quinta-feira, 14 de junho de 2018

Remédio para crise: voto consciente em outubro, diz Bacha

Para Bacha, Temer montou equipe econômica de maior qualidade, mas perdeu capital político lutando contra impeachment Foto: Tasso Marcelo/AE
“Voto consciente em outubro deste ano.” Com essa frase curta, escorreita e lógica o economista Edmar Bacha, um dos autores do Plano Real, a maior revolução social da História do Brasil, resume a chave para a economia brasileira sobreviver à crise atual e voltar a crescer. O presidente Michel Temer teve, segundo ele, o juízo de montar “uma equipe econômica da melhor qualidade (que) opera com relativa autonomia, dentro dos estreitos limites da atual conjuntura”. Bacha acha que isso só “não funcionou porque o presidente perdeu todo o seu capital político com a revelação de suas tratativas pouco republicanas na calada na noite com o empresário Joesley Batista … A partir daí o governo teve de se dedicar a barrar o impeachment, incapaz de desenvolver uma agenda econômica positiva”.
Edmar Lisboa Bacha nasceu em Lambari, MG. Casado com Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, reside no Rio de Janeiro desde 1979. Formou-se em economia pela Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG, em 1963. É um dos primeiros economistas brasileiros com doutorado no exterior, pela Universidade de Yale, em 1968. Em 1974, durante a ditadura militar, publicou uma fábula sobre o reino de Belíndia, junção de Bélgica com Índia, que se tornou desde então uma recorrente imagem do Brasil. Integrou a equipe econômica que dominou a hiperinflação, com o Plano Real. Foi também presidente do BNDES e do IBGE e professor em diversas universidades brasileiras e americanas. Foi consultor sênior do Banco Itaú BBA e presidente da Associação Nacional de Bancos de Investimento (Anbid, atual Anbima). Autor de 12 livros, é organizador de outros 18 sobre temas econômicos, políticos e sociais do Brasil, da América Latina e internacionais. Seu último livro autoral é Belíndia 2.0: Fábulas e Ensaios sobre o País dos Contrastes  (Civilização Brasileira, 2012). O último livro que organizou é A Crise Fiscal e Monetária Brasileira (Civilização Brasileira, 2016). Ambos foram agraciados com o Prêmio Jabuti. Publicou também cerca de 200 artigos em periódicos especializados, cerca de 100 artigos em órgãos da imprensa e concedeu cerca de 250 entrevistas a jornais e revistas brasileiros e internacionais. É sócio fundador e diretor do Instituto de Estudos de Política Econômica/Casa das Garças no Rio de Janeiro, e membro da Academia Brasileira de Letras e da Academia Brasileira de Ciências.
Em 1994, Bacha com equipe do Plano Real, que chegou ao sucesso como resultado do aprendizado de várias tentativas e erros. Foto: Acervo pessoal
A seguir Nêumanne entrevista Edmar Bacha:
JNP – O senhor cunhou uma metáfora perfeita para o Brasil: a Belíndia, parte Bélgica, parte Índia. Essa definição continua valendo em nossos tempos? O que mudou basicamente de lá para cá?
EB – O Rei de Belíndia é uma fábula que publiquei no jornal Opinião em agosto de 1974, no auge da ditadura militar. Era uma crítica aos efeitos negativos sobre a distribuição de renda da política econômica daqueles tempos
De lá para cá, houve avanços. O principal avanço foi o fim da ditadura militar e o retorno da democracia. Depois, o fim da hiperinflação e a instituição do tripé da política econômica: superávit primário nas contas públicas, câmbio flutuante e política de metas de inflação. E então, políticas buscando uma melhor distribuição de renda, como a valorização do salário mínimo e o Bolsa Família.
Em compensação, houve atrasos. A economia antes crescia a taxas elevadas, mas entrou num regime de semiestagnação a partir de 1980. Ficamos presos na armadilha da renda média. Além disso, apesar de arremedos de abertura e de privatização nos anos 1990, continuamos sendo uma das economias mais fechadas do mundo e com um alto grau de intervenção estatal na economia. Daí Mário Henrique Simonsen, a propósito dos exageros da Constituição de 1988, ter proposto para o País a alcunha de Banglabânia, um país que associava a pobreza de Bangladesh  ao fechamento econômico da Albânia.
Outro atraso é que os impostos aumentaram muito (de 25% para 35% do PIB), mas os serviços públicos continuaram miseráveis. Razão por que Delfim Neto propôs chamar o país de Ingana: impostos da Inglaterra, serviços públicos de Gana.
Infelizmente, agora tem mais, com o desvendamento da corrupção endêmica do sistema político-empresarial e da violência sem controle nas ruas. Viramos uma Rusmala, com níveis de corrupção da Rússia e a violência da Guatemala.
