quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

"O ano das máscaras: 2020", por Madeleine Lacsko

 

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Quando você quer esculhambar algo de que todo mundo gosta, torne obrigatório. Não tem erro. Nesse 2020 de uma pandemia pior do que a imaginada pela ficção científica, mandaram todo mundo usar máscara. E foi justamente aí que começou a cair máscara de todo mundo, um por um e nos encaminhamos para o Ano Novo até com influencer desmascarado. Mas obviamente não tem problema cair a máscara se tiver acreditadores profissionais dispostos a fazer a defesa. Sempre tem. Somos brasileiros, acreditamos em tudo.


Em Dom Casmurro, Machado de Assis assegurava que "a mentira muitas vezes é tão involuntária como a respiração". Há que se fazer a ressalva do milionário Aristóteles Onassis, a de que "não ser descoberto numa mentira é o mesmo que dizer a verdade". Também recomendo a sabedoria de Millôr Fernandes, que recomenda: "jamais diga uma mentira que não possa provar". É apontando a mentira do outro como capaz de transformar em verdades as próprias mentiras que o brasileiro atravessou este ano.


Houve quem imaginasse que seríamos capazes de sair melhores como sociedade de toda essa tragédia. Na verdade, suspeito que as pessoas tenham dito isso na tentativa de se convencer. Para que uma tragédia coletiva tenha efeito sobre uma sociedade, é necessário reconhecer que o outro é um ser humano igual a nós. No Brasil, o outro sequer existe. A comprovação científica é a epidemia de caixas de som na praia, nas piscinas dos condomínios e o delicioso hábito de conversar ao telefone ou ouvir música no transporte público sem fones de ouvido.


Infelizmente, a privação obriga o ser humano à verdade inconveniente. As vidas inventadas que tínhamos ou admirávamos foram, pouco a pouco, se desnunando na pandemia. A solução do brasileiro poderia ser cair na real, tomar consciência do problema e buscar solução. É um esforço gigantesco para um país como o nosso, campeão mundial em arrumar desculpa para malandro. Claro que corremos atrás de desculpas capazes de fazer o mundo parecer como gostaríamos que fosse.


O brasileiro não sai das ruas desde 2013, quando R$ 0,20 foram suficientes para transbordar o copo d'água da nossa paciência. Não fôssemos acreditadores profissionais, muita coisa teria mudado. Acabamos no meio de uma pandemia com diversos representantes da "Nova Política" ou da "antipolítica" tocando a sinfonia do "farinha pouca, meu pirão primeiro".


Os lavajatistas vão ao delírio quando falam do novo presidente do STF, Luiz Fux. É o novo herói de capa que substitui a dinastia Joaquim Barbosa e Luiz Roberto Barroso. Sob a batuta do herói, o Supremo Tribunal Federal decide dizer à Fiocruz que quer furar a fila da vacina para todos os seus servidores. Não é decisão muito diferente da que deu por anos auxílio-moradia a juízes. Mas somos acreditadores profissionais. Demitiu-se o secretário de saúde do STF, ele próprio com doutorado pela Fiocruz, e o Brasil acredita que o médico teria feito o pedido à revelia do chefe que, afinal, é um herói do lavajatismo.


O Tribunal Superior Eleitoral declarou uma jihad contra Fake News, algo inevitável diante da lavada que a Justiça tomou dos esquemas organizados com a conivência das redes sociais por quase todos os grupos políticos. O fenômeno foi mundial e a reação também. A nossa acabou com o presidente do TSE, Luiz Roberto Barroso, fazendo live com Felipe Neto e lançando uma campanha contra Fake News estrelada por alguns dos mais notórios propagadores de teorias da conspiração.


"Desconfio muito dos veementes. Via de regra, o sujeito que esbraveja está a um milímetro do erro e da obtusidade", dizia Nelson Rodrigues. Mas o Brasil é acreditador profissional, confia cegamente em qualquer um que esbraveje em público. O próprio Felipe Neto, em sua fase Madre Teresa de Calcutá, resolveu virar fiscal de quarentena alheia. Arroz de festa de todas as aglomerações de famosos, acabou exposto jogando futebol quando dizia estar trancado. E não era futebol na sala não, era no campo. Pediu desculpa dizendo ser a única vez, apareceu gente dizendo que não era não. Pouco importa, haverá quem defenda.


Falando em futebol, a festa do "menino Neymar", que construiu uma concha acústica para celebrar com os amigos num ano de pandemia é também um ótimo resumo da brasilidade. "O brasileiro é um feriado", dizia Nelson Rodrigues. Haverá quem defenda o egoísmo e a insensibilidade diante das desgraças do povo que o consagrou. Haverá quem diga que é inveja apontar a falta de qualidade humana do ídolo nacional. É a queda da máscara do espírito macunaímico do brasileiro que, lá no fundo, não quer privilégio para melhorar nada, mas para poder rir enquanto os outros choram.


