“Paisagem em Pernambuco com casa-grande”, 1665, obra do pintor holandês Frans Post, que deixou pinturas que até hoje nos mostram um panorama realista da vida na época| Foto: Reprodução
Em setembro de 1654, um grupo de 23 judeus que tinha saído meses antes do porto de Recife desembarcou no porto de Nova Amsterdã, então uma pequena vila com cerca de 500 habitantes que ocupava a parte sul da ilha de Manhattan — que na época pouco lembrava o que desde o começo do século XX se tornaria o centro financeiro do mundo. Não eram os primeiros judeus a desembarcar em solo americano, mas eles e, principalmente, seus descendentes, acabaram tendo um papel crucial não só no desenvolvimento na comunidade judaica daquela que é a cidade com o maior número de judeus no mundo depois de Tel Aviv, mas para o desenvolvimento da metrópole que Nova York acabaria se tornando.
O Brasil teve uma presença judaica, de alguma ou outra maneira, já desde seu descobrimento. Já na frota de Pedro Álvares Cabral, por exemplo, uma figura descrita por fontes da época como “deveras curiosa e exótica” era Gaspar da Gama, cujo nome original se perdeu nas brumas do tempo. Gaspar trabalhava para o governador muçulmano de Goa quando Vasco da Gama aportou por lá, e, depois de pedir permissão para abordar uma das embarcações da frota portuguesa, dizendo-se feliz por encontrar alguém de sua terra (dizia-se espanhol), foi aprisionado, torturado sob suspeita de espionagem e, por fim, levado a Portugal. Durante a viagem, Vasco da Gama cedeu-lhe o sobrenome e batizou-lhe com o nome de Gaspar, em referência a um dos Reis Magos. Já em Lisboa, seu espantoso conhecimento linguístico e as histórias fascinantes que contava a respeito dos lugares exóticos que tinha visitado ao longo de sua vida, cativou o rei Manuel I, que o designou como intérprete oficial para a frota de Cabral que acabaria por chegar em terras brasileiras.
Um ano depois, outro judeu — desta vez, um cristão-novo, ou seja, um judeu que havia sido obrigado pelas autoridades portuguesas a se converter, adotar um nome “cristão” e abandonar, ao menos publicamente, as práticas de sua religião — voltou a pisar em terras brasileiras. Um nome bem conhecido por quase todos os brasileiros: Fernando de Noronha.
Comerciante relativamente bem-sucedido em Lisboa, com notórias ligações com o célebre banqueiro alemão Jakob Fugger, resolveu não só financiar como tomar parte de uma das mais célebres expedições ao território sul-americano daquela época, ao lado do navegador italiano Américo Vespúcio, durante a qual se descobriu havia lá uma variedade de uma planta já conhecida pelos portugueses na Índia, capaz de produzir uma tinta vermelha muito valiosa nos mercados europeus — que eventualmente viria a dar o nome ao país. Seu tino comercial fez com que obtivesse permissão do rei para explorar a nova descoberta e organizasse uma frota mercantil para garantir o abastecimento dos mercados portugueses.
Ao longo dos anos seguintes, juntamente com Vespúcio, fez diversas viagens ao território recém-descoberto, construindo as primeiras feitorias e estabelecendo uma rota comercial e tornando-se, efetivamente, o primeiro capitão donatário do território brasileiro. Foi durante uma dessas viagens que seu colega de viagem fez um dos primeiros mapas da costa sul-americana da história.
Judeus em Portugal
A própria história da navegação de Portugal deve muito aos judeus; um dos personagens mais fascinantes do período inicial do desenvolvimento da expansão geográfica daquele país, antes mesmo das primeiras viagens de descobrimento, foi o chamado “Mestre Jácome”, um judeu de Maiorca chamado Jehudà Cresques que foi trazido a peso de ouro pelo pioneiro rei Henrique, o Navegador, no início do século XV, devido à fama que tinha obtido pelos seus talentos cartográficos. Outro judeu que teve uma importância crucial nos descobrimentos portugueses foi Abraão Zacuto, cujas cartas marítimas e astrolábios foram usados por praticamente todos os navegadores na época, desde Colombo até Cabral.