N – O senhor é um dos artífices do que eu, particularmente, considero a maior revolução social da História do Brasil: o Plano Real. O que reuniu e inspirou aquela equipe escolhida por Fernando Henrique Cardoso? O que permitiu o sucesso imediato e até inesperado no Brasil daquele ovo de Colombo?
B – É uma longa história, que começa no final da década de 1970 com a constituição do mestrado em Economia da PUC-Rio. Ali se reuniu um grupo excepcional de jovens economistas, todos com doutorado no exterior e preocupados com as grandes questões econômicas do Brasil de então, especialmente a hiperinflação. Diversas formulações novas daí resultaram, tanto de interpretação do fenômeno hiperinflacionário como de formas de combatê-lo.
O Plano Cruzado foi uma primeira tentativa de estabilização de que alguns desses economistas participamos. Éramos muito jovens e jejunos em questões de política, enfrentando nossa primeira experiência de administração pública e sem poder efetivo de decisão. Não deu certo.
Passaram-se muitos anos e outros planos frustrados de estabilização. Deles ficaram mais lições sobre o que não fazer.
A ida de Fernando Henrique Cardoso (de quem muitos de nós éramos amigos de longa data) para o Ministério da Fazenda, em 1993, com amplos poderes para executar um novo plano de estabilização, deu-nos uma segunda oportunidade de aplicar não só nossas hipóteses teóricas, mas também os conhecimentos que adquirimos com os insucessos anteriores. Dessa vez funcionou.
Em 2009, Bacha com Fernando Henrique em lançamento do livro do ex-chefe, colega acadêmico e amigo de longa data. Foto: Paulo Giandalia/AE
N – Que circunstâncias políticas, econômicas, financeiras e até históricas impediram que aquela estrutura tão sólida montada sobre moeda estável, inflação controlada, liberdade cambial e austeridade fiscal sobrevivesse ao segundo governo Fernando Henrique e afundasse no populismo amoral do segundo governo Lula, depois do sopro da brisa da Carta aos Brasileiros, da autoria de Antônio Palocci, hoje preso, condenado na Justiça por corrupção e lavagem de dinheiro?
B – Os economistas temos uma expressão – o efeito voracidade – para caracterizar o impacto político negativo de uma bonança de recursos naturais em países com instituições fracas. Também há outra expressão que é pertinente: a maldição dos recursos naturais, creio que inventada para tentar explicar como a Venezuela, tão rica de petróleo, se tornou a desgraça que hoje é.
No período de 2003 a 2008, na frase do economista americano Kenneth Rogoff, o mundo experimentou  “o mais longo, o mais forte e o mais amplamente disseminado ciclo de expansão da época moderna”. O Brasil foi particularmente beneficiado por essa bonança: alta dos preços de nossas exportações, entrada maciça de capitais estrangeiros, descoberta do pré-sal. A consequência foi que, parodiando a frase já histórica da semana passada do ex-governador Sérgio Cabral, Lula não soube se conter diante de tanto poder. Até que foi parado pela Lava Jato.
N – Algum dos pilares da política de estabilidade e controle fiscal sobreviveu ao segundo governo Lula e aos dois mandatos de Dilma Rousseff? Quais foram? E que causas permitiram que isso ocorresse?
B – Tentar derrubar esses pilares, bem que Dilma tentou, com a tal de “nova matriz macroeconômica”, apenas um novo nome para o velho populismo econômico. Mas quando a inflação subiu ficou claro, até mesmo para o PT, que isso os levaria a um desastre eleitoral. Esse foi outro legado do Plano Real: mostrar que a estabilização vence eleições e que a inflação derrota aqueles que estão no poder.  Tentaram dar uma guinada de 90 graus com a nomeação de Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda, mas logo ficou claro que uma andorinha só não faz verão. Deu no que deu.

N – O senhor esperava ou se surpreendeu com os ataques feitos ao edifício da força-tarefa do Plano Real pela conjunção de doenças antigas da ordem econômica no Brasil: gastos desenfreados do Estado estroina, uso político das estatais, em especial a política de preços da Petrobrás, crescimento exponencial da burocracia do Estado e uso abusivo do orçamento público, sobre o qual Tancredo Neves já advertia, na pré-história do sucesso do primado do respeito ao valor da moeda, com seu “é proibido gastar”?
B – O período de consolidação do Plano Real incluiu a aprovação da Lei da Responsabilidade Fiscal e a instituição do tripé da política econômica já mencionado. Na Carta aos Brasileiros Lula se comprometeu a seguir essas regras e, de fato, o fez no início de seu primeiro mandato. Sobrevieram a crise do mensalão e a queda de Palocci. Internacionalmente, com a ascensão da China e o auge das commodities o País passou a desfrutar um céu de brigadeiro. Foi nessas circunstâncias que se deu a guinada de Lula da responsabilidade fiscal para o social-desenvolvimentismo, de uma forma então bem expressa pela então chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff: “Gasto é vida”.
