NOVA YORK — Em uma famosa parábola hindu, três homens cegos encontram um elefante pela primeira vez e tentam descrevê-lo, cada um tocando uma parte diferente. "Um elefante é como uma cobra", diz um deles, segurando a tromba. "Absurdo; um elefante é um ventilador”, diz outro, segurando uma orelha. "Um tronco de árvore", insiste um terceiro, sentindo o entorno de uma perna.
No mundo anglófono, uma confusão semelhante envolve Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), o astuto cronista do Rio de Janeiro que Susan Sontag uma vez chamou de "o maior escritor já produzido na América Latina".
Para Stefan Zweig, Machado foi a resposta do Brasil a Dickens. Para Allen Ginsberg, ele era um outro Kafka. Harold Bloom chamou-o de descendente de Laurence Sterne e Philip Roth o comparou a Beckett. Outros citam Gogol, Poe, Borges e Joyce. No prefácio de “As Histórias Coletadas de Machado de Assis”, publicado este mês, o crítico Michael Wood invoca Henry James, Henry Fielding, Tchekhov, Sterne, Nabokov e Calvino — todos em dois parágrafos. Para complicar ainda mais, Machado sempre me lembrou Alice Munro.
O que está acontecendo aqui? Que tipo de escritor induz tais caracterizações arrebatadoras e descontroladamente inconsistentes? Que tipo de escritor pode protagonizar tantas fantasias diferentes?
O Machado, teimoso e inclassificável, nasceu na pobreza, neto mestiço de escravos libertos. Ele não tinha educação ou treinamento formal. Como Twain, seu contemporâneo, começou como aprendiz de tipógrafo. Num regime de auto-educação feroz, ele se estabeleceu inicialmente como escritor de romances esguios para e sobre as mulheres da elite dominante.
Mas em 1879, seu estilo mudou — ou melhor, nasceu. A doença prolongada (Machado era epiléptico) e a quase perda da visão chamaram a atenção dele. O romântico gentil se transformou num irônico perverso cujas intrusões autoritárias, saltos e pura travessura influenciaram experimentalistas americanos como John Barth e Donald Barthelme.
Cinco romances produzidos nesse período — incluindo sua obra-prima “As Memórias póstumas de Brás Cubas” (1881) — cimentaram sua reputação. Se esta coleção de 76 histórias (tiradas de mais de 200) não pode se colocar nesse nível, ainda assim oferece um ponto de vista diferente e valioso — especialmente para os leitores que gostam de manter um olho na vida, bem como na arte.
“The Collected Stories” revela o arco da carreira de Machado, desde as histórias de amor diretas até os posteriores trabalhos cerebrais e imprevisíveis. Uma história é contada do ponto de vista de uma agulha. A sátira política começa a aparecer. Em um conto, um ditador, careca desde a juventude, decreta que todos os seus súditos devem também raspar suas cabeças, argumentando que a "unidade moral do Estado dependia de todas as cabeças terem a mesma aparência".
As histórias de Machado pulsam com a vida. Os finais são frequentemente sombrios e estranhos, muitas vezes abruptamente truncados. O título de um trabalho inicial os caracteriza bem: “Muito calor, pouca luz”.
Certas preocupações persistem: viúvas sedutoras, jovens ingênuos, uma predileção pelas coincidências. Machado permaneceu fascinado pela feminilidade e as restrições que regem a vida das mulheres — é por isso que ele me lembra de Munro. Como peças de xadrez, as bem-nascidas senhoras do Rio podiam fazer apenas alguns movimentos autorizados (Machado era um fanático por xadrez), mas elas tinham tudo a ganhar ou perder.
Acima de tudo, aparece a figura da bibliomania. "Esta é a minha família", diz uma, apontando para sua estante de livros. Essas personagens são moldadas pela leitura, às vezes até mesmo fisicamente (“a cabeça dele se projetava um pouco por seu longo hábito”).
Uma característica curiosa das histórias de Machado é a ausência do Brasil. Há poucos marcos geográficos, poucas menções ao clima. Mas há alusões a Molière e Goethe. Romances e autores são as sinalizações. Como seus personagens, Machado era uma criatura da literatura; tinta correu em suas veias. Embora ele nunca tenha ido longe de sua cidade natal, leu amplamente, reivindicando toda a cultura, toda a Europa — dando ao seu trabalho aquela sensação notavelmente aberta e cosmopolita.
Essa criação de uma cartografia pessoal — de ancorar-se na vida da mente — poderia explicar uma das frustrações prolongadas com a obra de Machado: a recusa em escrever mais explicitamente sobre a escravidão. Ele pode não ter ousado; a escravidão só terminou no Brasil em 1888. Suas histórias permanecem, às vezes de forma monótona, na elite. Os escravos esvoaçando em silêncio.
No entanto, Machado está sempre escrevendo sobre a libertação em seu caminho, que para ele começa com a liberdade — a obrigação — de pensar. Poucos escritores de ficção escreveram tão carinhosamente sobre ideias, como se fossem pessoas reais. Ele está sempre descrevendo como as ideias emergem e se movem, como elas podem se perder e ficar presas a outras pessoas. A maneira como elas podem parecer "totalmente formadas e belas", ou "engravidar" de outras ideias.
Ideias e fixações elevam e distorcem essas histórias. Em uma, um homem consumido por seu pássaro de estimação se torna "puro canário". Em outra, um pai que pretende preparar seu filho para se tornar um “grande pretendente” exige que ele cultive a insipidez necessária: “Proíbo-o de chegar a quaisquer conclusões que ainda não tenham sido alcançadas por outros. Evite qualquer coisa que tenha sequer um sopro de reflexão, originalidade ou algo parecido”.
Para Machado, sua identidade e os contornos do seu mundo são formados não apenas por suas circunstâncias, mas pelo que você pensa habitualmente. Você é o que você contempla, então escolha sabiamente. Essas histórias são um lugar espetacular para começar.
Nome: “The Collected Stories of Machado de Assis”. Tradução: Margaret Jull Costa e Robin Patterson. Páginas: 930. Preço: $35.
por Parul Sehgal, The New York Times - Com O Globo