Neymar é obviamente o mais visado por concentrar a devoção mais preciosa da pátria de chuteiras, o ídolo do futebol. Acabou isso de dedicar gol para criancinha e não esperem o brasileiro dar uma de Cristiano Ronaldo e ceder hotéis de sua propriedade para fazer hospital. Qual é a lógica? "Farinha pouca, meu pirão primeiro". Perdi já a conta de quantas foram as festas-escândalo dos ricos e famosos na pandemia. E, verdade seja dita, bailão e pagode aqui na periferia nunca pararam e o povo posta no instagram. O ídolo sabe o público que tem.


Ainda estou em dúvida sobre o que me faz sentir mais idiota na pandemia. Tem a questão de me privar de muita coisa em nome de medidas sanitárias científicas que não são respeitadas por quem as decreta ou deveria decretar. Mas a questão de respeitar curandeirismo para não ser linchada na rua porque todo mundo acha que aquilo é verdade está superando. Hoje eu corri de máscara por isso.


"Nada mais cretino e mais cretinizante do que a paixão política. É a única paixão sem grandeza, a única que é capaz de imbecilizar o homem", dizia Nelson Rodrigues. A partir do momento em que nossas autoridades politizaram a pandemia, ficou impossível fugir da imbecilidade, mais contagiosa até que o COVID. Enquanto o país e os meios de comunicação debatem a última imbecilidade de qualquer político, não nos atualizamos sobre medidas de prevenção.


Tenho a mais firme convicção de que o brasileiro odeia médico, gosta mesmo é de curandeirismo. Eu mesma já curei cãimbra de fratura com pino colocando uma tesoura aberta embaixo da cama e enrolando o gesso numa folha de couve, simpatia que me foi ensinada pela mãe de um colega. Os sinais mais evidentes são os pobres coitados anti-máscara, o pessoal que acredita no coquetel mágico de cura do COVID e os queridos que não sabem nem calcular juro de parcela do carnê mas já sabem tudo de porcentagem de eficiência de vacina. Há, no entanto, um grupo mais sofisticado.


O grupo que viu as máscaras desabando é aquele que crê em ciência, defende ciência nas redes sociais mas, como eu, faz exercício físico usando máscara. A OMS já disse que a máscara só piora porque molha de suor, precisa é fazer exercício em lugar aberto e mantendo distância de outras pessoas. Confesso que meu medo de apanhar no parque ganhou essa. Nós, jornalistas, ainda ficamos dizendo que lavar a mão e álcool em gel são a principal forma de prevenção. Apresentamos matérias sobre aglomeração sem fazer distinção entre lugares abertos e fechados. Tudo isso tem a mesma validade científica da simpatia que eu usei no braço quebrado. Mais uma máscara que cai.


Outra máscara que caiu é a do "resgate da alta cultura", prometido por diversos políticos e influencers. Agora já está claro que foram atrás de Nelson Rodrigues para saber mais do conservador brasileiro e acharam que os livros de ficção fossem manuais. Chegamos a um ponto tal de distopia que viramos caricatura da caricatura que já éramos.


O governador de São Paulo desde o início da pandemia fez questão de se colocar como exemplo de políticas públicas, em oposição ferrenha contra o ex-aliado na presidência da República. Já estamos em um ponto que, se a pessoa não dá cloroquina para ema nem é mordida pelo próprio cachorro, achamos razoável. Foi realmente uma vitória João Doria conseguir o acordo da vacina para o Butantã. Daí, decreta quarentena de novo e vai para Miami com a mulher. A viagem durou menos que casamento da Gretchen mas fez cair a máscara. Farinha pouca, meu pirão primeiro.


Para completar a saga do paulista, o herdeiro político do mítico Mario Covas inventa de aumentar o próprio salário em 35% no ano da pandemia, logo após se reeleger. Pior que nem foi na canetada, teve auxílio dos gloriosos vereadores da maior metrópole da América do Sul. Mas não são só eles que terão aumento, o seu plano de saúde também terá, caso você ainda tenha um. E o aumento vai acumular o que foi retido este ano com mais uma sobra de 2021.


O grande injustiçado, como sempre, foi Lula. O STF deu uma decisão que aparentemente pode recontar a história entre o ex-presidente e a Lava Jato. Não precisou de meia hora para que os progressistas lançassem Lula candidato à presidência em 2022. Desde 1989 o PT só tem um candidato à presidência, que é ele. Agora saiu da cadeia, casou de novo, os filhos cresceram, fica postando videozinho cozinhando com a amada no insta. A turma não dá sossego.


