. E-Investidor – Existe um risco de alta da inflação, por conta da injeção de dinheiro na economia? Isso poderia fazer a taxa Selic voltar a subir? Fabiano Godoi – Dada a contração muito grande da atividade, é pouco provável que tenhamos uma volta forte da inflação, pelo menos nos próximos 18 meses. O desemprego cresceu muito, a renda caiu, muitas empresas terão dificuldade de retomar as atividades. Em um ambiente recessivo como esse, difícil imaginar que haja pressão inflacionária, sobre preços e salários. A atividade econômica fraca provoca uma disciplina dos preços, não há espaço para reajustes. Mas isso não significa que a inflação não possa ser um pouco maior do que está agora. Agora ela está muito abaixo da meta do BC, então pode até subir um pouquinho sem que isso signifique uma pressão inflacionária que force o BC a elevar a taxa de juros rapidamente. E-Investidor – Além da crise sanitária e da recessão global, o Brasil também tem um fator político relevante, que gera volatilidade. Mas o presidente Jair Bolsonaro parece estar adotando um tom menos beligerante e a reforma tributária ensaia os primeiros passos. Isso permite uma leitura um pouco mais positiva do cenário doméstico? Fabiano Godoi – O ‘distensionamento’ da relação entre Executivo, Congresso e Judiciário é muito bom, pois amplia as chances de aprovação tanto de medidas mais imediatas para combate dos problemas, como das reformas tributárias e fiscais que precisam ser resolvidas. Quando há uma crise no relacionamento entre os poderes, tudo fica muito mais difícil. Por outro lado, chegaremos ao final de 2020 com uma relação dívida-PIB bem próxima de 100%. É uma situação fiscal particularmente preocupante para um país emergente. A necessidade de discutir as reformas é grande, esse assunto será retomado e discutido por muitos meses, assim que pudermos deixar de falar sobre o combate à pandemia. Como o pior já passou, com números de contágio estabilizados e tendência de queda, poderemos falar sobre as coisas que precisam ser feitas. Ainda temos déficits primários e nominais muito elevados. Isso força o governo a buscar soluções para ter o controle da dívida pública, para o Brasil não ser mais percebido como um país com risco fiscal. E-Investidor – O atual patamar do dólar é confortável para a economia brasileira? Você acha que essa zona entre R$ 5,20 e R$ 5,60 será duradoura? O que pesa mais no câmbio atual são fatores internos ou externos? Fabiano Godoi – Não há como separar a relação entre dólar e real do comportamento do dólar frente a todas as moedas. O dólar se valorizou frente a todas as moedas. Mas o real se comportou particularmente mal no período, por conta de fatores internos: muitas reformas por fazer, difícil interlocução entre os poderes, a própria taxa de juros baixa, que torna a moeda brasileira mais barata para fazer hedge. Muita empresa trocou endividamento em moeda estrangeira por dívida em moeda local, fazendo remessas para fora. Tudo isso impactou o nosso câmbio. Entendemos que o patamar atual do câmbio já deveria ser suficiente para deixar nossas contas externas positivas, ou pelo menos zeradas. Não vejo necessidade de o real depreciar mais, do ponto de vista de fundamentos. Ao contrário, a moeda poderia até se valorizar um pouco, com o dólar pouco abaixo dos R$ 5. Mas nosso câmbio está sendo afetado pelo risco das tensões políticas locais e pela taxa de juros, que é até mais baixa que a de nossos pares emergentes. É essencial que o País se concentre na agenda de reformas, mostre aos investidores locais e internacionais que está fazendo a lição de casa para controlar a relação dívida-PIB. Quando as reformas forem aprovadas, aí teremos espaço para uma apreciação maior da moeda brasileira. Mas não somos uma ilha: um pouco do comportamento do real também segue o das outras moedas mundiais perante o dólar. O vetor externo é muito importante, mas pode ser exacerbado ou minimizado por questões internas. E-Investidor – A Bolsa voltou a operar acima dos 100 mil pontos, mas alterna dias mais otimistas e outros mais céticos, com temores vindos do Exterior. Ela vai ficar nesse voo de galinha por muito tempo? Você vê o risco de outro grande choque? Fabiano Godoi – A velocidade com que os preços dos ativos reagem é muito diferente da velocidade com que a economia reage, tanto na piora como na melhora. No pânico de março, os ativos financeiros caíram muito rápido, mas os efeitos sobre a economia real demoraram um pouco mais para aparecer. Da mesma forma, agora você vê uma recuperação dos ativos financeiros muito mais rápida que a das economias, que ainda estão saindo da quarentena. Hoje, nossa percepção é de que a Bolsa brasileira está um pouco atrasada em relação às outras Bolsas do mundo, ela teria espaço para andar mais. Mas, olhando para o estado da economia brasileira e a velocidade com que ela conseguirá se recuperar, talvez passemos por um período de estabilização das cotações. Não devemos ter meses de grandes valorizações, como os últimos, que foram de recuperação das perdas de março. Isso não quer dizer que a Bolsa não possa ser uma boa alocação de investimento. Tanto é que temos um pouco de Bolsa na nossa carteira. Mas os preços da Bolsa reagiram muito forte, antes da recuperação da economia real. Agora é importante acompanhar os dados dos próximos meses, para ver se a evolução da economia corrobora os preços dos ativos. Pelo menos nos próximos dois meses, eu não esperaria grandes movimentos da Bolsa brasileira. Thiago Lasco, O Estado de São Paulo