sábado, 29 de agosto de 2020

A política brasileira é terra de saturninos e antropófagos, escreve Marcelo Tognozzi

É raro que líderes deixem sucessores

Getúlio, Lula e Bolsonaro são exemplos

Voracidade de Saturno é aniquiladora

Como todos os saturninos, o presidente Jair Bolsonaro está destinado a devorar os próprios filhos na políticaSérgio Lima/Poder360 – 24.jul.2020


Francisco Goya viveu mais de 80 anos numa época em que as pessoas mal passavam dos 40. Pouco antes de completar 71, Goya comprou a Quinta del Sordo, uma casa de campo nas cercanias de Madri, onde deixou nos muros uma relíquia: as chamadas pinturas negras, hoje expostas no Museu do Prado.

Crítico dos costumes e, especialmente, do poder, retratou com todo talento, força e energia a hegemonia do poder estabelecido sobre qualquer um que tenha a mínima chance de desafia-lo. O quadro, um óleo sobre reboco, mostra o terrível “Saturno devorando um filho”. A voracidade do Saturno de Goya não é uma força que elimina, mas acima de tudo aniquila. É brutalmente antropófaga.

A pintura “Saturno Devorando 1 Filho”, de Francisco Goya

São raros os líderes políticos brasileiros desprovidos dos genes saturninos. Desde a revolução de 1930 nenhum deles foi capaz de fazer sucessor de fato e de direito. A começar pelo próprio Getúlio Vargas, empurrado para o beco sem saída do suicídio em 1954. Seu sucessor foi Juscelino Kubistchek, não porque o velho tenha colocado a mão sobre a cabeça dele, mas por ter construído seu próprio caminho. Foi o último governador a estar com o presidente, viajou até São Borja para enterra-lo e, em seguida, saiu pelo Brasil pregando a continuidade da política desenvolvimentista de Getúlio.

Juscelino não teve sucessor. Carlos Lacerda, seu maior opositor, também. Jânio Quadros, João Goulart, Ademar de Barros, Luiz Carlos Prestes, José Sarney, Leonel Brizola, Fernando Henrique Cardoso e Lula – para citar os mais conhecidos – foram todos Saturno, cada um ao seu estilo. Devoraram quem gravitou ao redor deles ousando um projeto de poder.

Jânio voltou à prefeitura de São Paulo, depois de mais de duas décadas fora da política, e foi sucedido pela opositora Luiza Erundina do PT.  Clandestino ou não, Prestes jamais abriu mão de comandar o velho PCB (Partido Comunista Brasileiro), assim como Brizola nunca fez sucessor no PDT e Lula engoliu todos os petistas e ex-petistas que tiveram a petulância de enfrenta-lo.

O espírito do Saturno antropófago paira na política brasileira com uma força inexpugnável. Atravessou todo o século 20 e segue firme neste século 21. Bolsonaro tem exibido toda a energia e a voracidade retratadas no quadro de Goya.

Em menos de dois anos de poder deglutiu pequenos filhotes, como Gustavo Bebianno e o general Santos Cruz, e um mais taludinho, o ex-ministro Sergio Moro. Agora anda mordiscando Paulo Guedes, não por divergências ou disputas intestinas, tampouco miudezas, mas pelo simples motivo de o ministro não caber num projeto de poder empurrado pelos ventos da pandemia e focado nas classes C, D e E.

Bolsonaro, como Lula, comparando extremos, caberiam no Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade, bem encaixados em pelo menos 2 trechos: “política é a ciência da distribuição” e “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago”. Cada um na sua trajetória, ambos crescem na presidência ao exercerem a ciência da distribuição mirando no que não era deles por voto ou simpatia. E ganham. Na 4ª feira passada, Bolsonaro disse que não aprovava o programa Renda Brasil de Paulo Guedes, porque “não vou tirar dos pobres para dar para os paupérrimos”.

Na mesma hora os analistas de poltrona se movimentaram, mediram, traçaram hipóteses, teorias, previsões de todo o tipo. Mas o que está em jogo não é uma disputa entre desenvolvimentistas e liberais puros ou qualquer outra bobagem. É a hegemonia do poder que há dois anos se estabeleceu no Planalto, com suas regras, defeitos, qualidades e rituais. Não há poder sem força, reverência e temor. Não me refiro à força bruta, mas à força da investidura, algo indelegável.

Primeiro Sergio Moro e, agora, Paulo Guedes, são exemplos de que estar no poder não significa ter o poder. Bolsonaro com toda sua rudeza sabe separar as duas coisas, como Lula também soube quando se livrou de José Dirceu, Marina Silva e Cristovam Buarque, devorando-os igualzinho ao Saturno de Goya.

Se chegar ao fim de dois mandatos, Bolsonaro muito provavelmente não terá um sucessor. Não por falta de candidatos, mas pela dificuldade de desencarnar do espírito saturnino. Esta não é uma característica pessoal do presidente, mas uma marca impressa no DNA da política brasileira. Foi assim com Lula –ou alguém acreditou que Dilma seria sua sucessora?

O próprio Goya foi vítima da fome de Saturno, devorado pelo rei Fernando 7º, um absolutista com pouquíssima paciência para críticas e ironias. O pintor deixou a Espanha e se refugiou em Bordeaux, na França, onde viveu até 1828 e morreu aos 82 anos depois de cair da escada da casa onde vivia com Leocádia, 36 anos, seu último amor.

Reza a lenda que, quando exumaram seu corpo para transladá-lo à Espanha, os coveiros deram com um cadáver sem cabeça. Igual ao corpo que Saturno devora na pintura negra exposta no Prado.

Poder360