domingo, 24 de junho de 2018

"Garrincha, um craque barroco", por Cacá Diegues

Jogador extraordinário, craque consumado em qualquer posição que jogasse, numa pelada ou no Maracanã, Garrincha fazia, da ponta direita, um matadouro de adversários perplexos


Por motivos às vezes muito diferentes uns dos outros, Garrincha, o mais original de todos os nossos jogadores de futebol, foi sempre equivocadamente mitificado pela imprensa, pelos especialistas e pelos torcedores. Tratado como exemplo sublime de nossa inocência e generosidade como povo, alguns talentosos jornalistas esportivos e, depois, quase todos os brasileiros de seu tempo o consideraram o suprassumo da simplicidade e do desligamento do que há de mau no mundo. Uma verdadeira alma de passarinho, como os passarinhos com que, dizia-se, ele convivia nas matas de Pau Grande, onde nascera e morava, nas montanhas vizinhas ao Rio de Janeiro.

E, no entanto, extraordinário jogador de futebol, craque consumado em qualquer posição que jogasse, numa pelada ou no Maracanã, Garrincha fazia, da ponta direita em que jogava, um matadouro de adversários perplexos, incapazes de evitar, não apenas seus dribles imprevistos e nunca vistos, mas também a desmoralização que ele os fazia sofrer, sempre com um sorriso se armando nos lábios e a ginga desmoralizante de seus largos quadris e pernas tortas. Garrincha foi o mais cruel jogador de futebol para quem o tentasse marcar, para quem estivesse à sua frente.

Seus contemporâneos lembram certamente um amistoso contra a Itália, jogado em Milão, na preparação da seleção brasileira para o campeonato mundial de 1958, o primeiro do qual saímos campeões, na Suécia. Garrincha disputava a posição com Joel, ponteiro aplicado do recente tricampeonato carioca do Flamengo, conquistado no início daquela década. E era Joel, clássico ponteiro de muitas qualidades, o preferido da torcida, da imprensa e da moderna comissão técnica. A favor de Garrincha, estavam apenas os visionários do futebol brasileiro, que sabiam que craques como ele e Pelé eram o emblema de uma nova geração de um novo futebol.

Pois naquela noite, em Milão, mesmo disputando uma partida que seria seu teste final para ocupar um lugar na seleção, Garrincha irritava, com o que fazia em campo, todos os dirigentes conservadores da então CBD. Sem dar bola alguma para as instruções que recebia aos gritos do banco brasileiro, ele praticava todo tipo de jogada que nossos técnicos cartesianos consideravam irresponsável, quase sempre brincando com a bola, os companheiros e os adversários, como costumava fazer regularmente, até nos treinos do próprio Botafogo, onde ele atuava. Em determinado momento, Garrincha recebeu uma bola no meio do campo e saiu com ela colada aos pés, driblando quem passasse à sua frente, uma, duas ou mais vezes, humilhando cada um que tentasse interromper seu zigue-zague em direção ao gol adversário.

Diante do goleiro italiano, Garrincha parou, olhou para trás e viu que não vinha mais ninguém atrás dele. Aí não vacilou e, no mesmo ritmo que vinha, sentou o pobre arqueiro na grama de Milão. Mas não entrou com bola e tudo, como era de se esperar. Garrincha voltou com ela para a entrada da área italiana, driblou duas vezes o goleiro que se levantara em pânico (um drible para vir, outro para ir) e entrou enfim serenamente com a bola na rede adversária.

O banco do Brasil não gostou do que Garrincha havia feito. Durante toda a jogada, gritavam mandando passar a bola, ordenavam que tentasse logo o gol. O banco decisivo jurava que Garrincha nunca mais jogaria na seleção brasileira, ele era moleque demais para a seriedade da missão. Era desobediente, imprevisível, irresponsável, peladeiro. 

Ninguém sentiu pena dos defensores e do goleiro que Garrincha humilhara, ninguém falou nisso, não ocorreu a ninguém tocar nesse assunto. Muito menos depois, quando um complô comandado pelo gosto da torcida, jornalistas inteligentes e líderes da seleção como Nilton Santos e Didi, ele se tornaria o titular de nossa ponta direita e um dos maiores astros daquela primeira Copa do Mundo vencida pelo Brasil.

Durante a qual, o que Garrincha fazia com seus adversários era algo parecido com o que fizera com os italianos em Milão, o que costumava fazer com os laterais esquerdos do campeonato carioca. Parecido mais ou menos com o que depois descobrimos que fazia com seus passarinhos, na mata de Pau Grande: caçava-os sem muita poesia e sem nenhuma piedade. A poesia estava no jeito de ele ser no mundo.

Garrincha talvez tenha sido o nosso primeiro grande craque barroco, num país de forte cultura barroca, popular ou erudita, que não deseja reconhecê-la por medo do que isso possa significar, ameaçando o que os outros consideram civilizado. Sempre preferimos elogiar a racionalidade realista que parece conhecer o mundo e apaziguar nossa ignorância com essa ilusão. Num mundo tão incompreensível como esse em que vivemos hoje, talvez a volumosa cultura barroca de nossas origens pudesse ser mais libertária, a nos indicar um futuro menos comprometido com o que já se sabe. E que sabemos que não presta.

O Globo

Cacá Diegues é cineasta