O dirigente soviético Josef Stalin, um genocida na classe de Adolf Hitler e Mao Tsé-tung, morre de repente. A cúpula comunista não sabe o que fazer: e se por acaso ele se recuperar do derrame, e ficar sabendo que eles o deram como morto? Vão todos na hora para o paredão, tomar uma bala na cabeça. Por outro lado – e se essa figura que é alvo de tanto temor quanto de adoração cultivada pela propaganda massacrante estiver mesmo bem finada? Quem vai ser o novo ser supremo do Kremlin, e arcar não só com o poder ilimitado como também com o desmanche inevitável da férrea ordem soviética? (*) Na visão do escocês Armando Iannucci, que há seis temporadas vem vertendo ácido nos bastidores da Casa Branca com a série Veep – em que a comediante Julia Louis-Dreyfuss brilha como uma vice-presidente venal e boçal –, segue-se, na Moscou de 1953, uma comédia de erros composta pela montagem grandiosa que foi o funeral de Stalin e pela disputa gananciosa e infantiloide pelos despojos do poder. O elenco de A Morte de Stalin, que está em cartaz no país, é um espetáculo – começando por Simon Russell Beale como o depravado carrasco Lavrenti Beria e Steve Buscemi como o espalhafatoso mas espertíssimo Nikita Kruschev, e prosseguindo com Michael Palin como o hmmm, flexível Molotov, Jeffrey Tambor como o débil Malenkov e Jason Isaacs como o grosseirão marechal Zhukov, o herói de guerra que liderou a vitória contra os nazistas em território soviético. O roteiro de Iannucci e sua direção são afiadíssimos: poucas vezes, na história, tanta gente passou tanto medo ao mesmo tempo (e durante tanto tempo) quanto na URSS de Stalin – e Iannucci transforma esse transe coletivo num hilariante teatro do ridículo.
E pode?, alguns têm perguntado, sugerindo que a resposta deve ser “não, não pode”. É curioso: todo mundo entendeu o espírito da coisa quando Mel Brooks ridicularizou Hitler em Os Produtores – no que fez muitíssimo bem –, e uma parte considerável da plateia se enterneceu com as fantasias de sobrevivência ao Holocausto em A Vida É Bela, do italiano Roberto Benigni, e Trem da Vida, do romeno Radu Mihaileanu – que, essas sim, podem constituir uma atenuação bem-intencionada mas prejudicial do horror. Suspeito que a discussão sobre se a comédia é um registro apropriado voltou à baila com A Morte de Stalin por um motivo dúbio – porque nunca a intelligentsia defendeu o nazismo e ninquém (bem, quase ninguém) se sente insultado em ver Hitler passar vexame, mas o comunismo no modelo soviético e o aparato stalinista foram apaixonadamente defendidos por parcelas expressivas da intelectualidade e de lideranças políticas. Aliás, o são até hoje, de forma escamoteada ou não. Não é casar sátira a uma era de pavor, repressão, fome, tortura e morte que incomoda alguns em A Morte de Stalin – é a irreverência de Iannucci para com o objeto de sua afeição.
(*) Só para lembrar, de 1953 a 1955 a URSS foi governada (maneira de dizer) pela Troika, o triunvirato formado por Malenkov, Molotov e Beria. Em 1955, Kruschev os enxotou, pôs-se no comando e até ser deposto por Brezhnev, em 1964, arregaçou as mangas num grande desmantelamento da máquina stalinista.
Leia a seguir a resenha completa:
Pastelão Comunista
Em A Morte de Stalin, Armando Iannucci, o criador da série Veep, encena, com um elenco impecável, uma corrosiva farsa do poder na União Soviética de 1953
Quando escreveu e filmou, em 1967, a comédia Primavera para Hitler (depois transformada no musical e na refilmagem batizados de Os Produtores), Mel Brooks partiu do princípio de que nada ofenderia e diminuiria mais o genocida austríaco do que torná-lo objeto de ridículo – daí a opção de retratar Hitler como uma diva cheia de fricotes. O roteirista e diretor escocês Armando Iannucci usa o mesmo princípio em A Morte de Stalin: na noite de 5 de março de 1953, depois de assinar uma das suas listas diárias de desafetos a ser executados e entregá-la ao chefe do aparato de repressão, Lavrenty Beria (Simon Russell Beale), o dirigente soviético sofre uma sapituca, bate as botas e estica as canelas – mas não sem antes perder o controle da bexiga e deixar uma extensa poça de urina no carpete. Apavorados com a ideia de associar a palavra “morte” ao nome “Josef Stalin” numa mesma frase, os asseclas do ditador tentam asseverar seu estado inanimado dando pulinhos e fazendo manobras desengonçadas em volta do cadáver, a fim de não ensopar os sapatos no xixi – e o espectador se vê às gargalhadas, daquelas que fazem escorrer água dos olhos. Stalin, o mais implacável, temido e poderoso comandante da União Soviética, o homem responsável pela morte de milhões, passa desta para a próxima cheirando a mictório público: em mais uma sulfúrica farsa política, Iannucci, o criador da série Veep (que reduz a pó os bastidores da Casa Branca), ombreia com Mel Brooks.
Como anuncia o título, entretanto, não é de Stalin que o filme trata, mas do que se segue a ele: não apenas o súbito vácuo do poder e os conchavos decorrentes, como a extrema infantilização política dos quadros do Kremlin. Figurões como o titubeante comissário Georgi Malenkov (Jeffrey Tambor), o desfrutável Vyacheslav Molotov (Michael Palin), o bufão Nikita Khruschev (Steve Buscemi), o sinistro Beria e os oportunistas Nikolai Bulganin (Paul Chahidi) e Lazar Kaganovich (Dermot Crowley) fazem reuniões de teatro do absurdo. Khruschev, empurrado para a tarefa humilhante de mestre de cerimônias do funeral (“Cortinas com ou sem franzido?”, pergunta, ansioso, seu assistente), revela-se bem mais que um pândego, e entra em guerra com Beria pelo controle da situação e da doidinha filha de Stalin, Svetlana (Andrea Riseborough). Todos fazem o que podem para neutralizar o filho bêbado do ditador, Vasily (Rupert Friend). Quando as ordens e contraordens provocam um massacre nas ruas de Moscou, entra em cena o grosseirão marechal Zhukov (Jason Isaacs), que arruma a bagunça do jeito de sempre.
Os atores são um primor, e não há um deles sequer que não transforme sua cena em um evento. Numa participação pequena, Paddy Considine, por exemplo, faz maravilhas como o funcionário da rádio que tem de chamar a orquestra e a pianista temperamental (Olga Kurylenko) de volta ao palco para repetir desde o início uma apresentação: ela não foi gravada, e Stalin quer para já uma cópia. A plateia, louca para ir para a cama, ouve o nome do dirigente e já entra numa daquelas rodadas de aplausos que eram questão de vida ou morte – ninguém era besta de ser o primeiro a parar. Como em Veep, Iannucci se vale do pastelão – mas, aqui, para expor o mais puro terror.
Isabela Boscov Publicado originalmente na revista Veja em 06/06/2018 Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A © Abril Comunicações S.A., 2018 |
Trailer
A MORTE DE STALIN (The Death of Stalin) Inglaterra/Canadá/França/Bélgica, 2017 Direção: Armando Iannucci Com Steve Buscemi, Simon Russell Beale, Jason Isaacs, Jeffrey Tambor, Michael Palin, Andrea Riseborough, Rupert Friend, Olga Kurylenko Distribuição: Paris Filmes Veja |