Atribui-se a Garrincha a seguinte frase: Roma é a cidade onde seu Zezé escorregou da escada. Para muitos, São Petersburgo é a cidade onde o Brasil enfrenta a Costa Rica, amanhã.
É comum tratar os lugares assim, sobretudo quando o deslocamento é rápido. Há uma piada sobre um turista americano numa excursão pela Europa que disse, ao acordar:
— Se hoje é quinta-feira, isso deve ser a Bélgica.
No entanto, São Petersburgo é uma cidade que merece um olhar mais demorado. Foi fundada por Pedro, o Grande para adequar a Rússia à Europa. Construíram-se grandes palácios, e os nobres eram obrigados a estudar etiqueta e a se comportar como os europeus.
Mas talvez o período mais dramático da História de São Petersburgo tenha acontecido no século XX, na Segunda Guerra Mundial. O episódio ficou famoso como o Cerco a Leningrado. Durou 900 dias, entre 1941 e 1944. Os alemães queriam conquistá-la de todas as maneiras, porque aqui, além de um centro industrial, era a base da frota soviética no Báltico.
Mas a cidade resistiu, e Hitler resolveu matá-la de fome. De fato, 600 mil pessoas morreram durante o cerco. No princípio, havia alguma comida. As rações eram rigorosamente definidas. Até alguns restaurantes comerciais funcionavam.
Com o tempo, a coisa apertou. A comida foi racionada ao mínimo. Era preciso alimentar prioritariamente os soldados que defendiam a cidade, sitiada por alemães e finlandeses, uma força secundária que atacava pelo norte.
As pessoas começaram a comer os bichos de estimação, cachorros e gatos. Depois, partiram para os ratos, e, finalmente, no auge do desespero, houve canibalismo: comiam mortos, e dizem que algumas mães sacrificaram filhos para alimentar os outros.
A resistência foi um dos momentos mais heroicos da História da Humanidade. Não à toa, deu a Leningrado, em 1945, o título de “cidade heroica”, ao lado de Stalingrado, Sevastopol e Odessa, pela força de seus cidadãos na luta pela sobrevivência. Aquele momento inspirou, entre outros, o poeta Carlos Drummond de Andrade:
“A tamanha distância procuro, indago, cheiro destroços sangrentos,/ apalpo as formas desmanteladas de teu corpo,/ caminho solitariamente em tuas ruas onde há mãos soltas e relógios partidos,/ sinto-te como uma criatura humana, e que és tu, Stalingrado, senão isto?/ Uma criatura que não quer morrer e combate,/ contra o céu, a água, o metal, a criatura combate,/ contra milhões de braços e engenhos mecânicos a criatura combate,/ contra o frio, a fome, a noite, contra a morte a criatura combate,/ e vence”.
São Petersburgo não é só uma recordação da Segunda Guerra. Tem magníficas catedrais, e passei a me interessar mais por elas porque da janela do quarto vejo a cúpula azul da Santíssima Trindade. E tem um museu, o Hermitage, com obras que dificilmente veríamos no Brasil.
A cidade, é claro, ficará mais interessante ainda se for aquela em que o Brasil venceu a Costa Rica. No hotel, há uma torcida costa-riquenha. Eles usam uma camiseta em que está escrito Costa Rica na frente, e atrás a versão em russo do nome do país. Sempre que nos cruzamos no elevador, sinto que estão jogando suas últimas esperanças.
Em número, não se comparam aos egípcios que tomaram o hotel. Há um andar só para reuniões dos ministros egípcios que vieram para a Copa. É triste vê-los partir desolados, após a derrota contra a Rússia. Mas há também um certo alívio, porque o hotel estava superlotado, nada funcionava direito.
Mas, afinal, São Petersburgo é a terra dos que resistem até o fim.
O Globo