segunda-feira, 17 de novembro de 2025

'A sociologia da seita randiana', por Murray N. Rothbard

 



Uma crítica ao objetivismo de Ayn Rand

Nota da edição:

Esse texto, escrito originalmente em 1972 por Murray Rothbard, é uma crítica libertária a diversos aspectos do movimento e da filosofia objetivista de Ayn Rand.


Na América dos anos 1970, estamos excessivamente familiarizados com as seitas religiosas, que têm proliferado na última década. Característica essencial desse tipo de seita, do Hare Krishna aos “Moonies”, passando pelo EST, pela Cientologia e pela Família Manson, é a dominação exercida pelo guru, ou Líder Máximo, que é também o criador e intérprete supremo de um determinado credo, ao qual o adepto deve ser inabalavelmente leal. O principal, senão o único, requisito para aderir e progredir dentro da seita é demonstrar lealdade absoluta e adoração ao guru, bem como obediência total e inquestionável aos seus comandos. As vidas dos membros passam a ser dominadas pela influência e pela presença constante do guru. Se a seita cresce além de alguns poucos seguidores, ela naturalmente se estrutura de forma hierárquica, ao menos porque o guru não pode dedicar todo o seu tempo a doutrinar e vigiar pessoalmente cada discípulo. Os cargos mais altos dessa hierarquia costumam ser ocupados pelo pequeno grupo original de discípulos, que assume tais posições em virtude de seu tempo prolongado de serviço leal e devoto. Por vezes, a liderança superior é composta por pessoas ligadas por laços familiares, o que é útil para fortalecer a lealdade interna por meio desses vínculos.

Os objetivos dos líderes da seita são dinheiro e poder. O poder é exercido sobre as mentes dos discípulos, levando-os a aceitar o guru e seu credo sem questionamentos. Essa devoção é imposta por meio de sanções psicológicas. Uma vez que o adepto internaliza a ideia de que a aprovação e a comunicação com o guru são essenciais à sua vida, a ameaça implícita ou explícita de excomunhão, isto é, de ser afastado da presença direta ou indireta do guru, cria uma poderosa sanção psicológica, garantindo a “aplicação” da lealdade e da obediência. O dinheiro flui de baixo para cima dentro da hierarquia: parte vem na forma de trabalho voluntário prestado pelos membros, e outra parte, por meio de pagamentos em dinheiro.

Fica claro, neste ponto da história, que uma seita ideológica pode assumir as mesmas características de uma seita abertamente religiosa, mesmo quando a ideologia é explicitamente ateísta e antirreligiosa. Já é de conhecimento comum que as seitas de Hitler, Mussolini, Stalin, Trotsky e Mao são religiosos em sua natureza, apesar do ateísmo explícito destes últimos. A adoração ao fundador e líder da seita, a estrutura hierárquica, a lealdade inabalável, as sanções psicológicas (e, quando no comando do poder de estado, as sanções físicas) são todas por demais evidentes.

O exotérico e o esotérico

Toda seita religiosa possui dois conjuntos de credos distintos: o exotérico e o esotérico. O credo exotérico é a doutrina oficial e pública, o credo que atrai o adepto em primeiro lugar e o introduz no movimento como membro da base. O credo bastante diferente é a agenda oculta e desconhecida, um credo que só é conhecido em sua plenitude pela alta liderança, os “sumos sacerdotes” da seita. São eles os guardiões dos Mistérios da seita.

Mas as seitas tornam-se particularmente fascinantes quando os credos esotérico e exotérico não apenas diferem, mas estão total e flagrantemente em contradição mútua. O caos que essa contradição fundamental causa nas mentes e vidas dos discípulos pode ser facilmente imaginado. Assim, as diversas seitas marxista-leninistas exaltam oficial e publicamente a Razão e a Ciência, denunciando toda religião, e, ainda assim, seus membros são atraídos de forma mística pela seita e por sua suposta infalibilidade.