A história dos judeus em Portugal data do período da dominação romana do território lusitano, ou talvez de antes mesmo disso. Mas sua presença permaneceu em relativa obscuridade, até que no começo da Idade Média começam a ser mencionados nos registros históricos. No século XII, o rei Afonso Henriques apontou um judeu nascido em Córdoba, então sob o domínio dos mouros, Yahia ben Yahia (Jaschia ben Jaisch), para o posto de principal coletor de impostos do reino e grão-rabino de Portugal, tornando-se célebre com a alcunha de Dom Yahia, “o Negro”.
Em 1170, o mesmo rei concedeu aos judeus o direito à liberdade de culto e a permissão de seguir seus próprios códigos legais, e seu sucessor, Sancho I, expulsou de Lisboa um grupo de cruzados que, movido pelo crescente sentimento antissemita que tomava conta da Europa inteira na época, insistia em assediar a comunidade judaica local, e em seguida nomeou José ben Yahia, filho do “mouro” Yahia, como seu almoxarife-mor.
Outro personagem de grande importância na história judaica de Portugal foi Isaac Abravanel (ou Abrabanel), filósofo e financeiro de grande renome no século XIV que, após conquistar cargos elevados durante o reinado de Afonso V, viu-se acusado de uma conspiração contra o governo e foi obrigado a fugir para a Espanha. Mesmo depois de perder todas as suas riquezas, que não eram poucas, rapidamente conseguiu se reerguer e logo passou a servir à rainha Isabel de Castela, que conseguiu cativar especialmente depois de suas vultosas doações à campanha militar conduzida por ela e por Fernando de Aragão para expulsar os mouros da Península Ibérica.
Antissemitismo
Com a Reconquista, no entanto, os judeus da Espanha logo se viram numa situação penosa, obrigados a escolher entre a conversão ao cristianismo ou a seguir o destino dos mouros e abandonar seu país. O Decreto de Alhambra, proclamado em 31 de março de 1492, fez com que quase metade da população judaica se convertesse ao cristianismo para evitar a expulsão.
Muitos judeus ricos, como o próprio Abravanel, chegaram até mesmo a oferecer dinheiro para convencer os reis de Castela a Aragão a revogar o decreto, sem sucesso; diz-se que o infame inquisidor-geral Torquemada, responsável por perseguições a judeus e cristãos-novos que fariam inveja aos soviéticos, teria se postado diante de seus tronos e arremessado um crucifixo diante deles, perguntando se seriam capazes de, como Judas, trair sua religião por algumas moedas.
Enquanto o antissemitismo atingia níveis nunca antes vistos por toda a Europa, com a expulsão e o massacre de judeus tornando-se algo recorrente em todos os países do continente, a Espanha, que até então tinha adotado uma postura de relativa integração entre as diferentes religiões que compunham sua sociedade, passou a ser vista como um país de “impuros”, de “sangue sujo”.
Com o surgimento e o posterior recrudescimento da Santa Inquisição, os judeus passaram a sofrer uma perseguição sem precedentes, e os que se recusaram a se converter ao cristianismo ou a pelo menos tentar manter suas práticas religiosas em segredo, se viram obrigados a fugir. E muitos deles — estima-se que cerca de 100 mil — foram para Portugal, que até então ainda era relativamente tolerante. Entre eles, estava Abraão Zacuto, que se refugiou em Lisboa e foi apontado Historiador e Astrônomo da Corte pelo rei João II.
Poucos anos depois, o rei Manuel I de Portugal foi obrigado a atender um pedido dos reis da Espanha para poder se casar com sua filha, Isabela: também expulsar os judeus de seu país. Depois de perseguições e massacres, o estabelecimento da Santa Inquisição também em território português fez com que os poucos judeus que ainda insistiam na prática de sua religião, seja de maneira aberta ou clandestina, optassem por fugir de vez do país. Cristãos-novos foram obrigados a usar em público um chapéu amarelo, sob pena de serem chicoteados e terem que pagar uma multa de 100 cruzados.
