sábado, 28 de junho de 2014

Marcos Leôncio: “A PF não pode mais ser um departamento”

Representante dos delegados afirma que a Polícia Federal precisa de mais autonomia e que a Justiça estabeleça regras claras para que investigações criminais sejam isentas e eficientes


MARCELO ROCHA E DIEGO ESCOSTEGUY -Epoca





No momento, nada inflama mais o presidente da Associação Nacional dos Delegados dePolícia Federal (ADPF), o delegado Marcos Leôncio, do que os desdobramentos da Operação Ararath, deflagrada pela polícia em maio. Direcionada a combater um sistema de corrupção no governo do Mato Grosso, a Ararath seria só mais uma, se não fosse por um detalhe. A pedido do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, decretou o segredo de Justiça da operação. A Polícia Federal foi proibida até mesmo de divulgar uma nota oficial. “É uma decisão altamente discriminatória. Ela amordaça apenas a Polícia Federal”, diz Leôncio. “Não existe nada semelhante em outras democracias." Nesta entrevista concedida a ÉPOCA,  Leôncio fala dos riscos desse precedente para futuras investigações e defende maior independência para a Polícia Federal. “A PF não pode mais ser um departamento”, afirma.
ÉPOCA – Por que o senhor considera tão grave a decisão do ministro Dias Toffoli de proibir que a PF divulgue qualquer informação sobre a Operação Ararath?
Marcos Leôncio – 
A Polícia Federal tem o dever de informar à sociedade os serviços que realiza. Desde a Constituição de 1988, em diversas operações da Polícia Federal envolvendo pessoas com prerrogativa de foro (autoridades que só podem ser investigadas e julgadas pelo Supremo Tribunal Federal), nunca houve decisão judicial no sentido de proibir a polícia de falar. Essa é uma gritante violação ao direito de prestar informações. Nem na fase mais crítica da PF, quando a instituição foi acusada de agir de forma midiática, houve uma reação tão extremada por parte do Judiciário e da Procuradoria-Geral da República. É uma decisão altamente discriminatória. Ela amordaça apenas a Polícia Federal, permitindo que qualquer tipo de informação possa ser prestada pelo procurador-geral da República ou pelo Judiciário. Não existe nada semelhante em outras democracias.
ÉPOCA – A que se atribui essa decisão? A Polícia Federal está incomodando?
Leôncio –
 É motivo de curiosidade dentro da PF a razão pela qual especificamente esse caso mereceu esse tratamento diferenciado. Eu gostaria de entender essa reação do procurador-geral da República. Existem várias operações que envolvem pessoas com prerrogativa de foro, todas passaram pelo crivo do procurador-geral da República. Ele precisa explicar o que essa operação tem de diferente. O procurador-geral da República também deve prestar contas.
ÉPOCA – A associação pode fazer algo judicialmente?
Leôncio – 
Se isso se tornar uma prática, vamos alegar que é discriminação. O dever de se resguardar se aplica a todos. Não só à Polícia Federal.
ÉPOCA – E a todos os casos.
Leôncio – 
Sim. Até porque é a quinta fase dessa operação, onde boa parte dos fatos já é de conhecimento do público desde 2011. Ela nem é uma operação que possa dizer que tenha fatos que mereçam tamanha preservação. Outra preocupação: o procurador-geral da República passa a ter, nesse formato de prerrogativa de função, poderes inimagináveis. Hoje, a figura mais poderosa da República é o procurador-geral da República. Ele decide quem pode ser indiciado ou não. É uma decisão dele se uma pessoa com prerrogativa de função será investigada ou não. E, agora, ele chega ao extremo de decidir quem pode falar. Somente o procurador-geral da República poderá explicar à sociedade brasileira quais motivos o levaram a proceder dessa forma nessa operação. Há uma insegurança jurídica. A Polícia Federal trabalha para atender os precedentes do Judiciário, vai se adaptando para driblar dificuldades em suas investigações. Aí, aparece a prerrogativa de função. O caso Alstom se resolve de uma forma, a Operação Monte Carlo se resolve de outra forma, a Lava-Jato já é outra. Presta informações numa, não presta informações noutra. Essa insegurança jurídica dificulta sobremaneira o trabalho da Polícia Federal.