Dessa forma, Alfred G. Meyer escreve sobre as visões leninistas acerca da infalibilidade do partido:

“Lenin parecia acreditar que o partido, como consciência organizada, a consciência como uma máquina de tomada de decisões, possuía um poder de raciocínio superior. De fato, com o tempo, esse corpo coletivo assumiu uma aura de infalibilidade, que mais tarde foi elevada a dogma, e a lealdade de um membro passou a ser testada, em parte, por sua aceitação disso. Tornou-se parte da confissão de fé comunista proclamar que o partido nunca erra(…) O próprio partido jamais comete erros”[i].

Se as contradições internas gritantes das seitas leninistas os tornam objetos fascinantes de estudo, ainda mais o é a seita de Ayn Rand, que, embora de certo modo ainda se mantenha tenuemente viva, floresceu intensamente por apenas dez anos na década de 1960; mais especificamente, desde a criação da série de palestras de Nathaniel Branden no início de 1958 até a cisão entre Rand e Branden dez anos depois. Pois a seita randiana não era apenas explicitamente ateísta, antirreligiosa e exaltadora da Razão; ela também promovia uma dependência servil em relação ao guru em nome da independência, adoração e obediência à líder em nome da individualidade de cada pessoa, e fé cega e emoção pelo guru em nome da Razão.

Praticamente todos os seus membros ingressaram na seita após a leitura do extenso romance de Rand, A Revolta de Atlas, publicado no final de 1957, poucos meses antes do surgimento formal do movimento organizado. Ingressar no movimento por meio de um romance significava que, apesar das repetidas reverências à Razão, era a emoção febril que impulsionava a conversão do adepto. Logo ele descobria que a ideologia randiana delineada em A Revolta de Atlas era complementada por alguns ensaios de não ficção e, em especial, por uma revista mensal regular, a The Objectivist Newsletter (que mais tarde passou a se chamar The Objectivist).

O index de livros permitidos

Como toda religião se fundamenta na fé na infalibilidade do guru, torna-se necessário manter os discípulos na ignorância em relação a escritos contraditórios ou “infiéis”, que possam afastar os membros do rebanho. A Igreja Católica mantinha um Índice de Livros Proibidos; mais abrangente ainda era o antigo grito muçulmano:“Queimem todos os livros, pois toda  a verdade está no Alcorão!” Mas as seitas, que tentam moldar cada membro segundo uma visão de mundo rigidamente integrada, precisam ir ainda mais longe. Assim como os comunistas são frequentemente instruídos a não ler literatura anticomunista, a seita de Rand foi além, difundindo o que era praticamente um Índice de Livros Permitidos. Como a maioria dos neófitos randianos era jovem e relativamente ignorante, um controle cuidadoso de suas leituras garantia que permanecessem permanentemente alheios a ideias ou argumentos não randianos ou antirandianos (exceto quando essas ideias eram tratadas de forma breve, brusca e distorcida, num tom autoritário e agressivo, dentro das próprias publicações randianas).

A justificativa filosófica para manter os adeptos de Rand em tal ignorância “abençoada” era a teoria randiana de “não conceder sua sanção ao Inimigo”. Ler o Inimigo (o que, com raras e cuidadosamente selecionadas exceções, significava qualquer autor não randiano ou antirrandiano) era considerado “dar-lhe sua sanção moral”, algo estritamente proibido por ser irracional. Em alguns casos específicos, exceções limitadas eram concedidas a membros de alto escalão, desde que conseguissem provar que precisavam ler determinadas obras do Inimigo para refutá-las. Esse banimento de livros atingiu seu ápice após a titânica cisão entre Rand e Branden, no final de 1968, uma ruptura que foi o equivalente moral em miniatura de uma separação entre Marx e Lênin, ou entre Jesus e São Paulo. Num episódio estranhamente reminiscentemente orwelliano, similar ao ódio organizado contra o arquiherege Emanuel Goldstein em 1984, os adeptos de Rand foram obrigados a assinar um juramento de lealdade à líder.Elemento essencial desse juramento era uma declaração formal de que o signatário jamais leria quaisquer futuras obras do apóstata e arquiherege Nathaniel Branden. Após a cisão, qualquer seguidor de Rand visto portando um livro ou texto escrito por Branden era imediatamente excomungado. Era esperado que parentes próximos de Branden, e de fato o fizeram, rompessem completamente com ele.

