Há décadas, um tema não era tão hegemônico na sociedade como a urgência de se combater o avanço do crime organizado — e a boa notícia é que
D e tempos em tempos, um fenômeno raro acontece no curso da História: um país inteiro se une em torno de um mesmo tema, movido pela percepção de que é hora de mudar. Foi assim em 2013, quando o Brasil assistiu ao nascimento de sua última grande onda — um furacão inicialmente confuso, mas que se consolidou no combate à corrupção e sacudiu a República, renovando a classe política. Agora, às vésperas de um novo ano eleitoral, a segurança pública é a bola da vez.
Esses fenômenos não são corriqueiros justamente porque é difícil encontrar unanimidade num assunto. Hoje em dia, os debates são pautados por paixões ideológicas. Mas quem não está cansado de ver a bandidagem se espalhar e se sofisticar? É um jogo no qual o pagador de impostos e as famílias só perdem. No Brasil, faltava apenas riscar um fósforo para o grito de “basta”. Foi o que aconteceu há duas semanas, depois que a Polícia Militar subiu o morro do Alemão e da Penha, na zona norte do Rio de Janeiro, e caçou os líderes do Comando Vermelho. Morreram 121 pessoas, entre elas quatro policiais. Segundo dados oficiais, 115 dos 117 mortos identificados eram traficantes armados até os dentes — com fuzis, granadas e drones térmicos.
A reação da população foi imediata: todas as pesquisas feitas no período registraram aprovação avassaladora à ação policial, num recado claro a Brasília. Os governadores dos Estados do Centro-Sul do País entenderam e pressionaram o Congresso Nacional. Tarcísio de Freitas, de São Paulo, enviou seu secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite, que tem mandato de deputado, para relatar um pacote de leis contra o crime organizado, aprovado na terça-feira, 19 (leia reportagem Eugênio Esber nesta edição).
A velocidade com a qual o projeto passou pela Câmara é o primeiro sinal de que os deputados sentiram o chacoalhão da sociedade e fizeram cálculos eleitorais para a campanha do ano que vem. Paralelamente, o governo Lula da Silva percebeu que estava contra as cordas. Seu bloco de apoiadores — na política, na velha imprensa, no MST e até no Judiciário — desta vez não tinha como socorrê-lo.
Afinal, trata-se de uma bandeira que, desde a origem, coloca direita e esquerda em polos opostos. O petista até tentou apresentar um projeto próprio, mas o texto era vazio. E o motivo é evidente: a esquerda não quer apertar o cerco contra o crime. O placar de como votou cada parlamentar na terça-feira, disponível no site de Oeste, é autoexplicativo: PT, Psol e seus satélites se recusaram a apertar o botão contra a bandidagem.
Para os políticos de esquerda, defender um combate ostensivo à criminalidade esbarra em vários compartimentos do velho baú ideológico. O governo Lula pisa em ovos ao lidar com ONGs de direitos humanos que, não raro, se misturam a facções para lavar dinheiro; com o emaranhado de teses acadêmicas que pregam o desencarceramento — afinal, o jovem seria sempre uma vítima da sociedade —; e com os discursos que pavimentaram a ascensão do PT, atrelados a questões de gênero, raça, pobreza etc.
A lista é extensa. Nos últimos meses, esse varal de justificativas ficou ainda mais pesado com declarações do próprio presidente: do traficante como “vítima do usuário” à acusação de que a operação contra traficantes no Rio foi uma “matança”. Ou seja, se Lula falou, para a militância está falado.
A esquerda parece tão atordoada nessa seara que o líder do PT, Lindbergh Farias, subiu à tribuna várias vezes durante a votação do Projeto Antifacção, mas os aliados não compreendiam o que ele estava defendendo. Chegou a iniciar uma das falas, já com o plenário a todo vapor, assim: “Nós conseguimos vitórias importantes e quero parabenizar a bancada, como também a sociedade brasileira, que se mobilizou quanto a isso”. A poucos metros, as lentes da TV Câmara flagraram petistas se entreolhando, sem entender do que ele tratava. A derrota foi de 370 votos contra 110.
