O inédito avanço da Justiça no sentido de punir empresários e políticos envolvidos em grandes esquemas de corrupção, como visto nos últimos anos, rompeu com uma cultura histórica no Brasil. E agora assistimos uma reação contra este avanço. A avaliação é do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), que saudou, em especial, uma mudança histórica: o fim da proteção irrestrita aos criminosos do colarinho branco.
— O que está mudando no Brasil é a criação de um Direito Penal mais igualitário. É preciso ter uma Justiça moderada, igual, justa, que garanta o direito de defesa. Desafio qualquer criminalista a demonstrar que eu tenha condenado alguém que não fosse com prova inequívoca nos autos. Então, essa história de punitivismo é balela de quem está tendo que reaprender a trabalhar. Porque o sistema era feito para proteger essas pessoas — avaliou Barroso. — As pessoas estavam acostumadas com um sistema penal que não funcionava, sobretudo para o colarinho branco. Ninguém que ganhasse mais de cinco salários mínimos era condenado no Brasil por coisa alguma. Você tinha uma cultura nessa área em que ninguém jamais era punido.
Ao rechaçar a pecha de integrar a corrente “punitivista” na Suprema Corte, em contraposição a uma ala “garantista” que entende ter uma posição de maior atenção aos direitos dos réus, Barroso procurou desconstruir a visão de que estamos vivendo um “Estado policial” no Brasil.
— Há uma visão brasileira de que devido processo legal é o que não termina nunca. E que garantismo é a garantia de que ninguém nunca será punido por coisa alguma. Um Estado que pune um empresário que ganhou licitação porque pagou propina não é estado policial, é um Estado de Justiça. O Estado que pune um banqueiro com lucros extravagantes porque paga propina para ter inside information não é Estado policial, é um Estado de Justiça. A injustiça era tão naturalizada no Brasil, que um pouquinho de Justiça que começa a ser feita, parece uma revolução — afirmou, ao mencionar um dos temas mais debatidos do momento, a prisão após a condenação em segunda instância: — Aquilo do que mais se queixam é a execução penal após a condenação por um tribunal de segunda instância. É assim no mundo inteiro. Um processo tem de durar um ano, um ano e meio. Essa cultura brasileira de o processo levar dez, 20 anos, até prescrever, é uma vergonha, é um terceiro-mundismo explícito que precisamos derrotar.
O debate sobre o início do cumprimento de pena após a condenação em segunda instância pode voltar ainda ao plenário do STF. Barroso é favorável ao entendimento vigente atualmente, que permite a execução penal. No encontro E Agora, Brasil?, fez uma retrospectiva sobre a evolução da norma. Lembrou que, entre 1941 (data da promulgação do Código de Processo Penal) e 1989, a execução penal se dava após condenação em segunda instância — e, muitas vezes, o condenado no primeiro grau já recorria preso. Após a Constituição de 1988, o entendimento da Justiça foi de que a execução provisória não ofendia a garantia da presunção de inocência. No período entre 2009 e 2016, vigorou no Brasil a prisão apenas depois de todos os recursos apreciados.
— O STF passou a exigir o trânsito em julgado. Produziu um efeito devastador. Os advogados passaram a ter uma litigância procrastinatória (atuar apenas para arrastar o processo no tempo), para não deixar transitar em julgado. Isso aumentou a seletividade do sistema também, porque quem não tem advogado para ficar interpondo um monte de recurso, esse vai preso. Depois, o Supremo viu que havia criado um problema, e voltou atrás.
PROCESSO EM ATÉ UM ANO E MEIO
Um dos grandes problemas da Justiça para atuar com mais eficiência, na visão de Barroso, é a lentidão dos processos. Ele apresentou uma proposta para a redução do tempo até a sentença.
— O sistema processual deveria funcionar assim: o juiz recebe a petição inicial ou denúncia. Nesse momento, manda ouvir a outra parte. Quando recebe a resposta, juiz já tem ideia da complexidade da causa e acho que ele deveria dizer: “Daqui a três, ou seis meses, vou levar autos para sentença, portanto produzam suas provas”. As partes deveriam produzir as provas. O juiz, se quiser, eventualmente, poderia ouvir testemunhas. Não dá para o juiz ficar à mercê da manipulação das partes, que arrolam 30, 50 testemunhas — propõe Barroso. — Com isso, acho que todo processo poderia acabar em primeiro grau em menos de um ano. E, em segundo grau, em mais três ou seis meses. Um ano e meio, pra mim, é o limite razoável de duração de processo. Tem que mudar cultura de processo civil e penal italianos, que acho que não funciona satisfatoriamente bem.
O Globo