Blog Reinaldo Azevedo -Veja
De novo, o decreto 8.243, de Dilma. É golpista e bolivariano, sim! Ou: O que não me parece bom nas seis perguntas e seis respostas da Folha
A Folha, jornal de que sou colunista, publicou no domingo
seis perguntas e respostas sobre o Projeto 8.243 — aquele dos “conselhos
populares”. O leitor chega à conclusão de que o diabo é bem menos feio do que se
pinta. Discordo, é claro! “E por que não escreve a respeito no jornal?” Já
escrevi. Volto ao assunto aqui. O que segue em vermelho foi publicado pela
Folha. Comento em azul.
Classificado por alguns como “golpista”, “bolivariano” e
até “bolchevique”, o decreto de Dilma sobre política de participação social
parece bem menos polêmico.
Eu considero o decreto golpista e bolivariano, mas não “bolchevique” porque, parece-me, o bolchevismo supõe a perspectiva imediatamente revolucionária e de eliminação de uma classe social. Não sei quem classifica assim o texto — ninguém que eu tenha visto.
Gramscianamente golpista, isso ele é. Como era — e, em
certa medida, ainda é — a terceira edição do Plano Nacional de Direitos Humanos,
de dezembro de 2009. E é bolivariano também porque Chávez recorreu a conselhos
para minar o sistema representativo na Venezuela.
1) Para que serve a Política Nacional
de Participação Social (PNPS), criada por decreto por
Dilma?
O objetivo é organizar a relação entre ministérios e outras repartições federais com as diversas instâncias de participação social, como os conselhos permanentes de políticas públicas, as periódicas conferências nacionais temáticas e as frequentes audiências públicas, entre outras.
O texto busca, digamos, naturalizar o decreto, como se Dilma tivesse recorrido a esse expediente — por que não um projeto de lei, por exemplo? — apenas porque surgiu a necessidade de “organizar”. Epa! Um texto legal que regulamenta a participação da sociedade civil, definindo-a como “o cidadão, os coletivos, os movimentos sociais institucionalizados ou não institucionalizados, suas redes e suas organizações” pode ser tudo, menos corriqueiro. Eu quero saber, por exemplo, a diferença entre um “movimento social institucionalizado” e um “movimento social não-institucionalizado”. Mais: se o “cidadão” é parte da sociedade civil, como ele faz para participar de um conselho? Já volto ao ponto.
2) Mas já não existem vários
conselhos?
Existem. Alguns são muito antigos, como o CNE (Conselho Nacional de Educação), criado em 1931, e o CNS (Conselho Nacional de Saúde), que existe desde 1937. Há conselhos para os mais variados temas, como direitos dos idosos, trabalho, segurança pública, juventude, política indigenista, previdência, drogas e igualdade racial. Alguns têm caráter normativo, como o Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente). Outros são meramente consultivos, como o Conselho de Desenvolvimento Econômico, que reúne vários empresários dos mais diversos setores.
Vamos lá. Peguemos um dos conselhos citados acima: o da Juventude. Alguém ficou sabendo, a começar da imprensa, que as inscrições para tentar fazer parte do “Conjuve” terminaram às 23h59 do dia 4 de junho? Mais: nada menos de 159 entidades — devem ser os tais “coletivos” e “movimentos sociais institucionalizados e não-institucionalizados” — se inscreveram. É mesmo?
Ora vejam… Vamos ver o que diz o Artigo 1º do decreto de
Dilma: “Fica instituída a Política Nacional de Participação Social –
PNPS, com o objetivo de fortalecer e articular os mecanismos e as instâncias
democráticas de diálogo e a atuação conjunta entre a administração pública
federal e a sociedade civil.” Sei… O Inciso II do Artigo 3º sustenta
ainda que uma das diretrizes do PNPS é a “complementariedade,
transversalidade e integração entre mecanismos e instâncias da democracia
representativa, participativa e direta”.
