sexta-feira, 23 de maio de 2014

Os 20 anos de 'Pulp Fiction' e sua influência na cultura popular

O Globo e The Independent
 
 
Há exatas duas décadas, a comédia-thriller ultraviolenta de Quentin Tarantino mudou o cinema. Mas para o bem ou para o mal?

Lista: O elenco de 'Pulp fiction' 20 anos depois

Completando 20 anos este mês, o segundo filme de Quentin Tarantino ganhou a Palma de Ouro em Cannes, em 1994. E era apenas o começo: a produção de US$ 8 milhões arrecadou US$ 200 milhões em todo o mundo, enquanto no Oscar de 1995 Tarantino e seu colega Roger Avary ganharam o prêmio de melhor roteiro e o filme foi um dos indicados a melhor longa.

Os competidores? "Forrest Gump", "Quatro casamentos e um funeral", "Quiz Show – a verdade dos bastidores" e "Um sonho de liberdade". Uma seleção melhor do que a maioria dos outros Oscars do período, mas é certo que "Pulp Fiction" estava em um universo diferente em relação aos outros nomeados.


Era uma miscelânea não-linear de três histórias, com um prólogo e epílogo adicionais. Repleto de um chocante derramamento de sangue, ao lado de brincadeiras excêntricas e ásperas. E apresentava uma série de criminosos da escória que discutiam massagens nos pés com a mesma atenção que davam a matar suas vítimas.

Havia apenas um filme que oferecesse qualquer comparação útil, e ele a estreia de Tarantino, "Cães de aluguel" (1992). Mas, enquanto o primeiro longa do diretor apresentou ideias as revolucionárias dele, foi "Pulp Fiction" que acabaria sendo, na avaliação do falecido crítico de cinema americano Roger Ebert, "o filme mais influente da década".

Mas a questão permanece: esta influência é algo a ser comemorado? Para cada entusiasta que acredita que Pulp Fiction meteu uma bala no cérebro do "abafado e desagradável" cinema comercial hollywoodiano, há outro que o vê como o primeiro de uma linhagem de fantasias gângsters adolescentes baratas e de mau gosto. Duas décadas depois, é hora de dar outra olhada nos vários aspectos de seu legado e julgar se a saga do crime de Tarantino teve um impacto positivo ou negativo na história do cinema.

Pós-modernismo

"Pulp Fiction" é um triunfo autoconsciente dos inúmeros elementos que são retirados do vasto repertório de cinema, televisão e música que integram o conhecimento de Tarantino: pense na lanchonete dos anos 1950, a pasta brilhante tirada de "A morte num beijo", o romance "Modesty Blaise" lido pelo personagem de John Travolta e a passagem de Ezequiel recitada pelo personagem de Samuel L. Jackson, que Tarantino roubou – não a partir da Bíblia, mas a partir da abertura de um filme japonês de artes marciais, "Karate Kiba".

Detratores de Tarantino afirmam que seus filmes não têm nada a ver com a vida real: a cada momento neles foi filtrado através da imaginação de alguém - e é por isso que ele era tão amado, em na maioria retrospectivas de décadas, a década de 1990.


Veredito: Positivo. Através de Pulp Fiction e mais além, as homenagens "nerd" de Tarantino levaram inúmeras pessoas a prestar atenção a filmes e músicas que eles poderiam nunca ter encontrado. Se Tarantino fez com que seus fãs procurassem por Louis Malle, Sonny Chiba e a guitarra surf de Dick Dale, será que é uma coisa tão ruim?

Diálogo com a cultura pop

A obsessão de Tarantino pela cultura pop foi compartilhada por seus personagens – como o assassino vivido por Jackson, Jules Winnfield. Ele chama uma vítima de "Flock of Seagulls" por causa de um corte de cabelo que lembra a banda new wave dos anos 80. Apelida outro de "Ringo" por causa de seu sotaque inglês (embora não seja de Liverpool). E ele se compara a várias outras referências.