Curiosamente, para um movimento que proclamava devoção ao uso individual da razão, à curiosidade e à pergunta “Por quê?”, os adeptos eram obrigados a jurar crença inquestionável de que Rand estava certa e Branden errado, mesmo sem terem permissão para conhecer os fatos que motivaram a cisão. Na realidade, a simples recusa em tomar partido, a tentativa de descobrir os fatos, ou mesmo a declaração de que não se poderia opinar sobre assunto tão grave sem conhecer a verdade já eram motivos suficientes para expulsão imediata. Essa atitude era considerada prova conclusiva da “lealdade defeituosa” do discípulo para com sua guru, Ayn Rand.

O militante endurecido como aço

Frank Meyer, em sua obra The Moulding of Communists[ii], descreve as sucessivas crises pelas quais os comunistas passam ao longo de sua carreira dentro do Partido. De seu relato, fica evidente que o membro de base ingressa no partido atraído pelo credo oficial ou exotérico, mas, à medida que permanece e ascende na hierarquia, é confrontado com uma série de crises que testam sua fibra moral, crises que ou o expulsam do partido, ou o transformam progressivamente em um militante endurecido como aço. Essas crises podem ser ideológicas, como a justificação dos campos de trabalho escravo ou do pacto Stalin-Hitler; ou pessoais, destinadas a provar que a lealdade ao partido deve estar acima da lealdade a amigos, familiares ou entes queridos. A pressão contínua dessas crises, como seria de se esperar, resultava em uma altíssima rotatividade nas fileiras comunistas, criando um mar de ex-comunistas muito maior do que o próprio partido em qualquer momento da história.

Um processo semelhante, embora muito mais intenso, permaneceu em ação ao longo de todos os anos do movimento randiano. O neófito randiano normalmente ingressava no movimento emocionalmente capturado por Revolta de Atlas e impressionado pelos conceitos de razão, liberdade, individualidade e independência. A partir daí, uma série de crises e contradições internas crescentes tornava-se necessária para que os líderes do movimento conquistassem poder sobre as mentes e as vidas dos membros, incutindo-lhes lealdade absoluta a Ayn Rand, tanto em questões ideológicas quanto em aspectos da vida pessoal. Mas quais mecanismos os líderes da seita utilizavam para desenvolver tamanha lealdade cega?

Um dos métodos, como já vimos, era manter os membros na ignorância. Outro consistia em garantir que cada palavra falada ou escrita por um membro randiano estivesse correta não apenas em conteúdo, mas também em forma, pois qualquer nuance sutil ou diferença de formulação poderia, e de fato seria, atacada como um desvio da posição randiana. Assim como os movimentos marxistas desenvolveram jargões e slogans rígidos, aos quais se apegavam por medo de enunciar desvios incorretos, o mesmo ocorria no movimento randiano. Em nome da chamada “precisão da linguagem”, em suma, nuances e até sinônimos eram, na prática, proibidos.

Outro método consistia em manter os membros, tanto quanto possível, em um estado de emoção febril, por meio de releituras contínuas de A Revolta de Atlas. Pouco tempo depois da publicação de Atlas, um líder de alto escalão da seita me repreendeu por tê-lo lido apenas uma vez. “Já está na hora de você começar a reler”, advertiu ele. “Eu já li Atlas trinta e cinco vezes”.

