quarta-feira, 6 de junho de 2018

"A misteriosa relação entre globalização, tecnologia e trabalho", por Marcos Troyjo

Dois homens experimentam o equipamento. Um está de casaco azul claro e põe seu dedo indicador esquerdo em frente aos óculos. O outro, de camiseta azul com estampa amarela, repete o gesto. Eles são observados por três pessoas que aparecem atrás deles.
Expositores ensinam como usar óculos de realidade mista na conferência
anual de desenvolvimento de softwares da Microsoft em Seattle 
Elaine Thompson - 7.mai.18/Associated Press

Uma das principais características da economia contemporânea reside no pressuposto de que a robótica e a automação, bem como outras tecnologias de ponta, ameaça a existência de profissões e postos de trabalho como os conhecemos até agora.
A hipótese é verdadeira. “Desenhista remoto em 3D”, “administrador de dados em nuvem”, “curador de inteligência artificial (IA) aplicada à logística” são algumas das novas profissões. Elas fazem com que algumas ocupações —gestão de imagem em rede social ou webdesigner— há pouco novidades, já pareçam pouco inovadoras. 
O poder de transformação da tecnologia sobre o mundo do trabalho é imenso. Assim, é um erro creditar à globalização o papel de principal culpada pela obsolescência de regiões e setores manufatureiros nas principais economias do Ocidente. 
Quando determinadas atividades industriais se transferem a outros países seja por razão de maior produtividade, especialidade ou menor custo, os ganhos de eficiência podem ser utilizados no reinvestimento em áreas de maior valor agregado (como marketing, design ou pesquisa & desenvolvimento).
Ao observarmos esses fenômenos, estamos diante da fundamental transição da “manufatura” para a mentefatura” (em inglês, diríamos from manufacturing to mindfacturing).
Na mesma linha, é equivocado colocar na conta da influência da imigração o deslocamento da empregabilidade de setores em economias avançadas, como a maioria das que compõem a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). 
No caso dos EUA, pesquisas recentes já registram que os norte-americanos temem mais pelo impacto da IA sobre seus empregos do que aquele causado pela imigração ou pela mudança de elos da cadeia produtiva a outros países. Aliás, essa mesma pesquisa aponta que 73% acham que a IA mais atua na destruição do que na criação de oportunidades de trabalho.
A propósito, a relação imigrantes-tecnologia-emprego no mais das vezes parece percorrer o caminho inverso. Com o estabelecimento de restrições à imigração, mudam-se os fluxos de investimento de empresas estrangeiras intensivas em tecnologia. 
O Canadá, por exemplo, com menos restrições à imigração de pessoal qualificado em setores de alta tecnologia, está ganhando dos EUA na corrida global por talento —e atraindo grande volume de startups tecnológicas.
Como sabemos, a preocupação com o efeito da introdução de novas tecnologias sobre o trabalho não é nova. No começo do século 19, com a Revolução Industrial a pleno vapor, arregimentou-se o ludismo — um movimento na Inglaterra em que artesãos invadiam fábricas de tecelagem e destruíam as máquinas que aparentemente lhes estavam roubando o ganha-pão. 
Embora alguns historiadores argumentem que o movimento em si nada tinha contras as máquinas, mas tudo em favor de melhores condições de trabalho, o ludismo ficou marcado como esforço estéril perante a imperiosa dinâmica de inovação.
O quão esse debate sobre tecnologia e trabalho é envolto em sutilezas analíticas pode ser esclarecido com o exame contemporâneo de economias como as de EUA, China, Japão e Alemanha. Trata-se aqui, respectivamente, dos países que detêm os quatro maiores PIBs (produto interno bruto) do mundo.
São, da mesma forma, as quatro nações que mais depositam patentes, uma boa medida do ritmo e volume de inovação, na OMPI (Organização Mundial da Propriedade Intelectual). 
Ora, se o avanço da tecnologia põe em risco os postos de trabalho, e esse processo obviamente é algo que não começou agora, era de supor que o desemprego relacionado à tecnologia crescesse progressiva e estruturalmente nessas economias, certo?
Bem, o que então dizer das últimas estatísticas sobre o nível de desemprego nesses quatro países? Impressiona notar que ele se encontra em patamar espetacularmente baixo: EUA (3,8%, maio de 2018), China (3,89%, março de 2018), Japão (2,5%, abril de 2018) e Alemanha (3,4%, abril de 2018). Só para lembrar, o desemprego no Brasil —que não é exatamente um portento tecnológico— é de 12,9% (abril de 2018).
Além de seu elevado índice de inovação tecnológica, esses países apresentam em comum a grande escala comparativa de suas economias; o perfil, no agregado, como as quatro maiores nações comerciantes (medido pelo fluxo nominal combinado de exportações e importações); boa governança macroeconômica e instituições que incentivam e asseguram a inovação. 
Em síntese, economias mais competitivas —ao contrário do que por vezes pregam seus líderes atuais— permitem a transformação do mundo do trabalho e da empresa. Em vez de os evitar, preparam-se para o desafio de novos tempos. É bem melhor estar ciente disso do que travar batalhas imaginárias contra inimigos camuflados na globalização, na imigração ou na tecnologia.
Marcos Troyjo
Diplomata, economista e cientista social, é diretor do BRICLab da Universidade Columbia

Folha de São Paulo