Nem o próprio Lula aguenta mais essa reciclagem de jingle e criação de confusão de 4 em 4 anos. Entre os progressistas, a palavra de ordem é revival. Fizeram o revival da pochete, das cores flúor e das ombreiras pontudas. Confesso que aderi aos 3. Mas revival de campanha do Lula nem o próprio Lula aguenta mais. Ele deve, secretamente, desejar umas boas horas de Suplicy cantando a quem tem essas ideias. Deveria mandar a militância fazer curso com a tucanada sobre como deixar o cara em paz com a mulher nova. Nessa, FHC realmente levou a melhor.


Há, principalmente entre as mulheres, quem reclame do hábito de homens velhos poderosos encontrarem parceiras mais jovens. Dizem isso inclusive nos casos de viuvez, como de FHC e Lula. Avalie o que se diz pelas costas do nosso presidente Jair Bolsonaro, que está no terceiro casamento. A verdade inconveniente é que mulheres fazem coisas imperdoáveis também. Um exemplo? 40 anos.


Nunca antes na história desse país teve gente se elegendo com bandeira de família tradicional porque todos nós sabemos a quantidade de duas caras que há por aí. Invejosos reclamam que o presidente está no terceiro casamento e há quem estranhe a forma como a família passa as festas de final de ano. O marido joga futebol com uma camisa onde se lê "Cabaré" enquanto a esposa viaja com o próprio maquiador. Pura inveja dos críticos. Toda família tradicional tem dessas, né? A minha não e nem é tradicional, mas chegarei nesse nível espiritual um dia.


Não culpem o governo por problemas na família, cada um tem a sua e sabe como é difícil. Caídas as máscaras de família perfeita, a verdade é que filhos e maridos ganharam muita moral nos últimos tempos. Ao acompanhar o dia a dia dos filhos do presidente, que já nasceram com a vida ganha, a gente começa a achar que os nossos nem fazem tanta bobagem assim, são gênios até. E tem o Paulo Guedes, que é a personalidade redentora de todos os maridos que prometem consertar coisa em casa. Sabem o "ah, deixa que eu faço" e não faz nunca? Então, já aprendemos que os nossos prometem menos e nem demoram tanto.


Pelo menos uma alegria a gente tem, a vitória mundial dada pelo Consórcio Internacional Anticorrupção ao presidente Bolsonaro. Ele é a personalidade do ano de 2020 em Crime Organizado e Corrupção. O prêmio existe desde 2002 e o único latino-americano a receber o galardão havia sido Nicolás Maduro. O Brasil votou em Jânio Quadros para varrer a bandalheira, votou em Collor para caçar os marajás, votou no PT pela ética na política. Todos os nossos movimentos anticorrupção têm o mesmo sucesso, não podemos negar.


Não se preocupe. Ano que vem, se o mundo não acabar, continuarão todos aí, os políticos, influencers, altos funcionários públicos, comentaristas lacradores, picareta que grita suas certezas, ídolos do futebol, artistas pop, ricos e famosos. Todos eles têm quem os defenda publicamente. Cancelado mesmo pode ser você caso faça algo grave como lavar a calçada sem máscara ou deixar o cachorro no carro para pegar pão na padaria. Minha meta para 2021, aliás, é arrumar defensores incondicionais para qualquer presepada que eu venha a fazer.


O ano de 2020, aquele em que fomos obrigados a usar máscara, não fez cair as máscaras só entre as figuras públicas. Nas nossas casas, relações familiares, profissionais e de amizade todas as máscaras caíram. É na tempestade que conhecemos os marinheiros e tivemos tempo ruim para conhecer lados ocultos de todos eles. Seja pelas dificuldades objetivas ou pela queda de máscaras, você provavelmente descobriu dentro de si uma força que não imaginava ter.


"O ser humano é cego para os próprios defeitos. Jamais um vilão do cinema mudo proclamou-se vilão. Nem o idiota se diz idiota. Os defeitos existem dentro de nós, ativos e militantes, mas inconfessos", dizia Nelson Rodrigues. A cena pública é a soma das nossas virtudes e defeitos. Parece que não estamos tão bons assim de matemática. Que em 2021 saibamos amar mais e julgar menos para dar aos problemas reais o tratamento que merecem. Problemas precisam ser reconhecidos e resolvidos, parar de casar com eles já será um ótimo começo.


Madeleine Lacsko é jornalista desde a década de 90. Foi Consultora Internacional do Unicef Angola, diretora de comunicação da Change.org, assessora no Supremo Tribunal Federal e do presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alesp. É ativista na defesa dos direitos da criança e da mulher


Gazeta do Povo