Rumo ao Brasil
À época, criminosos podiam optar pela deportação para território brasileiro, onde estariam livres de serem perseguidos pelas autoridades, e muitos judeus viram nessa viagem pelo Atlântico rumo ao Brasil uma maneira de escapar da perseguição religiosa. Outros tantos optaram por outros destinos, dando origem a comunidades judaicas em países tão distintos e distantes quanto Marrocos, Turquia, e outro, de especial interesse para a nossa história, os Países Baixos (ou Holanda, para os menos preciosistas), que tinha uma longa tradição de liberdade religiosa.
Em terras luso-tupiniquins, os judeus puderam ter uma existência relativamente tranquila, embora tivessem perdido todas as suas posses e muitas vezes fossem obrigados a esconder suas origens e dissimular seus rituais religiosos. A Inquisição ainda não tinha cruzado o Atlântico.
Tudo mudaria em 1591, quando uma comissão liderada pelo inquisidor Heitor Furtado de Mendonça foi enviado a Salvador, trazendo consigo instruções para que todo tipo de comportamentos considerados “sacrílegos” fossem perseguidos e punidos, entre eles qualquer tipo de prática ou celebração que remetesse ao judaísmo. O fato de que boa parte dos proprietários de terra no Nordeste brasileiro, especialmente em Pernambuco, eram cristãos-novos, provavelmente fez com que tanto a Coroa quanto a Igreja fizessem vista à grossa às práticas judaicas ainda exercidas por eles — embora um clima de vigilância permanente e até mesmo delações por familiares, como se viu nas ditaduras socialistas do século XX, fosse um fantasma constante.
Uma dessas poucas vítimas durante a visita do inquisidor foi Branca Dias, uma cristã-nova que já tinha fugido de Viana do Castelo, em Portugal, depois de ter sido denunciada pela própria mãe e pela irmã, fugiu para o Brasil, onde se fixou na Várzea do Capibaribe, em Pernambuco, e se tornou a primeira mulher a manter um engenho, junto com seu marido, Diogo Fernandes, mantendo uma sinagoga caseira e recebendo a incumbência de ser a “guardiã da Torá”, uma honraria dificilmente concedida às mulheres. Em 1595, foi presa e teve seus bens confiscados durante um auto-de-fé.
Ao mesmo tempo em que Portugal se dedicava a perseguições religiosas genocidas, ignorantes e infrutíferas, negligenciava qualquer tipo de desenvolvimento tecnológico, a ponto de depender dos holandeses para o refino e comercializações do seu açúcar. O que era extraído das canas-de-açúcar plantadas em solo brasileiro acabava nas mãos dos judeus holandeses, que mantinham cerca de 29 refinarias só em Amsterdã.
Portugal e a Espanha estavam atados um ao outro pela União Ibérica, ocorrida depois que, na falta de um herdeiro depois da morte de Dom Sebastião, em Alcácer-Quibir, a Coroa Portuguesa foi obrigada a se “unir” à Espanhola, ao mesmo tempo em que os espanhóis herdaram a Holanda devido aos conflitos dinásticos dos Habsburgo. Durante esse período, os holandeses tiveram a oportunidade de visitar o Brasil, sondar o potencial econômico do território e mapear o litoral de seus portos mais importantes. Não demorou para que diferenças culturais e religiosas provocassem conflitos entre os dois reinos, e a Holanda sabia muito bem qual o ponto fraco do Império Espanhol a ser invadido: o Brasil.
Nova Holanda
Logo no início do século XII, os holandeses começaram a construir fortes em toda a parte setentrional do território colonial brasileiro, desde o Xingu até o Capiberibe. Mas a primeira grande incursão se deu em 1624, quando uma frota de 26 navios aportou na Bahia, causando a fuga não só de autoridades, como políticos, representantes do rei de Portugal e da Inquisição, mas também da população local. Apesar de durar pouco, essa primeira intervenção holandesa em território brasileiro serviu como uma espécie de aperitivo, para que eles pudessem sondar o território e perceber o potencial que existia para eles nesse novo território.