Enquanto durou a bonança externa, parecia tudo bem. Mas o cenário internacional se agravou a partir da crise financeira de 2008-2009. Manteve-se, não obstante, o curso da mesma política, com a adição de controles de preços e do câmbio. Quando houve uma tentativa de ajuste, a partir da reeleição de Dilma, era tarde demais: a consequência foi a mais longa e a segunda mais profunda recessão econômica de nossa História.
Bacha com a mulher, Maria Laura, e o filho Carlos comemorando o Jabuti de 2013 por O Rei de Belíndia. Foto: Acervo pessoal
N – Até que ponto a roubalheira desencadeada pela volúpia do PT em se lambuzar do mel que nunca havia provado, auxiliado por cúmplices da velhíssima política patrimonialista e pela tibieza da oposição da soit-disant social-democracia do PSDB, corroeu a solidez do edifício do tripé moeda forte, responsabilidade fiscal e câmbio flutuante? O senhor diria que o mal da corrupção institucionalizada já afastou para um horizonte muito mais longínquo sonhos que voltaram a ser nutridos depois do sucesso do Real?
B – Estranhamente, mesmo um Executivo impopular como o atual, comprometido pela Lava Jato e sobrevivendo na base do toma cá, dá lá, com um Congresso corrompido, tem consciência da importância política de procurar manter íntegro o tripé da política econômica. Uma equipe econômica da melhor qualidade opera com relativa autonomia, dentro dos estreitos limites da atual conjuntura. É um bom sinal para o futuro. O que preocupa é a situação fiscal, que se agravou sobremaneira e cujo enfrentamento exige medidas duras, particularmente no que se refere à reforma da Previdência. Não é para este governo. Vamos ver o que acontece a partir das eleições de outubro.
Em 2012, Bacha com a mulher no lançamento do livro Todo dia amanhece no Arpoador, de Maria Laura. Foto: Acervo pessoal
N – Para deter os efeitos letais do populismo que levou aos 24 milhões de desempregados e desiludidos, Temer, ao substituir Dilma depois do impeachment, tentou uma fórmula mágica da convivência da histórica política da rapina do MDB de sempre com o neoliberalismo do time dos sonhos da economia liderado por Meirelles, Mansueto, Goldfajn, Parente e outros. O senhor diria que não funcionou porque são água e óleo e não se misturam ou pela ligação atávica do presidente com seus antigos aliados?
B – Não funcionou porque o presidente perdeu todo seu capital político com a revelação de suas tratativas pouco republicanas na calada na noite com o empresário Joesley Batista, no Palácio Jaburu, em março de 2017. A partir daí o governo teve de se dedicar a barrar o impeachment, incapaz de desenvolver uma agenda econômica positiva.
N – O sonho (eu diria até delírio) eleitoral de Meirelles, ao sair do governo para disputar a eleição, ajudou a aprofundar a perda de autoridade do governo central depois do lamentável episódio do movimento dos transportadores, que me parece ter desmontado qualquer tentativa de salvar algo daquilo que Temer chamava de seu legado?
B – Parece-me que Eduardo Guardia está mais do que capacitado para dar conta do recado no Ministério da Fazenda, contando com a ajuda de Ilan Goldfajn na presidência do Banco Central. O problema não é esse. É, por um lado, a acefalia política do atual governo. Por outro, a incerteza sobre o que as urnas nos reservam em outubro deste ano.
N – Que conselhos sua experiência profissional e sua sensibilidade acadêmica teriam a dar ao País para evitar que aquilo que antes se pensava ser a luz no fim do túnel seja apenas o farol de um trem descarrilado?
B – Voto consciente em outubro deste ano.
N – Espera-se que o resultado da eleição de outubro/novembro resolva de vez a tragédia da Previdência falida, das contas públicas destrambelhadas e de um país afundado na tragédia da violência, da ineficácia da educação, da perda de sentido das palavras saúde e pública pronunciadas em conjunto de candidatos a presidente sem projeto, de um Congresso suspeito e de uma Justiça dividida entre o combate à corrupção na primeira instância e tribunais que se põem a serviço das elites corrompidas desde sempre. Que saídas o senhor vê para esse impasse?
B – Não creio que tecnicamente haja grandes dúvidas. Há consciência da gravidade do desequilíbrio das contas públicas e dos remédios amargos que precisam ser aplicados para deter a expansão da dívida pública sem sacrifício da política social. Há também razoável consenso técnico de que somente recuperaremos a capacidade de crescer com amplas reformas: tributária, educacional e de abertura ao comércio internacional. Nada disso vai acontecer sem lideranças políticas esclarecidas. E estas só podem sair das urnas. Tomara que saiam.
Em 2017, Bacha entra na Academia Brasileira de Letras para tomar posse na cadeira 40, cujo patrono é o Visconde do Rio Branco . Foto: Guito Moreto/O Globo

Por José Nêumanne, O Estado de São Paulo