A releitura de Atlas também era importante para a seita porque seus heróis e heroínas rígidos, artificiais e unidimensionais eram explicitamente apresentados como modelos de conduta para todo randiano. Assim como todo cristão deve buscar imitar Cristo em sua vida cotidiana, cada seguidor de Rand devia aspirar a imitar John Galt (o herói dos heróis da Revolta de Atlas). Em toda situação, o randiano devia perguntar a si mesmo: “O que John Galt faria?” Quando lembramos que Jesus, afinal, foi uma figura histórica real, enquanto Galt é uma criação fictícia, a bizarrice dessa exigência torna-se evidente. (Ainda que, pelo modo reverente como os randianos falavam de John Galt, muitas vezes tinha-se a impressão de que, para eles, a linha entre ficção e realidade era extremamente tênue).

Sua Bíblia

A natureza quase bíblica de A Revolta de Atlas para muitos randianos é ilustrada por um episódio ocorrido em um casamento de um casal adepto de Rand, realizado em Nova York. Durante a cerimônia, o casal prometeu devoção e lealdade conjuntas a Ayn Rand e, em seguida, complementou o ato abrindo Atlas, talvez em uma página aleatória, para ler em voz alta um trecho do texto sagrado.

Como se pode inferir a partir desse episódio, a sagacidade e o humor eram terminantemente proibidos no movimento randiano. A justificativa filosófica para essa proibição era a de que o humor demonstra que a pessoa “não leva a sério os próprios valores”. A razão real, contudo, era mais simples: nenhuma seita é capaz de resistir ao efeito penetrante e lúcido do humor, à perspectiva equilibrada e sã que ele proporciona. Era permitido zombar dos inimigos, mas essa era a única forma de “humor” tolerada, se é que isso pode ser chamado de humor.

O prazer pessoal, aliás, também era malvisto e condenado no movimento, rotulado como “culto ao capricho” hedonista. Em especial, nada poderia ser apreciado por si mesmo, toda atividade deveria servir a uma função “racional” indireta. Assim, a comida não deveria ser saboreada, mas apenas ingerida sem alegria como um meio necessário à sobrevivência;

o sexo não deveria ser desfrutado por prazer, mas sim praticado de maneira austera, como reflexo e reafirmação dos “valores mais elevados”; a pintura ou o cinema só podiam ser apreciados se o indivíduo conseguisse identificar neles “valores racionais”. Todos esses valores, contudo, não podiam ser descobertos silenciosamente por cada pessoa, o que seria considerado a heresia do “subjetivismo”, mas deviam ser demonstrados e justificados perante o restante da seita. Na prática, como se verá mais adiante, os únicos “valores” estéticos ou românticos seguros para o membro eram aqueles explicitamente sancionados por Ayn Rand ou por seus discípulos de mais alto escalão.

Como ocorre em todos os cultos e seitas, um método particularmente essencial para moldar os membros e mantê-los sob controle era mantê-los em constante e ininterrupta atividade dentro do movimento.

Frank Meyer observa que os comunistas preservam seus membros da prática perigosa de pensar por conta própria, mantendo-os em atividade constante, sempre acompanhados de outros comunistas. Ele nota que, entre os grandes desertores comunistas nos Estados Unidos, quase todos só abandonaram o partido após um período de isolamento forçado, ou seja, quando finalmente tiveram espaço para pensar por si mesmos (por exemplo, durante o serviço militar ou ao viverem na clandestinidade). No caso dos randianos, especialmente em Nova York, onde o movimento era mais numeroso e onde Ayn Rand e toda a alta hierarquia residiam, a atividade era contínua. Todas as noites, um dos principais randianos ministrava palestras a diferentes grupos de membros, expondo vários aspectos da “linha do partido”: sobre fundamentos filosóficos, psicologia, ficção, sexo, pensamento, arte, economia ou filosofia. (Essa estrutura refletia fielmente a visão de utopia delineada em Revolta de Atlas, onde todas as noites eram dedicadas aos heróis e heroínas reunidos em longas conversas e palestras que forneciam uns para os outros).