Em 14 de fevereiro de 1630 os holandeses voltaram, desta vez com o dobro da força. 67 navios, cerca de sete mil homens, entre eles muitos judeus que tinham vivido no Brasil ou em Portugal, e não só conheciam o idioma como o processo de refino de açúcar. Além de um armamento muito superior ao dos portugueses, bem como mais dinheiro, já que a Companhia das Índias Ocidentais, irmã da já consolidada Companha das Índias Orientais, financiava toda a empreitada.
De acordo com os registros da época, cerca de um décimo dos membros da companhia, à época, tinha algum sobrenome judaico. A despeito de alguma resistência, os estrangeiros desembarcaram nas praias de Pernambuco, que prontamente recebeu nome de Nieuw Holland — Nova Holanda, e em questão de menos de uma década já dominavam a região que ia de Natal até o Cabo de Santo Agostinho. Entre outras promessas feitas aos locais, a liberdade de culto e o direito à propriedade.
Calabar
Foi nesse contexto que entra na história aquele que é considerado por muitos o maior traidor da história brasileira: Calabar. Nascido na cidade de Porto Calvo, atual Alagoas, Domingos Fernandes Calabar era um mameluco, filho de um português desconhecido com uma índia. Foi educado pelos jesuítas e, depois de fazer algum dinheiro como contrabandista, gozava de uma vida relativamente próspera, dono de três engenhos de açúcar na região.
Por motivos que até hoje não são totalmente claros — alguns acreditam que ele teria cometido algum crime, ou desejava fugir de sua vida passada como contrabandista, enquanto outros acreditam que teria sido a ambição de uma vida mais próspera sob os holandeses teria sido sua motivação — Calabar apresentou seus serviços ao Alto Comando Holandês em 1632. Profundo conhecedor das matas pernambucanas, das táticas de guerrilha e emboscadas, sua deserção foi um golpe profundo para os portugueses e ajudou demais na expansão do domínio holandês; ele próprio foi nomeado capitão e comandou diversas expedições holandesas, entre elas as que tomaram territórios em Pernambuco como a ilha de Itamaracá, Igaraçu, o forte do Rio Formoso e até mesmo o Forte dos Reis Magos, no Rio Grande do Norte.
Seu prestígio era tanto que, depois de se converter ao protestantismo, um de seus filhos foi batizado na Igreja Reformada de Recife, tendo como padrinho o coronel Sigismund Von Schkoppe, principal militar do lado holandês. Nas palavras de um mercenário inglês a serviço da Holanda, “nunca encontramos um homem tão adaptado a nossos propósitos (…), pois ele tomava um pequeno navio e aterrava-nos em território inimigo à noite, onde pilhávamos os habitantes, e quanto mais dano ele podia ocasionar a seus patrícios, maior era sua alegria.” Sua presença trouxe para a causa holandesa cristãos-novos, negros, índios e mulatos.
Entre os célebres ataques dos quais participou, está o da “Quinta Feira Maior”, em 1633. Como Calabar conhecia mais que os holandeses os costumes católicos locais, convenceu-os a atacar o Arraial de Bom Jesus durante a quinta-feira santa, quando os portugueses estariam ocupados com suas cerimônias religiosas. Em 1634 ajudou a liderar um ataque à sua própria cidade natal, batalha na qual foi ferido com um tiro de arcabuz na perna. No ano seguinte os holandeses tomaram posse de toda a Paraíba, e a Companhia das Índias Ocidentais tomou controle absoluto do centro de produção açucareira do Brasil colonial.
Mas logo o traidor seria traído; um morador da mesma Porto Calvo onde Calabar tinha nascido, Sebastião de Souto, fiel aos portugueses, repassou informações estratégicas sobre as tropas holandesas, e estas é que acabaram caindo numa emboscada. Calabar foi capturado, e os holandeses não fizeram muitos esforços para resgatá-lo ou salvar sua vida. Resignado, Calabar aceitou seu destino com nobreza, confessando seus pecados antes de ser garroteado e esquartejado, tendo os pedaços de seu corpo expostos em diversas partes da fortaleza onde havia sido aprisionado, para que todos soubessem o destino que teriam os traidores.