ÉPOCA – Há um desânimo moral de quem está investigando, não?
Leôncio – 
Exatamente. É fundamental ter regras claras. E o Brasil precisa enfrentar essa questão da prerrogativa de função. Por que esse tipo de preocupação só existe quando há pessoas com prerrogativa de foro? Que Constituição é essa que tem uma preocupação maior em blindar essas pessoas? Será que a privacidade de pessoas com prerrogativa de foro é mais importante? Essa é uma questão que deve ser pensada muito claramente. No caso da (operação) Lava-Jato (que foi interrompida pelo STF), uma investigação com oito ações penais, com um juiz competente sob a supervisão do Ministério Público, quando você também tira (da primeira instância do Judiciário) essas ações penais, gera uma insegurança jurídica na polícia. Como eu vou continuar as demais investigações? Quais são as regras? O que eu estou fazendo de errado?
ÉPOCA – A Polícia Federal tem liberdade para investigar quem quer que seja?
Leôncio –
 Tem.
ÉPOCA – Como o senhor definiria hoje o estado de ânimo dos delegados da Polícia Federal diante desses fatos?
Leôncio –
 Os delegados da PF estão absolutamente insatisfeitos. Há uma insatisfação generalizada com o governo. Não é só o Poder Executivo: é com os poderes da República, com o Estado. A Polícia Federal, outras instituições e a sociedade estão mostrando onde estão os problemas. Todos sabem que esses problemas estão aí, mas não são enfrentados.
ÉPOCA – As instituições que podem lidar com esses problemas estão enfrentando dificuldades nunca antes vistas para fazer seu trabalho?
Leôncio –
 Tanto do ponto de vista da insegurança jurídica, como dos problemas estruturais. A Polícia Federal tem problemas internos que precisam ser enfrentados. Os delegados já mostraram ao governo que a Polícia Federal precisa passar por reformas. A polícia tem que se modernizar.
ÉPOCA – Estamos assistindo ao caminhar de um momento muito difícil, de dois fenômenos: a prerrogativa de foro e a briga entre a polícia e o Ministério Público.
Leôncio – 
O problema da prerrogativa de foro tem que ser enfrentado, e a relação de poder entre o Ministério Público e a polícia, notadamente a Polícia Federal, tem que ser resolvida. O Supremo tem que resolver definitivamente essa questão. Nós não concordamos que a investigação seja do Ministério Público. Não pode na República a investigação depender de uma pessoa. Nós já tivemos "engavetadores gerais". Nós tivemos aquela Operação Vegas, depois transformada em Operação Monte Carlo, que até hoje está muito mal esclarecida (a investigação ficou parada por mais de dois anos). Não se explicou o que fez, o que não fez. A procuradoria tem atuado fortemente para impedir que a polícia faça cooperação internacional. É um modelo de competição predatória. Então, esse modelo deve ser repensado. As duas instituições são extremamente importantes e não podem ser vistas como adversárias. O trabalho deve ser conjunto.
ÉPOCA – O que é possível fazer para contornar os problemas para que o país tenha investigações criminais harmônicas, independentes de caprichos ou empatias? A quem cabe encontrar as soluções?
Leôncio – 
A crise existe na indefinição. A solução está na definição de regras. Isso passa pelas decisões do Supremo e também pelo Congresso, na regulamentação na forma da lei do que o Supremo decidiu. Polícia não é Ministério Público, não é CNJ. Polícia é a sociedade. Então, o controle externo da atividade policial tem que ser repensado. Quando eu dou esse controle externo apenas ao Ministério Público, estamos falando de controle de uma instituição sobre outra. Isso já está provado que não funciona. Temos que pensar em algo diferente.
ÉPOCA – Na prática, esse controle externo agrava a crise entre polícia e MP.