Faltar a essas palestras era considerado um motivo de grande preocupação dentro do movimento. A justificativa filosófica para a pressão em comparecer a esses encontros seguia o seguinte raciocínio:

  1. Os randianos são as pessoas mais racionais que se pode conhecer( conclusão derivada da tese de que o randianismo representava a racionalidade em teoria e em prática);
  2. Você, é claro, deseja ser racional (e, se não desejasse, estaria em sérios apuros dentro do movimento);
  3. Logo, você deve ansiar por passar todo o seu tempo com outros randianos e, a fortiori, com Ayn Rand e seus principais discípulos, se possível.

A lógica parecia irrefutável, mas e se, como tantas vezes acontece, a pessoa simplesmente não gostasse dos outros membros, ou não suportasse estar perto deles? De acordo com a teoria randiana, as emoções são sempre consequência de ideias, e as emoções incorretas derivam de ideias erradas. Portanto, qualquer antipatia pessoal por outro randiano, e especialmente por um dos líderes, só poderia resultar de um grave foco de irracionalidade, que deveria ser mantido em segredo ou, então, confessado aos líderes. Qualquer confissão desse tipo levava o membro a um angustiante processo de purificação ideológica e psicológica, que supostamente culminava no alcance da racionalidade, da independência e da autoestima e, por consequência, em uma devoção cega e inquestionável a Ayn Rand.

Um episódio de dúvida reprimida em relação aos princípios randianos revela muito sobre a psicologia até mesmo dos principais membros da seita. Certo jovem randiano de destaque, veterano do movimento em Nova York, admitiu em particular, um dia, que tinha sérias dúvidas a respeito de um ponto filosófico fundamental do randianismo, acredito que se tratava da própria certeza de sua existência. Ele estava mortalmente assustado de formular a questão, pois sabia que era tão básica e essencial que seria imediatamente excomungado apenas por levantá-la. Ainda assim, mantinha fé absoluta de que, se Ayn Rand fosse questionada diretamente, ela responderia de maneira satisfatória e dissiparia suas dúvidas. E assim ele esperou, ano após ano, contra toda esperança, que alguém fizesse a pergunta, fosse expulso do movimento, mas que, no processo, suas próprias dúvidas fossem finalmente resolvidas.

Como em muitos outras seitas, a lealdade ao guru devia sobrepor-se à lealdade à família e aos amigos, sendo essa, em geral, a primeira crise pessoal enfrentada pelo jovem randiano. Se familiares e amigos não randianos persistissem em suas heresias, mesmo após longos sermões e tentativas de “conversão” feitas pelo novo adepto, passavam a ser considerados irracionais e, portanto, parte do Inimigo, devendo ser abandonados. O mesmo se aplicava aos cônjuges: muitos casamentos foram desfeitos pela própria liderança da seita, que informava severamente ao marido ou à esposa que o(a) parceiro(a) não era suficientemente “digno(a) de Rand”. Com efeito, como as emoções eram vistas como simples resultado de premissas, e como as premissas dos líderes eram, por definição, supremamente racionais, a alta liderança se arrogava o direito de formar e desfazer casais segundo critérios de “razão”.Um deles chegou a afirmar: “Eu conheço todos os jovens homens e mulheres racionais de Nova York, e posso juntá-los”. Mas suponha-se que o Sr. A fosse combinado com a Srta. B e que um deles não gostasse do outro? Pois bem, mais uma vez a “razão” prevalecia: o desagrado era considerado irracional, exigindo uma investigação psicoterapêutica intensiva para expurgar as ideias equivocadas que o teriam causado.