Edén brasileiro
Estimativas da época dizem que a população da capitania girava em torno de dez mil pessoas, das quais um décimo era formado por judeus, entre cristão-novos e praticantes assumidos — praticamente metade da população branca local. Durante a tentativa de invasão anterior dos holandeses, muitos mitos e histórias foram criados a respeito da colaboração dos cristãos-novos à invasão holandesa, a tal ponto que as autoridades delegaram o poder a qualquer civil de prender todos os suspeitos de terem colaborado com o inimigo: inúmeros inocentes foram condenados à morte por enforcamento e tiveram suas propriedades confiscadas.
Anos mais tarde, uma investigação feita pelas próprias autoridades católicas locais constatou que não só muitos destes cristãos-novos não tinham tido qualquer envolvimento no conflito, mas que muitos “cristãos-velhos”, entre eles muitos clérigos, tinham ajudado a tentativa de invasão holandesa, pois os julgavam “bons cristãos”. Outros o fizeram apenas por julgar que “não havia outro remédio”.
Financiados pelos grandes banqueiros de Amsterdã, os holandeses não demoraram para consolidar sua invasão. Enquanto isso, as poucas tropas luso-brasileiras que ainda conseguiam manter algum tipo de resistência tinham que sobreviver à base de uma espiga de milho por dia. Além de contar com desertores das forças portuguesas, como o mulato Domingos Fernandes Calabar, nativo da região, os holandeses contaram com o auxílio dos tapuias, rivais ferrenhos dos tupis, aliados históricos dos portugueses, cuja aliança foi forjada graças à intervenção de um judeu de Amsterdã, Samuel Cohen.
Foi nessa época que surgiu uma figura que se tornou parte do folclore nordestino: o mascate judeu. Diversos mercadores começaram a circular pelo interior do território, vendendo desde tecidos até escravos. Diante da promessa de uma espécie de nova “Terra Prometida”, onde estariam livre das perseguições que lhes vinham oprimindo há séculos na Europa, judeus embarcaram todos os navios com destino à Nova Holanda.
Foi então que ninguém menos que Maurício de Nassau, herói nacional, responsável por organizar a rebelião holandesa contra a Espanha, foi incumbido pelo governo neerlandês a assumir o comando da região. Depois de expandir o território da Nova Holanda até os atuais Ceará e Maranhão, liderou uma expedição até à costa da África, onde conquistou o Castelo de São Jorge da Mina, garantindo assim uma fonte de escravos para as feitorias de açúcar em território brasileiro.
Sob o domínio de Maurício de Nassau, os holandeses não só patrocinaram a produção e o comércio locais, mas também trouxeram artistas e intelectuais. Pintores como Albert Eckhout e Frans Post deixaram obras que até hoje nos mostram um panorama realista da vida na época, enquanto naturalistas como Georg Marcgraf, autor da Historia Naturalis Brasiliae, descreveram para o resto do mundo as descobertas feitas no Novo Mundo. Mas este Éden brasileiro estava fadado ao fracasso.
Primeira sinagoga
Em 1636, surgiu um dos grandes símbolos da tolerância e liberdade religiosa que os holandeses impuseram sobre a sociedade local. Na chamada “Rua dos Judeus”, onde viviam boa parte dos grandes exportadores de açúcar de origem judaica (e que hoje se chama “Rua do Bom Jesus”), foi fundada a primeira sinagoga das Américas. A sinagoga Kahal Zur Israel, “Congregação Rochedo de Israel”. Seu rabino era Isaac Aboab da Fonseca, um refugiado de Portugal que, depois de ser convertido à força para o cristianismo, estudou com os maiores sábios de sua época e aos 21 anos tinha se tornado um empresário pioneiro no ramo da impressão. É considerado o autor dos primeiros textos em hebraico feitos no continente.
