quinta-feira, 9 de abril de 2020

O custo da ineficiência - Nos últimos dez anos, 46 empresas públicas consumiram R$ 190 bilhões do seu dinheiro que poderiam ter sido usados para o combate ao vírus chinês

O jornalista Marcio Moreira Alves tinha uma frase implacável sobre o que acontecia no nosso país: “Tudo que só existe no Brasil e não é jabuticaba é besteira”. É o caso das estatais que se encontram em um limbo burocrático. Trata-se de terreno tão pantanoso e, ao mesmo tempo, tão perigoso que, se não fosse pela existência dessas tralhas imaginárias, mas letais, sem dúvida nenhuma teríamos mais capacidade (e fundos) para enfrentar a pandemia da covid-19 que assola a nação desde meados de março deste ano.
Achou isso um exagero? Pois então imagine uma empresa com 132 funcionários, que tem sede no Distrito Federal, estatuto definido e um orçamento de quase R$ 100 milhões por ano. Imagine ainda que ela produz quase nada e mal consegue pagar as próprias contas. Parece algo impossível? Sim, essa empresa existe – e quem a financia é você.
Eis o retrato da Empresa de Planejamento e Logística (EPL). Seu objetivo inicial era implementar o trem-bala que faria a ponte Rio-São Paulo-Campinas. Idealizada por Lula em 2010 e parida por Dilma Rousseff em 2011, a estatal foi batizada de “Empresa de Transporte Ferroviário de Alta Velocidade S.A (ETAV)”.
Mesmo antes de nascer, já recebera um mimo: o ex-presidente condenado a mais de 20 anos de cadeia afirmou que a União garantiria o financiamento de até R$ 20 bilhões ao concessionário do trem-bala via BNDES. A promessa de conclusão da obra ficou para 2016, quando o Brasil seria a sede das Olimpíadas.
Rebatizada EPL no ano seguinte à abertura, teve suas funções ampliadas. Além de desenvolver o trem-bala, subsidiaria “o planejamento de outras modalidades de transporte”.
Em 2013, o número de funcionários, que até então era 65, aumentou para 162 — na época, a empresa já acumulava uma dívida de R$ 1 milhão.

E assim o prejuízo alcançou R$ 20 milhões.
No ano seguinte, apesar de algumas demissões, o saldo devedor foi para R$ 40 milhões. Em 2018, do Orçamento foram injetados R$ 64 milhões — quase metade para pagar os salários e encargos de 140 pessoas (cada um dos três diretores da estatal recebe R$ 29.274,26, enquanto na iniciativa privada a média para o cargo é de R$ 15.702,20). Passados nove anos desde sua criação, a estatal ainda não entregou o trem-bala, e nem entregará.
Sem muitos esclarecimentos, o presidente Jair Bolsonaro decidiu retirá-la do pacote de privatizações de 2020.

Existência injustificável

Para o economista e professor pesquisador do Centro Mackenzie de Liberdade Econômica Ulisses Gamboa, a existência de uma empresa pública, como a EPL e tantas outras, não se justifica.
Ele vai além e afirma que a Petrobras e alguns bancos públicos devem ser repassados à iniciativa privada. “O governo precisa fazer uma avaliação geral das empresas públicas e ver o que realmente importa do ponto de vista econômico e social”, assevera, ao observar que o tamanho ideal do Estado é aquele que seja compatível com suas funções básicas e inalienáveis: proporcionar segurança pública efetiva e saúde básica. “As 19 empresas que dependem do Tesouro não dão lucro e o governo tem de mantê-las num momento em que há escassez de recursos até para aplicar no Bolsa Família.”
No Brasil, existem 456 empresas estatais, sendo 198 federais e 258 estaduais, de acordo com o Ministério da Economia.
Se levarmos em conta as subsidiárias, o número salta para 698. Em termos de comparação, os Estados Unidos e o Reino Unido possuem 16 estatais, cada um. A Alemanha e a França, por exemplo, mantêm 71 e 51 corporações, respectivamente.
Das empresas federais brasileiras, 19 dependem do dinheiro dos pagadores de impostos para sobreviver.