O controle psicológico

O domínio psicológico que a seita exercia sobre seus membros pode ser ilustrado pelo caso de uma jovem, uma randiana certificada e de alto nível, que teve a infelicidade de se apaixonar por um homem não randiano e considerado indigno. A liderança informou à moça que, se insistisse em seu desejo de se casar com o homem, seria imediatamente excomungada. Ela, ainda assim, casou-se, e foi prontamente expulsa. Entretanto, cerca de um ano depois, ela disse a uma amiga que os randianos estavam certos, que de fato ela havia pecado e que fizeram bem em expulsá-la, por ser indigna de ser uma randiana racional.

Mas a sanção mais importante para garantir a lealdade e a obediência, o instrumento mais eficaz de controle psicológico sobre os membros, foi o desenvolvimento e a prática da Psicoterapia Objetivista. Em essência, essa teoria psicológica sustentava que, como toda emoção deriva de ideias incorretas, então todas as neuroses também derivariam delas; logo, a cura para qualquer neurose consistia em descobrir e eliminar essas ideias e valores errôneos. E, como as ideias randianas eram consideradas todas corretas, e qualquer desvio em relação a elas, necessariamente incorreto, a Psicoterapia Objetivista consistia em: (a) inculcar todos os pacientes com a teoria randiana, agora sob o disfarce de um contexto supostamente psicoterapêutico; e (b) buscar o “desvio” oculto em relação à teoria randiana responsável pela neurose, e eliminá-lo por meio da correção dessa falha.

É evidente que, considerando o poder emocional e psicológico da experiência psicoterapêutica, a seita de Rand possuía em suas mãos uma arma extremamente poderosa para reforçar e legitimar o processo de moldagem do Novo Homem Randiano. A filosofia e a psicologia, a doutrina explícita, a pressão social e a pressão terapêutica, todas se reforçavam mutuamente, gerando discípulos obedientes e leais a Ayn Rand.

Não é de se surpreender que a imensa pressão psicológica decorrente da participação na seita tenha levado a uma rotatividade altíssima dentro do movimento randiano, muito maior, proporcionalmente, do que entre os comunistas. Enquanto permanecia no movimento, porém, emergia o “Novo Homem Randiano”, uma figura sombria e destituída de alegria. Durante algum tempo, os randianos falavam longamente sobre “felicidade” e sobre o suposto fato de viverem em um estado constante de alegria; mas, a uma análise mais atenta, ficava claro que essa “felicidade” existia apenas por definição. Em suma, na teoria randiana, felicidade não se refere, de modo algum, ao significado comum de contentamento subjetivo ou alegria, mas sim ao ato de usar a própria mente ao máximo (isto é, em conformidade com os preceitos randianos).

Na prática, contudo, as emoções subjetivas dominantes do adepto randiano eram o medo, e até mesmo o terror. Havia o medo de desagradar Ayn Rand ou seus principais discípulos; o medo de usar uma palavra ou nuance incorreta que pudesse colocá-lo em apuros; o medo de ser descoberto na “irracionalidade” de algum desvio ideológico ou pessoal; e até mesmo o medo de sorrir para alguém indigno, isto é, uma pessoa não randiana. Esse medo era ainda maior do que o de um membro comunista, pois o randiano tinha muito menos liberdade para qualquer desvio ideológico ou pessoal. Além disso, como Rand possuía uma posição absoluta e total sobre toda e qualquer questão, seja de ideologia ou de vida cotidiana, todos os aspectos da vida precisavam ser constantemente examinados, por si mesmo e pelos outros, em busca de heresias ou desvios suspeitos. Tudo se tornava objeto de medo e suspeita. Havia também o medo de emitir um julgamento independente pois, suponha-se que o membro fizesse uma declaração sobre algum assunto sem saber qual era a posição de Rand e, depois, descobrisse que ela discordava. O randiano então estaria em sérios apuros, mesmo que o problema fosse apenas uma diferença sutil de linguagem ou de tom. Por isso, era muito mais prudente manter-se em silêncio e depois consultar a sede do movimento para obter a posição exatamente correta.