Com o fim da União Ibérica, e a declaração de independência de João IV de Portugal da Espanha, e o surgimento de novos conflitos na Europa forçou Maurício de Nassau a voltar para a Europa, deixando a Companha das Índias Ocidentais novamente na administração das terras holandesas no Brasil. Maurício voltou, mas não sem levar consigo uma frota de treze navios, com uma carga avaliada em 2.6 milhões de florins (dois deles destinados apenas à sua bagagem pessoal), entre eles animais exóticos, peles, plantas e todo tipo de objeto precioso.
A volta da perseguição religiosa
No ano seguinte, uma série de revoltas eclodiram por toda a região, inicialmente fomentadas pelos proprietários de terra, revoltados com as taxas de juros cobradas pelos agiotas holandeses, mas logo encampadas pelo resto da população. Um poderoso senhor de engenho local, João Fernandes Vieira, aliou-se a um amigo, o frei Manuel Calado, e juntos começaram a fazer campanha ferrenha pela expulsão dos “hereges”.
Entre os apelos feitos ao rei de Portugal, consta que havia um pedido para tropas que ajudassem a reconquistar Recife, “pois a cidade é habitada principalmente por judeus, a maior parte fugitivos de Portugal, que abriram ali suas sinagogas, para o horror da Cristandade. Pela honra da fé, portanto, os portugueses precisam arriscar suas vidas e propriedades e destruir tamanha abominação.”
Portugueses, indígenas, escravos, e até mesmo muitos cristãos-novos, se uniram para resistir às tentativas dos holandeses de reestabelecer seu domínio sobre a região. Por nove longos anos e muitas batalhas Recife resistiu, período durante o qual Isaac continuou acolhendo os fiéis em sua sinagoga e escreveu textos em hebraico contando sobre o sofrimento de sua congregação: “muitos judeus foram mortos pelo inimigo; muitos morreram de fome. Aqueles que estavam acostumados a iguarias se viram obrigados a satisfazer a fome com pão seco; mas logo nem mesmo isso conseguiam. Faltava-lhes tudo, e mantiveram-se vivos apenas por um milagre.” Gradualmente, a Coroa portuguesa foi reconquistando o território que tinha perdido, até que em 1654 Recife foi reconquistada, pondo um fim ao sonho da Nova Holanda. Os holandeses levaram o açúcar para as Antilhas, deixando o Brasil para lidar com seu próprio fracasso.
Cerca de 350 judeus morreram durante o combate contra as tropas portuguesas. Com o fim do domínio holandês, voltou uma antiga ameaça: a perseguição religiosa. Os judeus que até então tinham vivido uma vida relativamente próspera na Nova Holanda se viram obrigados a fugir ou se conformar com uma nova realidade. A maioria optou por fugir. Muitos optaram para o sertão. 16 navios foram colocados à disposição dos judeus pelas autoridades portugueses, e foram autorizados a transportar consigo todos os seus bens móveis — incluindo pau-brasil e açúcar. 150 famílias embarcaram nesses navios.
Nova Amsterdã
Acredita-se que maioria voltou para a Holanda, enquanto outros foram para outras colônias holandesas, como o Suriname. Mas dos únicos três de que se tem algum registro concreto, sabe-se com segurança que um voltou para a Holanda, o outro acabou no Caribe, e um, que é o foco desta história, acabou numa Nova Amsterdã.
Inicialmente com destino à Holanda, o navio Valck partiu de Recife, rumo à Holanda, carregando não só refugiados judeus mas também judeus calvinistas fugindo da perseguição católica. Mas ventos fortes e inesperados acabaram por levar a embarcação rumo à direção de Martinica, onde foram atacados por piratas espanhóis.
Após serem abordados, foram novamente atacados, desta vez por uma fragata francesa, que os levou até à Jamaica — ou Cuba, de acordo com algumas fontes. Mas como ambas as ilhas eram, na época, território espanhol, foram todos detidos pelas autoridades locais da Inquisição. Somente depois da intervenção das autoridades holandesas, que ameaçaram criar um conflito internacional caso o governo espanhol não respeitasse uma trégua feita com o governo português, é que estes prisioneiros fossem libertados — e mesmo assim, apenas os que se disseram cristãos-novos. Os outros ainda foram obrigados a passar por um interrogatório. Pouco que se sabe do que aconteceu durante esse tempo; só que saíram do Brasil por volta do Pessach, e chegaram pouco antes do Rosh Hashaná.
