sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

"Mentir e trancar é só começar", diz Guilherme Fiuza

“Se você começar a proibir aglomeração em ônibus, vai faltar povo pra abastecer a quarentena vip, né?” / “Aí você captou tudo. Vidas doces importam”


Passageiro registra lotação de ônibus da linha Zumbi do Pacheco/TI Tancredo Neves em meio à pandemia — Foto: Reprodução/TV Globo

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Fila para embarcar em ônibus no Terminal Integrado do Barro, no Recife, nesta quarta-feira (20) — Foto: Reprodução/TV Globo

Fila para embarcar em ônibus no Terminal Integrado do Barro, no Recife — Foto: Reprodução/TV Globo



— Tem que fechar tudo.

— Tudo o quê?

— Tudo que eu mandar.

— Ah, bom. Já ia perguntar qual era o critério.

— Não entendeu o critério?

— Sim! Agora está claríssimo. É pra fechar o que você mandar.

— Isso. As pessoas fazem confusão à toa.

— Com transparência tudo se resolve.

— Aquele diretor da OMS na Europa que disse pra evitar lockdown devia estar bêbado.

— Eu parei de ouvir palpite. Sigo a ciência e ponto-final.

— Assim é mais seguro. E você pega ciência onde?

— Depende. Se eu estiver com pressa, no jornal da manhã. Se o dia estiver mais tranquilo, no jornal da noite.

— E a produção científica tem estado boa?

— Maravilhosa. Nunca falha. Todas as manchetes confirmam inteiramente os meus fechamentos. Se eu quisesse eu poderia tirar férias e adiar a vida para 2022.

— Você disse manchetes?

— É, manchete. Verdade. Ciência. Não sabe o que é isso?

— Ah, tá. Lógico. Não sei por que pensei em manchete de vôlei.

— De vôlei?

— Sim, aquela defesa quando a bola vem baixa também é manchete.

— Mas não é ciência. Tem que saber separar as coisas.

— Fundamental, são vidas humanas em jogo. Por falar em bola, boa ideia essa das férias até 2022, hein?

— É, mas não vou fazer isso não. O que eu ia ficar fazendo até lá?

— Tem umas praias bonitas por aí.

— Praia perdeu a graça. O bom é fechar praia.

— Parque também.

— E praça. Você não tem ideia como é divertido mandar um monte de homem armado arrastar uma mulher andando sozinha ao ar livre.

— Imagino.

— Não imagina, não. É muito mais excitante do que você pensa.

— Por quê?

— Porque eu mando descer a porrada na mulher e o humanista sou eu! Ahahaha

— Claro! Você está salvando vidas, né?

— Exato. Posso mandar algemar, derrubar, estapear e jogar no camburão que os humanistas do Zoom vão me aplaudir e destacar a minha empatia.

— Não sei quem inventou essa nova ética, mas é gênio.

— Gênio sou eu. Esse aí é um deus.

— Você vai continuar trancando tudo até chegar a vacina?

— Vou. Quer dizer, abro um pouquinho, fecho de novo e vou levando.

— Te preocupam os ônibus cheios?

— Que ônibus?

— Ônibus é aquele veículo grandão que tem roleta e faz barulho.

— Ah, tá. Lembrei. Não me preocupa nada.

— Por quê?

— O barulho que dá problema é o das manchetes. Se tá silêncio nessa área é porque tá tudo bem.

— Ciência, né?

— Ciência.

— Até porque, se você começar a proibir aglomeração em ônibus, vai faltar povo pra abastecer a quarentena vip, né?

— Aí você captou tudo. Vidas doces importam.

— Isso é um movimento político?

— Não, social.

— Sensibilidade social é tudo.

— Agora me dá licença que eu tenho uma festa.

— Ninguém é de ferro. Baile de máscara?

— Não. Baile sem máscara. Máscara só pra entrevista e comunicados soturnos. Tem uma hora que é preciso um pouco de alegria.

— Você merece, depois de salvar tantas vidas.

— Obrigado. O sacrifício vale a pena.

— E quando chegar a vacina? Será o fim?

— De jeito nenhum. A gente vacina, abre, anuncia a nova onda, fecha de novo, vacina de novo, abre um pouquinho, diz que ainda não imunizou legal, fecha, bate, prende, esfola, vacina… Ainda temos muita vida pra salvar, pode ficar tranquilo.

— Que bom. Boa festa. Divirta-se.

— Obrigado. Vou tentar. Mas diversão mesmo pra mim é trancar os outros.

— Quem sabe você não consegue prender alguém no banheiro?

— Ótima ideia! Agora me animei.

— Vai com tudo. Empatia!

— Empatia pra você também.

Revista Oeste