Ao somar os gastos com as estatais em 2018 e 2019, chega-se ao valor aproximado de R$ 40 bilhões. No período, seria possível comprar/construir:
  • 250 mil casas populares, ou
  • 276 mil ambulâncias tipo UTI, ou
  • 20 mil escolas estaduais, ou
  • 26 mil creches, ou
  • 160 hospitais com cerca de 190 leitos cada, ou
  • 1.300 trens com oito vagões cada
Em 2019, segundo informações da Secretaria de Planejamento, o déficit foi de R$20 bilhões (valor equivalente ao PIB da Mauritânia, país do continente africano). Em 2018, foi de R$ 19 bilhões e, em 2017, de R$ 14,8 bilhões.
Em uma década (2009-2018), foram direcionados R$ 160 bilhões para socorrer essas empresas. Acrescente-se a esse valor mais R$ 30 bilhões usados para aumentar os investimentos e o capital de outras 27 estatais que também pertencem à União, mas não dependem diretamente do Tesouro, e teremos uma conta de quase R$ 200 bilhões.
Confira, no gráfico abaixo, a lista de estatais federais que são custeadas por você:

O grupo das estatais improdutivas/deficitárias reúne exemplos que, apesar de existirem juridicamente e possuírem a estrutura de uma empresa convencional, chegam a ser cômicos quando analisados mais de perto.

Uma comédia de erros

É o caso da Amazônia Azul Tecnologias de Defesa S.A. (Amazul). Criada em 2012 para ajudar a Marinha a desenvolver um submarino de propulsão nuclear, tem uma história semelhante à da EPL. Em 2016, a empresa já tinha um déficit de R$ 27 milhões apenas com despesas trabalhistas. Em 2018, recebeu do Tesouro R$ 326,8 milhões e, em 2019, R$ 371 milhões. Atualmente, a Amazul tem 1.850 funcionários e nenhum submarino.
Outra excentricidade financiada por você é o Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec), com sede na capital gaúcha. Criado em 2008, sua função seria fabricar chips para o reconhecimento de animais, medicamentos, hemoderivados e veículos.
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Entre 2012 e 2018, as receitas acumularam R$ 16 milhões frente a um prejuízo que chega a R$ 42,6 milhões. No total, o Ceitec já recebeu da União R$ 1,8 bilhão.
Os estados federativos também têm papel de destaque na peça burlesca paga com dinheiro público. No Acre, por exemplo, o então governador Jorge Viana (PT) idealizou uma estatal de camisinhas concebida em 2008 por seu sucessor, o também petista Binho Marques.
A fábrica se chama Nátex e está vinculada à Fundação de Tecnologia do Acre (Funtac). À época, dos R$ 31 milhões investidos, R$ 19 vieram da União. O foco era produzir preservativos a partir do látex de seringueiras e vender as unidades ao Ministério da Saúde. Com capacidade para produzir 100 milhões de camisinhas, o governo federal adquiriu apenas 41 milhões há três anos. Em 2018, a empresa tinha uma dívida trabalhista de R$ 1,2 milhão, além de enfrentar sucessivas interrupções na produção.

A causa de todos os problemas

Esses são só alguns exemplos de um Estado cada vez mais inchado e ineficaz. Desde a redemocratização, 71 estatais foram fundadas. Fernando Henrique Cardoso criou 27 — mas privatizou 48 —, Lula e Dilma Rousseff, 43 (o número é próximo das 47 empresas públicas abertas pelo regime militar), e, Michel Temer, uma.
O custo da improdutividade, da inércia e do estatismo é um tapa na cara do brasileiro decente, que por muito tempo assistiu impotente ao crescimento da máquina pública, à burocracia excessiva e escutou calado o discurso arrogante de que só um Estado forte é capaz de reparar as desigualdades do Brasil.
Gráfico - Cronograma de Desestatização
Fonte: Ministério da Economia
O tempo e a prática, porém, confirmaram um velho ensinamento do ex-presidente norte-americano Ronald Reagan, segundo o qual não se deve esperar soluções do Estado porque ele é a causa de todos os problemas.
“Governos não criam riqueza, quem faz isso são as indústrias e os serviços. É o povo, com sua própria bagagem e sua própria capacidade de iniciativa, que cria empresas”, constatou Margaret Thatcher numa entrevista em 1994.
Passados 26 anos, nossos governantes ainda não assimilaram o que disse a primeira-ministra britânica, responsável por modernizar o Reino Unido nos 11 anos em que permaneceu no poder (1979-1990). E saber dessas bobagens travestidas de jabuticabas, criadas por anos e anos de burocracia inútil, nos ajuda a entender que, apesar do desafio do coronavírus, nada deve impedir por aqui a existência de um verdadeiro processo de desestatização. Afinal, já estamos cansados do custo da ineficiência das nossas estatais – e que certamente fariam a Dama de Ferro se revirar no túmulo.

, Revista Oeste