Certo! Então os conselhos são uma forma de democracia
direta, né? Só que é a democracia direta que se realiza à socapa, sem que
ninguém saiba. Ou o “cidadão” decide fazer parte de algum “coletivo” ou
“movimento social”, ou não vai participar de coisa nenhuma. Continuo na questão
seguinte.
3) Esses conselhos agora são
controlados pelo governo?
Não.
Não??? De novo, tomo o exemplo do Conselho da Juventude. É formado por 60 membros: um terço (20) é de representantes do governo e dois terços (40), da sociedade civil. Se vocês clicarem aqui, terão acesso a seus nomes e entidades às quais pertencem. E ficará claro, de saída, que a questão não está em ser o conselho formalmente controlado pelo governo. Em tese, não é. Estou falando é de outra coisa: de controle ideológico. Vejam lá qual é o viés das tais entidades representadas. Ora… Essa democracia “direta” é, como se vê, bem mais restritiva, então, do que a “representativa”, não? Afinal:
a: o processo eletivo ocorre sem que ninguém saiba;
b: a eleição dos conselheiros será necessariamente indireta;
c: já existe uma seletividade ideológica na largada.
É isso, então, a democracia representativa?
4) O governo passa a ser obrigado a
seguir decisões tomadas em conselhos?
Não. O decreto diz apenas que os órgãos da administração, como os ministérios, deverão “considerar” essas instâncias de participação social na hora de formular, executar, monitorar e avaliar suas políticas. Isso já ocorre em muitos casos. O decreto diz também que os órgãos deverão produzir relatórios anuais mostrando como estão implementando a PNPS.
Com a devida vênia, é uma resposta ingênua para uma pergunta não menos. Imaginem se, a partir do decreto, os tais conselhos não acabarão se tornando uma espécie de imposição. Não há como impor legalmente as decisões dos conselhos. Trata-se de um constrangimento político. Tanto é que os órgãos federais são obrigados a prestar contas sobre a forma como estão implementando o tal PNPS. Ora, é o Estado se organizando para ter o controle da sociedade civil. Saudável, convenha, seria o contrário!
5) O governo está criando novos
conselhos?
O decreto não cria nenhum novo conselho nem mexe nos já existentes. A norma, porém, define parâmetros mínimos para orientar a eventual criação de novos conselhos ou instâncias.
De novo, fica parecendo que Dilma decidiu acordar e dizer: “Hoje é segunda-feira”. Não! A coisa é bem mais grave e mais complexa do que isso. Ademais, insisto na pergunta: por que um decreto? Já volto ao ponto.
6) Os conselhos populares assumem
alguma atribuição do Poder Legislativo?
Não. O que se discute é se a PNPS, nos termos em que foi elaborada, deveria passar pelo Congresso. O governo sustenta que, como não há criação de cargos ou despesas, o decreto é suficiente. Alguns entendem que, ao criar um procedimento novo, a PNPS só poderia ser validada por meio de uma lei aprovada pelo Congresso Nacional.
A resposta e amplamente insuficiente. Não se pode perguntar se o decreto faz o impossível porque o impossível ele não faz… A CONSTITUIÇÃO NÃO PERMITE QUE O EXECUTIVO SOLAPE PRERROGATIVAS DO LEGISLATIVO. E NÃO SERIA POR MEIO DO DECRETO 8.243 QUE DILMA O FARIA. A pergunta não faz sentido.
A questão é saber se conselhos não poderão ter um peso
maior na decisão de órgãos federais do que o próprio Legislativo. A depender de
como se conduzam as coisas, a resposta é “sim”. Segundo o decreto, um dos
mecanismos de participação direta da sociedade são as “conferências nacionais”.