Em 7 de novembro de 1654 23 judeus foram levados a outra embarcação, que alguns chamam de Santa Catarina, e outros de São Carlos; o fato é que eventualmente chegaram ao porto de Nova Amsterdã, desembarcando daquele navio que é conhecido como o “Mayflower judeu”. Quatro homens, de um grupo de seis famílias, deixaram sua assinatura ao pisar em terra firme, assinalando assim para sempre sua ligação com a Sinagoga do Recife: Abraão Israel Dias, Moisés Lombroso, David Israel Faro e Asser Levi.
Ao pisar em solo americano, se depararam com uma vila composta de três ou quatro ruas, cinco lojas, um cais, um galpão, uma padaria, na qual porcos e galinhas andavam soltos pelas ruas. Um relato da época conta que 18 idiomas diferentes podiam ser ouvidos nas ruas da cidade (sem contar os idiomas falados pelos escravos africanos e possíveis habitantes indígenas).
Os recém-chegados, no entanto, já foram recebidos por outros dois judeus: Jacob Barsimson e Solomon Pietersen. Barsimson inclusive já tinha vivido no Brasil, de acordo com documentos do período holandês. O governador local, no entanto, Peter Stuyvesant, um calvinista ferrenho, era veemente oposto ao estabelecimento de uma comunidade judaica (“odiosos inimigos, blasfemadores do nome de Cristo”), e tentou ao máximo impor obstáculos para essas famílias. Muitos dos imigrantes levaram anos até poder sequer comprar uma propriedade naquela cidade, e chegaram até mesmo a apelar para as autoridades da “Velha” Amsterdã.
Naquele mesmo ano, os recém-chegados fundaram sua primeira congregação — que até hoje é celebrada na chamada “Sinagoga Portuguesa e Espanhola” da cidade, que, embora não esteja no mesmo local, nem seja o mesmo prédio, ainda carrega consigo o espírito desses pioneiros — e foi, até 1825, a única congregação judaica da cidade.
Em 1655 um pedido de licença para a compra de um terreno destinado a um cemitério foi feito pela comunidade judaica, que foi negado pelas autoridades, sob a alegação de que nenhum judeu dos recém-chegados ainda tinha morrido. Quando o primeiro deles, Assam Levi, morreu, receberam a permissão de enterrá-lo no que então era um terreno longe dos muros da cidade. E que até hoje está repleto de lápides com sobrenomes familiares a todos nós brasileiros, como Mesquita, Nunes, Bueno, etc.
Em 1738 Isaac Mendes Seixas, um judeu de origem portuguesa que tinha parentes entre os 23 imigrantes fixados em Nova Amsterdã — então já Nova York — decidiu abandonar sua vida em Londres e cruzar o Atlântico, fixando-se em Newport, no estado de Rhode Island. Lá teve sete filhos, entre eles Gershom Mendes Seixas, o primeiro cantor de uma sinagoga em território americano, que esteve presente na posse de George Washington, primeiro presidente americano, devido à sua participação na guerra de independência contra o Reino Unido, e Benjamin Mendes Seixas, um dos fundadores da Bolsa de Valores daquela cidade.
Em 1790, George Washington, durante visita à cidade de Newport, recebeu uma carta de Moses Seixas, rabino da sinagoga local, em apoio à sua administração. Washington respondeu:
“(...) o governo dos Estados Unidos (...) não dá ao preconceito qualquer sanção, nem assistência, às suas perseguições. (...) que os Filhos de Abraão que vivem nesta terra continuem a merecer e desfrutar da boa vontade dos outros habitantes; e que enquanto todos possam sentar, seguros, sob suas próprias figueiras e vinhedos, que ninguém faça com que eles sintam temor. Que o pai de todas as misericórdias espalhe sua luz e não escuridão sobre nossos caminhos, e faça de todas as nossas vocações úteis, e, a seu próprio tempo, eternamente felizes.”
Por Rafael Azevedo, Gazeta do Povo