quarta-feira, 13 de junho de 2018

"É mentira que as despesas da dívida pública sejam metade do gasto do governo", diz Alexandre Schwartsman


Candidatos que se dizem entendedores de economia, como Ciro Gomes, repetem a lorota à exaustão

É mentira que as despesas da dívida pública representem metade do gasto do governo, muito embora seja repetida à exaustão por candidatos que se dizem entendedores de economia, como Ciro Gomes
O truque empregado por quem quer propagar a lorota consiste em jogar no mesmo balaio o gasto com juros da dívida e o pagamento de amortizações, transações que têm natureza fundamentalmente distinta.
Para entender isso, considere o seguinte exemplo (roubado, confesso, de Eduardo Giannetti da Fonseca).
Muitos dos leitores (assim como eu) em algum momento de suas vidas alugaram um lugar para morar e pagaram ao proprietário pelo uso do imóvel. Esse desembolso comprometeu parcela de sua renda.
Imagino também que, por vários motivos, inquilinos se mudaram e, claro, entregaram ao locatário o imóvel que vinham usando. Nenhum de nós, porém, considerou que devolver o imóvel alugado tenha sido uma despesa que consumiu parte da nossa renda. Nem deveria, porque não faz o menor sentido tomar como gasto o mero retorno de algo que não é seu.
O pagamento de amortizações da dívida não é distinto da devolução do imóvel: o governo apenas retorna ao proprietário aquilo que não é seu, ou seja, dinheiro que tomou emprestado no passado para custear o excesso de despesas sobre suas receitas. 
A diferença é apenas uma questão de prazo: o imóvel é devolvido ao fim do contrato; já a dívida mobiliária federal tem prazo médio ao redor de 48 meses, ou seja, a cada ano cerca de um quarto da dívida precisa ser quitada. Isso é feito pela troca dos papagaios que vencem naquele ano por novos que vencerão dali a alguns anos, processo que é conhecido como rolagem da dívida. 
Como a dívida federal é da ordem de R$ 3,7 trilhões, o governo precisa rolar pouco mais de R$ 900 bilhões a cada ano. 
O gasto primário (isto é, sem juros) do governo federal atingiu R$ 1,34 trilhão nos 12 meses até abril, enquanto o gasto com juros chegou a R$ 380 bilhões no mesmo período. 
O truque é somar aos gastos de verdade (1,34 + 0,38 = 1,72 trilhão) as amortizações, o que dá um total de R$ 2,6 trilhões. Aí consideram-se o pagamento de juros e as amortizações (R$ 1,3 trilhão) como “gasto
financeiro” e temos uma cascata com aparência de verdade, embora seja, à luz do exemplo acima, tão falsa quanto somar o valor do apartamento devolvido como parte das despesas da família.
Por outro lado, o argumento também ignora os gastos dos demais níveis de governo, isto é, estados e municípios. No conjunto da obra, o governo geral gastou no ano passado nada menos do que R$ 3,1 trilhões, algo como 47% do PIB (Produto Interno Bruto), dos quais o gasto com juros representou pouco menos do um quinto do total. 
Posto de outra forma, as despesas com juros consomem R$ 1 de cada R$ 5 gastos pelo governo em seus três níveis. Não é pouco, mas fica muito aquém do número repetido pelos ciros e similares, o que nos leva à seguinte pergunta: trata-se de ignorância ou má-fé?
Em certo sentido, a resposta é irrelevante: ambas as alternativas são muito ruins, mas, se alguém estiver interessado na minha opinião, eu diria ser uma mistura equilibrada das duas.
Isto dito, é notável como nenhum dos economistas ligados ao candidato se manifestou acerca dessa óbvia falsidade. Como imagino não ser por ignorância, adicionamos à má-fé outra possibilidade: a covardia, evidente no pavor de contrariar o chefe.
Alexandre Schwartsman
Ex-diretor de Assuntos Internacionais do BC, é doutor em economia pela Universidade da Califórnia

Folha de São Paulo