2013 é um marco ambíguo. Entrou para a história como o do “despertar do gigante adormecido”... mas de um despertar para o seu próprio vazio. Já lá vão mais de cinco anos e seguimos perdidos no espaço, incapazes de um discurso articulado, de distinguir causas de efeitos e aliados de inimigos, sabendo, vagamente, balbuciar nossos “não”, mas sem repertório que nos permita esboçar um único “sim” digno de ser abraçado como projeto para a nação. Somos o país que morre de fome por não saber pedir; que não consegue ler o menu das soluções institucionais modernas, arrastado que foi de volta para o limbo pré-republicano mediante o aparelhamento dos meios de difusão de cultura e informação e o aniquilamento das nossas universidades (as últimas das Américas) como centros de pesquisa pura e busca do conhecimento. O país em cujas escolas cultua-se só o que fracassou, instila-se o ódio ao merecimento e proíbe-se mostrar, do mundo que deu certo, senão o que tem de pior.
Não é de hoje. A primeira faculdade chegou aos EUA com os colonos ingleses. E a América Hispânica já tinha 23 em funcionamento quando o Brasil fundou a sua primeira – de medicina porque a corte transplantada em 1808 precisava de médicos. Até então tudo o que havia aqui era um colégio de teologia, instituição voltada, portanto, para a negação em nome do dogma, e não para a busca do conhecimento.
No país onde a metrópole proibira desde sempre a produção e a importação de papel (e mais recentemente a entrada da informática) a primeira impressora chegou com 358 anos de atraso em relação à invenção de Gutenberg. Mas junto com a “Impressão Régia” (a única admitida) desembarcaram os censores.
“Posto numa balança o Brasil e na outra o reino, há de pesar com grande excesso para mais aquela primeira que esta última; e assim, a maior e mais rica parte não sofrerá ser dominada pela menor”, argumentava um alto funcionário do rei para justificar tão rígido cerco à informação e ao conhecimento. Não se alterou fundamentalmente a situação com a mudança da metrópole colonialista de Lisboa para Brasília. É a ignorância semeada pela censura das soluções que o mundo moderno dá aos problemas que nos afligem, mais que tudo, que garante a nossa permanência no estágio pré-republicano em que nos arrastamos.
A democracia moderna, essencialmente, é um arranjo de sobrevivência pactuado por comunidades isoladas em territórios hostis. Longe do rei e de qualquer socorro de fora elas tiveram, por si mesmas, de fazer e cobrar suas leis, decidir e executar suas decisões e prover sua própria segurança. Foi isso o “Pacto do Mayflower”. Foi isso, com quase um século de adiantamento em relação à versão saxônica, o arranjo das Câmaras Municipais das vilas portuguesas no Brasil. Isoladas umas das outras e do resto do mundo, havia nos seus governos um grau de soberania popular que nem a metrópole nem ninguém antes jamais vivera. Por mais de três séculos, de três em três anos nossa gente organizou eleições, deu posse a governos, seguiu-lhes as determinações e os governantes entregaram seus cargos aos novos eleitos sem uma única quebra.
Nenhum outro povo na terra teve tão longa vivência de democracia. E até Tiradentes estivemos ao par da ponta mais moderna do pensamento político da época. O Brasil real organizou-se e construiu-se por si mesmo à margem do Brasil oficial, à margem do governo central instalado na praia e voltado para a metrópole antes e depois de 1808. Na informalidade, regido pelo costume, pela lei não escrita e financiado pelo “fiado”.
Só 15% da economia nacional, ao longo de todos os séculos do Brasil colônia, hoje sabe-se graças à econometria aplicada à historiografia a partir de 1970, era contabilizada e registrada nos anais da metrópole. A economia de exportação – e só ela – vivia no figurino casa grande e senzala, o “único que existiu” segundo os nossos historiadores “marxistas”. O outro Brasil, o do mercado interno, o da pequena propriedade, o dos empreendedores que produziam, movimentavam e comercializavam bens e serviços, pesando 85% de tudo o que se fazia aqui, viveu na clandestinidade e à margem da lei até o primeiro governo da “república” tomada de assalto pelos ditadores do credo “positivista” que nos assombra até hoje. Foi por mera distração deles que Rui Barbosa teve a oportunidade de baixar, a 17 de janeiro de 1890, os quatro decretos que constituíram a “lei áurea” da iniciativa privada no Brasil. “As companhias ou sociedades anônimas, seja civil ou comercial o seu objetivo, podem estabelecer-se sem autorização do governo”, rezava a peça que transformava num direito do cidadão investir sua poupança pessoal num empreendimento reconhecido pela lei... só que não. Prudente de Morais, o terceiro da “república”, foi o primeiro e talvez o único presidente brasileiro de todos os tempos que conhecia e praticou a teoria por trás dessa expressão. Desde então tem havido mais esforços para fazer regredir do que para fazer avançar o Brasil que Rui e ele vislumbraram.
Não tivemos uma nobreza hereditária, mas a de toga a substituiu com “vantagem”, pois até o “rei” ela submeteu. O direito brasileiro é ainda o do “direito adquirido” à diferença que sustentou o absolutismo monárquico e não o dos Iluministas e da república sem aspas que consagra a igualdade e criminaliza o privilégio.
E, cada vez mais, é isso que nos mata.
É essa a história que se conta na História da Riqueza no Brasil, livro que consolida uma inspiradora série de trabalhos anteriores de Jorge Caldeira, o libertador da historiografia brasileira. A história é a psicanálise das sociedades, e esta que ele conduz aponta claramente um caminho: o da soberania do povo a partir da base municipal. “A maior e mais rica parte” só se libertará da opressão da outra com a despartidarização das eleições, o voto distrital puro e os direitos de retomada de mandatos (recall) e referendo de leis pervertidas no âmbito dos municípios. Só então poderemos retomar a vocação democrática de que vimos sendo desviados à força.
*JORNALISTA
O Estado de São Paulo