Peguem as conclusões das conferências de Comunicação e Cultura, por exemplo. Nos
dois casos, há flertes claros com a censura, por imposição dos vários grupos de
esquerda que as compuseram. COMO NÃO CONSEGUEM VENCER ELEIÇÕES NO PARLAMENTO
PARA IMPOR A SUA VONTADE, TENTAM FAZÊ-LO POR INTERMÉDIO DAS TAIS CONFERÊNCIAS. A
de Mulheres, por exemplo, defendeu a descriminação do aborto. Curioso: não é
essa a opinião da maioria das mulheres brasileiras nem é esse o resultado das
urnas. ESSAS FORMAS DE DEMOCRACIA DIRETA, COM A REALIZAÇÃO DE ELEIÇÕES
ÀS ESCURAS, SÃO INSTRUMENTOS DE QUE DISPÕEM MINORIAS QUE SE QUEREM DE VANGUARDA
PARA IMPOR A SUA VONTADE ÀS MAIORIAS.
Pior do que tomar o lugar do Legislativo, o “conselhismo”
ambiciona é tomar o lugar da Justiça mesmo, e alertei para esse risco em
meu artigo na Folha, na sexta. Reproduzo trecho
(em preto).
No dia 19 de fevereiro (http://abr.ai/1lkunwF), o
ministro Gilberto Carvalho participou de um seminário sobre mediação de
conflitos. Com todas as letras, atacou a Justiça por conceder liminares de
reintegração de posse e censurou o Estado brasileiro por cultivar o que chamou
de “uma mentalidade que se posiciona claramente contra tudo aquilo que é
insurgência”. Ou por outra: a insurgência lhe é bem-vinda. Parece que ele tem a
ambição de manipulá-la como insuflador e como autoridade.
Vocês se lembram do “Programa
Nacional-Socialista” dos Direitos Humanos, de dezembro de 2009? É aquele que,
entre outros mimos, propunha mecanismos de censura à imprensa. Qual era o
“Objetivo Estratégico VI” (http://abr.ai/1lkLvSS)? Reproduzo trecho:
“a- Assegurar a criação de marco legal para a prevenção e mediação de conflitos fundiários urbanos, garantindo o devido processo legal e a função social da propriedade.
(…)
d- Propor projeto de lei para institucionalizar a utilização da mediação como ato inicial das demandas de conflitos agrários e urbanos, priorizando a realização de audiência coletiva com os envolvidos (…) como medida preliminar à avaliação da concessão de medidas liminares (…)”
Dilma resolveu dar uma banana para o Congresso e, em vez
de projeto de lei, que pode ser emendado pelos parlamentares, mandou logo um
decreto. As Polianas que fazem o jogo dos contentes acusam os críticos do
decreto de exacerbação retórica e dizem que a trajetória do PT não revela
tentações bolivarianas. Não? Fica para outra coluna. Nego-me a ignorar o que
está escrito para ser árbitro de intenções. Pouco me interessa o que se passa na
alma do PT. Eu me ocupo é dos fatos. Dilma tem de recuar. Brasília não é
Caracas.
Encerro
Ora, uma vez em vigência esse decreto, um juiz poderá se amparar nele para não conceder uma liminar de reintegração de posse, por exemplo — não sem que se realize antes a tal mesa de mediação de conflitos. É evidente que a presidente não assinaria um decreto admitindo que está criando mecanismos que podem ser considerados um Legislativo e um Judiciário paralelos. Só faltava essa! A esse grau de loucura, o petismo ainda não chegou. Mas que o texto pavimenta o caminho para a companheirada não se desgrudar mais do poder, ganhe ou perca eleição, ah, isso é fato! Não é bolchevique porque não dá mais para ser bolchevique, o que muitos lamentam… Mas é golpista, sim. E recorre a expedientes bolivarianos, sim!
Não custa lembrar que, na América Latina contemporânea —
mas nunca moderna —, não se dão mais golpes com tanques, mas com instrumentos
legais que vai minando o regime democrático. O Decreto 8.243 é um deles. Que o
Congresso reaja e derrube essa estrovenga por meio do decreto legislativo. Dilma
que envie um projeto de lei. Ou a presidente quer instituir a participação da
sociedade civil sem ouvir o Poder Legislativo?