Veredito: Negativo. Em 1994, foi revigorante encontrar personagens que passaram tanto tempo à frente da televisão, como o resto de nós, mas agora as referências da cultura pop são a "muleta" dos roteiristas preguiçosos – ou melhor, improvisadores preguiçosos. Quase toda nova comédia de Hollywood é repleta de menções sem graça a quaisquer filmes que passam nas mentes dos atores. Mencionar os "Caça-Fantasmas" é, infelizmente, nada hilário.

Violência caricata

"Pulp Fiction" nos convida a rir quando Vincent Vega (Travolta) atira acidentalmente em alguém na garganta, e gargalhar ainda mais alto quando ele e Winnfield brigam por causa da zona que ele fez de seu carro. Como resultado, inúmeros imitadores passaram a se vender satirizando gângsters e estilizando uma irreverente ultraviolência.


A ironia é que Tarantino é realmente um dos roteiristas e diretores americanos mais pensativos e morais quando se trata de violência. Afinal, Vega é baleado ao deixar o vaso sanitário, um senhor do crime imperioso acaba em uma masmorra de sadomasoquismo, e um par de criminosos acabam sendo colocados justamente na mira das armas. Deveríamos rir dos bandidos, não rir com eles.

Veredito: Negativo. Infelizmente, os aspirantes tendem a perder a mensagem por trás da violência brincalhona de Tarantino. Está na hora de alguém "derrubá-los com grande vingança e furiosa raiva".

Filmes de blaxpoitation e o papel dos negros

Com seu jeito cafetão e cabelo black power, Winnfield (Jackson) encarna o amor de Tarantino pelo filmes de blaxploitation dos anos 1970, mas nem todo mundo estava convencido desta homenagem: Spike Lee ficou inconformado com o uso da palavra "nigger" (conotação pejorativa para os negros) pelo personagem. Tarantino argumentou que estava sendo fiel ao jargão que os próprios usavam em Los Angeles, mas Lee não quis apaziguar e continuou alfinetando também por conta da personagem Jackie Brown. Tempos depois, Lee boicotou "Django livre" tuitando que a "escravidão americana não um 'western spaghetti' de Sergio Leone", mas sim "um holocausto".

Veredito: Positivo. "Pulp Fiction" trouxe de volta o estilo urbano dos clássicos da blaxploitation.

Tarantino escalou Pam Grier (famosa por ser a estrela de "Foxy Brown" [1974]) no papel de Jackie Brown, enquanto Jackson estrelou a releitura (2000) do clásico Shaft (1971) por John Singleton.
Mais significativamente, a Marvel Comics redesenhou um de seus personagens brancos, Nick Fury, de modo a se tornar semelhante a Jackson, que tem feito o papel em vários dos blockbusters do estúdio. Somente essa elencagem fez mais pelas crianças negras do que toda a obra de Lee – e isto não teria acontecido sem o filme que fez de Jackson um ícone.

Poder 'indie'

"Cães de aluguel" não foi um sucesso nos Estados Unidos: era apenas um filme independente de baixo orçamento, afinal. Mas Pulp Fiction provou que os independentes poderiam ficar ricos, ganhar prêmios de prestígio, recuperar a reputação de ídolos decadentes (como Travolta), criar superastros (Uma Thurman) e oferecer a ídolos de Hollywood (como Bruce Willis) seus melhores papéis em anos.



Enquanto isso, a distribuidora independente do filme, a Miramax, tornou-se uma gigante, disputando os prêmios de Melhor Filme em cada Oscar de 1996 a 2004. Outros estúdios correram para lançar as suas próprias divisões "indie", para agradar ao público do festival de Sundance. Mais importante, uma geração de "geeks" de cinema perceberam que também poderiam entrar no negócio.

O lado negativo? Os Weinsteins, que fudnaram a Miramax em 1979, acabaram se tornando tão tirânicos quanto as cabeças antigas de Hollywood, e é difícil negar que outros sucessos independentes, como "Shakespeare apaixonado" (1998) foram um golpe contra a produção cinematográfica "rebelde".

Veredito: Positivo. Hollywood precisava de uma sacudida.