Lindbergh comemorava o fato de o texto não equiparar facções ao terrorismo, uma das exigências de Lula. Nesse ponto específico, o presidente da Câmara, Hugo Motta, ajudou o governo. De fato, era o ponto visceral para Lula. O líder do PL, Sóstenes Cavalcante, brincou numa analogia à partida de futebol: “Dava para ganhar de goleada, mas voltamos para casa com o 1 a 0”. O que Sóstenes quis dizer com isso?
Que essa classificação como narcoterrorismo permitiria ao Brasil acompanhar os ventos de mudança que empurram a conjuntura continental. Desde que retornou à Casa Branca, o presidente Donald Trump afirma que pretende exterminar a multinacional de produção de drogas que se formou na América do Sul. Começou a empreitada com forte pressão para tirar o ditador Nicolás Maduro do poder na Venezuela. Mas já incomoda o presidente colombiano Gustavo Petro, um ex-terrorista, e acompanha de perto cenas de ebulição social no México.
“A Colômbia tem fábricas de cocaína. Se eu acabaria com essas fábricas? Teria orgulho de fazer isso porque salvaríamos milhares de vidas”, afirmou Trump nesta semana, durante conversa com jornalistas no Salão Oval. Em seguida, questionado sobre o vizinho México, foi bem direto, ao seu estilo: “Por mim, OK, faremos o que for preciso para parar as drogas”.
Não seria a primeira vez que os Estados Unidos ajudariam a sanar essa chaga no continente. Nos anos 1990, os americanos desmontaram cartéis colombianos em série — o principal deles, o de Medellín, do lendário Pablo Escobar. Washington enviou US$ 1 bilhão para a compra de helicópteros militares e treinamento de brigadas antinarcóticos do Exército e da polícia colombiana. Também já ocorreram incursões nas zonas de fronteira com o México.
Países governados pela esquerda, como Colômbia, México e Brasil, não querem cooperar numa megaoperação contra o narcoterrorismo.
”Nós sabemos os endereços de todos os chefões do narcotráfico. Sabemos tudo sobre cada um deles. Eles estão matando nosso povo, é como uma guerra. Se eu faria isso [lançar ataques dentro da Colômbia e do México]? Teria orgulho de fazer isso.” (Donald Trump, na segunda-feira, 17)
Há duas semanas, foi oficializada uma operação contra o tráfico, batizada de “Lança do Sul”. O anúncio foi feito pelo secretário de Guerra, Pete Hegseth. “Esta missão remove narcoterroristas do nosso hemisfério e protege nossa pátria das drogas, que estão matando nosso povo. O hemisfério ocidental é a vizinhança da América, e nós o protegeremos”, afirmou.
Department of War is delivering. Today, I’m announcing Operation SOUTHERN SPEAR. Led by Joint Task Force Southern Spear and @SOUTHCOM, this mission defends our Homeland, removes narco-terrorists from our Hemisphere, and secures our Mostrar mais
Recentemente, Trump movimentou a máquina de guerra mais letal do planeta no Mar do Caribe, o porta-aviões USS Gerald Ford, com capacidade para 90 aeronaves e cerca de 5 mil fuzileiros. Disse que Maduro “está com os dias contados” — a recompensa por informações que levem à sua prisão é de US$ 50 milhões. Desde então, os americanos já afundaram 20 embarcações venezuelanas com cargas de drogas no Caribe e no Pacífico.
Guinada à direita O exemplo mais recente de que chegou a hora de enfrentar o problema com firmeza na vizinhança ocorre no Chile. Dois candidatos disputarão o segundo turno da corrida presidencial: a comunista Jeanette Jara e José Antonio Kast, apelidado de “Bolsonaro chileno”.
