1. Um dos mistérios da vida coletiva é justamente o sentido da vida coletiva. Movidos a individualismo, ficamos estupefatos diante do significado do coletivo que, a rigor, não deveria ter capacidade de criar as circunstâncias não previstas que nascem do previsto e do esperado. Do café mal feito ao gol do adversário; da vitória mundial no futebol da chamada sub-raça, forçada a redefinir-se; da investigação policial que — eis o inesperado do inesperado — leva à prisão de quem se pensava acima da lei e — eis outra ironia — torna republicano um sistema avesso à igualdade.
2. O coletivo não é uma soma de indivíduos. Ele tem sua realidade e os seus códigos — a língua, a geografia e a história. Suas constituições e palcos nos quais entramos sem sermos chamados. Tal conjunto se faz por determinações coletivas. Concordo com Lévi-Strauss quando ele freudianamente põe em dúvida a consciência individual. E com Louis Dumont quando ele denuncia o primado do individuo (e da parte) como um valor instituído pela modernidade.
3. O esporte é uma instituição social delimitada. Ao contrário da rotina que não tem fim, ele tem tempo, espaço, gestos, objetos, vestimentas e regras próprias. No futebol da Copa que me embriaga, tirando os goleiros, nenhum jogador pode tocar a bola com a mão. Mas no mundo público nacional, dentro do qual o futebol acontece, os poderosos podem meter a mão nos dinheiros públicos e é somente neste século vinte e um que se cogita em puni-los com as reações que todos conhecemos. De um lado, há os que querem uma igualdade de todos como no futebol; do outro, há os que querem mudar as regras ainda que isso custe o fim do jogo.
4. Há um elo óbvio entre esporte e democracia.
5. No futebol há um dinamismo contrário às rotinas. Mas as regras ancoram tudo. Numa sociedade constituída pelo “jeitinho” para certas situações e pessoas, conforme revelou minha colega e querida amiga Lívia Barbosa, começamos a ter uma clareza futebolística. Sem limites não há chance de viver democraticamente. A distribuição equitativa de justiça e bem-estar exige talento e, acima de tudo, respeito às leis.
6. No esporte não cabe populismo, embora os populistas, fascistas e seus simpatizantes possam tirar proveito dos seus resultados. O humano não é puro.
7. Imagine um jogo de futebol no qual os jogadores ricos, famosos e de talento pudessem seguir seus desejos.
8. A famosa “transparência” é simplesmente a coerência entre pessoa, papel e norma coletiva. Quando isso não ocorre temos malandragem. E o malandro, conforme mostrei em “Carnavais, malandros e heróis”, é personificado por Pedro Malasartes — o rei do mal-entendido que desmantela o planificado. Mestre da ironia, Malasartes é uma saída para o trabalho estigmatizado pela escravidão e por um sistema dominado por um Estado opressor e juridicamente onipotente.
9. Tenho reiterado que a experiência inconsciente da igualdade é básica na popularidade desse esporte no Brasil e no mundo. A integração pela igualdade permitiu juntar pretos e brancos, ricos e pobres, analfabetos e letrados. Foi o futebol que permitiu redefinir nossa autoestima. Hoje, quando punimos os pênaltis cometidos pelos poderosos, ele ajuda a desmistificar o nosso enraizado populismo.
10. Condenar um goleiro que “engole frangos” — um “frangueiro” — como se dizia antigamente, é uma coisa. Outra coisa é saber que o “frango” foi proposital num jogo que envolve o país e demanda honestidade e altruísmo — serviço para a coletividade e não para si próprio. O esporte, como o teatro, o romance (e os mitos) não mente porque eles são ficcionais. Num filme ou romance não há fake news, porque tudo é fake. Nessa esfera da vida, há uma desigualdade de raiz entre o produtor e o espectador.
11. Situado entre ficção e a realidade, o esporte é, para lembrar Victor Turner, um “liminoide"— um espaço entre a realidade inexorável do trabalho e o entretenimento que permite com ela lidar.
12. A crise brasileira tem tudo a ver com luta para aplicar no campo político essa honradez às regras que legitima e dignifica o futebol.
PS: Atordoado pelo futebol, eu digo. Não adianta reclamar. Na vida, como no jogo, temos que sobreviver a todas as falhas: as nossas, as que fazem parte da partida e as dos juízes.
Roberto DaMatta é antropólogo
O Globo