domingo, 29 de junho de 2014

Quatro gerações e um plano que mudou os hábitos

Clarice Spitz - O Globo

Família carioca lembra das agruras da hiperinflação e a folga no orçamento após a estabilidade


Em família. A matriarca Jacyra Barata de Araujo com as filhas Georgina (de verde) e Angela (de vermelho) e a neta Cristina (de branco)
Foto: Daniela Dacorso
Em família. A matriarca Jacyra Barata de Araujo com as filhas Georgina (de verde) e Angela (de vermelho) e a neta Cristina (de branco) - Daniela Dacorso


No apartamento de Jacyra Barata de Araujo, uma simpática senhora de 96 anos, a sensação é de que não se está em Copacabana. Isolado de uma das mais movimentadas avenidas do bairro, é ali que várias gerações da família se reúnem com frequência. Se, no passado, as altas constantes de preços faziam parte da conversa, hoje o tema passa ao largo das discussões de família. Das lembrança da hiperinflação, a mais marcante é o martelar da remarcação de preços.

— Aquele som irritante da máquina de remarcar era tão característico daquele período. Hoje, nunca faço compra de mês. Não tenho a preocupação de que os produtos aumentem tanto — afirma Cristina Barata de Araujo Costa, designer gráfica, de 41 anos.


ESTOQUE DE COMIDA

A mãe dela, Angela Guedes Barata de Araujo, lembra sem saudade dos tempos em que corria para os supermercados para estocar comida. Em março de 1989, a inflação alcançou o pico de 82,39% ao mês.

— A gente recebia o salário e corria para os supermercados. O dinheiro não valia nada. A gente se acostumava, mas não se conformava — lembra ela, já aposentada.

Com oito filhos — seis homens e duas mulheres —, dona Jacyra diz que valoriza preços estáveis. Ao longo da vida, fez questão de duas coisas: comparar preços e ter todos os filhos à mesa na hora certa.

— É muito melhor ter preços estáveis. Às vezes, a gente queria pagar e não podia porque o preço já tinha subido — afirma.

A rotina de trocas constantes de tabela de preços é outra lembrança daqueles tempos para Cristina. Ela trabalhava em uma loja de roupas femininas enquanto estava na faculdade.


— A gente recebia uma tabela de preço toda semana, e o grande mote era convencer o cliente de que pagaria 20% a menos que na semana seguinte. Crediário não existia. Quem pagava à vista tinha desconto de 30% — lembra.

A estabilização de preços com o real gerou uma mudança imediata na percepção da família Barata de Araujo. A inflação passou de 44,03%, em maio de 1994, para 1,71% no fim daquele ano de 1994. Angela conta que passou a ter folga no orçamento. A primeira mudança foi passar a pôr no carrinho bem mais que arroz, feijão e batata.

Em 20 anos, a estabilização de preços mudou o consumo das famílias. A alimentação fora de casa ganhou mais peso no orçamento dos brasileiros. Na cesta dos Barata de Araujo, entraram serviços e produtos mais sofisticados.

— Foi um alívio e uma surpresa. Com o Plano Real, já dava para planejar uma coisinha a mais, um biscoitinho, um iogurte — afirma.

Para o ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos, Marcelo Neri, o mais importante efeito da estabilização de preços foi permitir às famílias que conseguissem olhar para o futuro e planejar.

— O Plano Real foi uma condição necessária para se pensar em qualquer coisa, inclusive no crescimento e na política social — afirma.

Alguns produtos, como os eletroeletrônicos, ficaram 39,89% mais baratos nos últimos 20 anos, fruto do câmbio valorizado e das inovações tecnológicas. Os Barata de Araujo se sofisticaram, compraram notebooks, TVs de tela plana, tablets.

— Com a queda da inflação, tirou-se um véu da formação de preços e aumentou-se o peso dos serviços — afirma Luis Otavio de Souza Leal, do banco ABC Brasil.


HOJE, IMPOSTOS INCOMODAM

As três gerações da família concordam que a inflação dos dias atuais incomoda, sobretudo nas compras de supermercado. No entanto, são também unânimes em dizer que aquele tipo de inflação que conheceram não volta.

O sentimento é compartilhado também pela quarta geração da família. Nascida no dia em que o real se tornou a moeda oficial do país, Luiza, de 19 anos, mora em Vitória e só conheceu os tempos difíceis pelas conversas de família. Mora sozinha desde o início do ano e diz que os preços de carnes e de biscoitos a incomodam, mas tem uma queixa mais direta:

— A inflação continua muito alta, mas não é como antigamente. Porém, os impostos de produtos que vêm ao Brasil é que são muito elevados.