Os demais candidatos competitivos também são liberais ou conservadores e vão apoiar Kast na reta final. Segundo uma pesquisa feita pelo instituto Ipsos, em outubro, dois em cada três chilenos apontaram o crime e a violência urbana como a principal preocupação. A campanha eleitoral foi dominada pelo tema da segurança pública e o temor da formação de facções estruturadas. O fracasso da gestão de esquerda de Gabriel Boric nessa área permitiu a explosão do número de homicídios — 6 para cada 100 mil habitantes —, o País vive uma surpreendente onda de sequestros (860 no ano passado) e apareceram sicários (matadores de aluguel).
A jornalista Ana María Sanhueza descreveu o avanço da criminalidade em sua newsletter semanal sobre o Chile no jornal espanhol El País. As primeiras linhas do texto dizem: “Começarei com uma notícia ruim, que ainda está se desenvolvendo: há assassinatos por encomenda no Chile”. Ela fala sobre “acertos de contas envolvendo narcotraficantes”
A guinada à direita também ocorreu na Bolívia, depois de vinte anos do “socialismo cocaleiro” iniciado com Evo Morales, e já havia sido registrada no Equador, no Paraguai e na Argentina. A reviravolta ocorrida em El Salvador fez do presidente Nayib Bukele um caso mundial ao exterminar as gangues no país — e aceitar deportados pelos Estados Unidos em seus presídios. Todos os eleitos nesses países têm algo em comum: alinhamento com Donald Trump.
O equatoriano Daniel Noboa é tratado até hoje nas manchetes da imprensa como “aliado de Trump”. E a escolha não foi à toa: assim como o Brasil, o Equador é porta de saída de drogas do continente por via portuária. Noboa só venceu — e apertado — porque sua política linha-dura classificou 22 organizações criminosas como “terroristas”.
O equatoriano, que anda com capacete e colete à prova de balas, conseguiu diminuir em 15% a taxa de homicídios com a presença de militares nos portos, mas o governo reconhece que não tem efetivo nem rede de inteligência para enfrentar o crime organizado sozinho. O país é a principal rota do narcotráfico por causa da fronteira de 600 quilômetros com a Colômbia. Os Estados Unidos ofereceram apoio militar, mas Noboa não tem amparo constitucional para autorizar. Nesta semana, ele levou uma comitiva de assessores para Washington em busca de ajuda.
O secretário de Estado americano, Marco Rubio, declarou em outubro que, desde a decretação do Cartel de los Soles venezuelano como grupo terrorista, ergueu-se uma rede de cooperação na América Latina. “Todos estão se juntando a nós para tentar ajudar a levar isso adiante. Vamos interromper o fluxo de drogas e já conseguimos apreensões recordes”, disse.
Infelizmente, não são “todos”, como gostaria o secretário americano. Países governados pela esquerda, como Colômbia, México e Brasil, não querem cooperar numa megaoperação contra o narcoterrorismo. O colombiano Gustavo Petro, aliás, ao justificar a não adesão, parecia ter sido orientado pelo ministro da Propaganda do Brasil, Sidônio Palmeira. Disse: “É uma desculpa fictícia usada pela extrema direita para derrubar governos que não a obedecem”.
A mexicana Claudia Sheinbaum afirmou que não aceita “intervenção de governo estrangeiro em respeito à soberania nacional”.
E Lula da Silva? Em setembro, ele foi literal durante a Cúpula da Organização das Nações Unidas (ONU), em solo americano: “É preocupante a equiparação entre a criminalidade e o terrorismo”. Na última terça-feira, quando compreendeu que a derrota no Congresso era iminente, reduziu seu preço a uma única carta na negociação com o presidente da Câmara, Hugo Motta: “equiparar a terrorismo, não”.
O principal temor do petista é o impacto que o sucesso da ajuda americana e da formação de uma rede de países aliados pode ter nas urnas no ano que vem. Se o mapa do medo, como mostrou a edição 295 de Oeste, for desmantelado pelas mãos da direita, a frouxidão do PT na segurança pública será ainda mais exposta.
Afinal, qual foi o
partido que mais tempo passou no poder no Brasil enquanto as
facções criminosas se multiplicavam?
Como disse Donald Trump, há uma “guerra” contra o narcotráfico na
América. E a sociedade já escolheu de que lado quer ficar.
Sílvio Navarro - Revista Oeste