Leôncio – 
Sim. O controle externo está indefinido. Quais são os limites? Onde deixa de ser controle e passa a ser tutela, subordinação? Dizer o que você pode e o que não pode falar, por exemplo, é tutela, subordinação. É inadmissível que o Conselho Nacional do Ministério Público diga como a polícia funciona. A polícia é um órgão de outro poder, é uma instituição que trabalha para a sociedade, não só para o Judiciário. A indefinição em torno do controle externo e do poder de investigação gera uma crise terrível entre a polícia e o Ministério Público. Assim como a indefinição da organização da Polícia Federal, gera uma crise entre delegados e agentes. O governo assiste a isso de forma omissa, não enfrenta o problema. Nós não temos uma lei orgânica na Polícia Federal. Nós não temos regras claras, um marco regulatório.
ÉPOCA – Desde a administração Lula, o governo entende que a Polícia Federal atua com uma certa liberdade.
Leôncio – 
Falta uma lei que defina como a polícia se organiza, como a instituição funciona. Na ausência, gera conflitos de classe, entre policiais que entendem que fazem jus a um tratamento que é muito melhor do que é dispensado a eles. A Polícia Federal não pode mais ser um departamento. Não estou falando de independência a ponto de transformar a Polícia Federal em um novo Ministério Público, mas de autonomia gerencial, orçamentária, que lhe permita, por exemplo, decidir quando fazer concursos. A relevância dela é muito maior do que a estrutura colocada à disposição. Existem propostas tanto de lei orgânica como de autonomia administrativo-financeira. Preocupa muito o fato de existir uma tentativa de impedir essa autonomia, a lei orgânica. Outros órgãos, como Receita Federal e  Defensoria Pública conseguiram, mas quando o assunto é Polícia Federal parece existir um tabu.
ÉPOCA – Sem essas reformas, qual o prejuízo para o trabalho de agentes, delegados e peritos?
Leôncio – 
As entidades (de classe) têm que pensar nisso. A instituição Polícia Federal está acima de quaisquer interesses de classe, tem que ser preservada. No momento em que suas lutas internas prejudiquem o seu desempenho, a gente tem que ter responsabilidade de saber parar. Os temas estruturantes da PF já foram tão demasiadamente discutidos, postos à mesa, que agora é o momento do governo ser governo.
ÉPOCA – E, nesse caso, de quem a sociedade deve cobrar?
Leôncio –
 Do diretor-geral da PF à presidente da República todos têm responsabilidade. Mas o que a gente assiste hoje é o ministro da Justiça dizer que "enquanto as categorias de servidores não chegarem a um entendimento, essa crise vai permanecer". Isso não é postura correta. O governo não pode ser omisso. Cabe à Direção Geral da PF, ao Ministério da Justiça, ao Ministério da Planejamento, ao Palácio do Planalto dizer o seguinte: chega dessas disputas.
ÉPOCA – A Lei Orgânica poderia resolver questões como essa?
Leôncio – 
Poderia resolver definitivamente. A independência da Polícia Federal vem do grande reconhecimento da sociedade. No dia em que os cargos da PF forem preenchidos por partidos políticos, o que é absolutamente possível, acabou. Acho que o grau de avanço da democracia brasileira não vai permitir isso. Mas é possível identificar interferências: por exemplo o caso das algemas, agora o caso da censura. Por isso, toda a preocupação com a crise interna. Essa crise macula a imagem da PF. Quando a polícia começa a ter dificuldades de trabalho, cai o meu maior patrimônio, que é a imagem perante a sociedade.
ÉPOCA – É um momento grave, delicado.
Leôncio – 
Nós, delegados, estamos insatisfeitos, descrentes e desejosos de mudanças, assim como a população de uma maneira geral. Estamos absolutamente insatisfeitos com o tratamento dispensado pelo governo federal. Por que os delegados da PF não vão parar durante a Copa do Mundo? Porque temos que pensar na sociedade. A melhor forma de mostrar para a sociedade nossos problemas é trabalhando.