Consultando a sede

Certa vez, um advogado de destaque do movimento randiano fazia um discurso sobre a teoria política de Rand. Durante o período de perguntas, foi pego de surpresa ao ser questionado sobre como poderia conciliar o apoio de Rand ao poder compulsório de intimação com o axioma político randiano de não iniciação da força. Ele hesitou, gaguejou, e então disse que precisava pensar sobre o assunto, uma expressão-código que significava, na prática, que correria para consultar Rand e os demais líderes a fim de obter a resposta correta.

Parte da necessidade constante de “checar com a sede” decorria do fato de que Rand, embora considerada infalível por seus discípulos, mudava frequentemente de opinião, especialmente em relação a pessoas ou instituições concretas. A mudança fundamental de posição sobre Nathaniel Branden é um exemplo gritante disso, assim como as mudanças de linha em relação a outros antigos membros de alto escalão que haviam sido expulsos do movimento. Mas, com muito mais frequência, ainda que em questões menos importantes, ocorriam mudanças de posição sobre figuras do mundo do entretenimento que Rand pudesse ter conhecido pessoalmente. Assim, a “linha oficial” sobre pessoas como Johnny Carson ou Mike Wallace (personalidades famosas da televisão) variava rapidamente, em grande parte devido às “descobertas” de Rand sobre supostas heresias ou traições cometidas por esses indivíduos. Se algum membro randiano não estivesse atualizado sobre essas mudanças, e afirmasse inadvertidamente que Carson era “racional” ou possuía um “senso de vida” benevolente, quando ele já havia sido rotulado como irracional ou malévolo, o membro entrava em sérios apuros e se tornava alvo de uma investigação sobre a racionalidade de suas próprias premissas.

Movidos por sua concepção de dever racional, todo randiano vivia em uma comunidade de espiões e delatores, sempre prontos a descobrir e denunciar qualquer desvio em relação à doutrina randiana. Certa vez, um randiano, caminhando com uma namorada, contou a ela que havia participado de uma festa na qual vários randianos gravaram uma fita improvisada imitando as vozes dos principais líderes do movimento. A jovem, chocada com essa terrível informação, passou a noite em claro e, na manhã seguinte, correu para informar a alta liderança sobre a grave transgressão. Imediatamente, os principais envolvidos foram convocados por seu Psicoterapeuta Objetivista e duramente repreendidos durante as sessões de “terapia”. “Afinal,” disse o terapeuta, “você não zombaria de Deus”. Quando o dono da fita se recusou a atender à exigência do terapeuta para entregar o material, a fim de que fosse examinado em detalhe, seu destino dentro do movimento ficou selado.

Nenhum randiano, nem mesmo os líderes de mais alto escalão, estava isento do medo e da repressão onipresentes. Todos os membros do núcleo original, por exemplo, foram colocados em “período de provação” pelo menos uma vez, sendo obrigados a demonstrar repetidas vezes sua lealdade a Ayn Rand, de todas as formas possíveis. O quanto essa atmosfera de medo e censura prejudicava a produtividade intelectual dos membros randianos pode ser constatado pelo fato de que nenhum dos principais discípulos publicou livros enquanto ainda estava no movimento (todos os livros de Nathaniel Branden, por exemplo, foram lançados apenas após sua expulsão). A única exceção que confirma a regra foi o exercício autorizado de adulação acrítica, o livro Who Is Ayn Rand?, escrito por Barbara Branden.

Mas, embora o randiano vivesse em um estado constante de medo e reverência diante de Ayn Rand e de seus principais discípulos, havia compensações psicológicas. Ele podia viver com a excitação e o conforto de acreditar que fazia parte de um pequeno grupo de eleitos, e que somente os membros dessa pequena fraternidade estavam em sintonia com a razão e a realidade. O resto do mundo, mesmo aqueles que aparentavam ser inteligentes, felizes e bem-sucedidos, na verdade viviam em um limbo, separados da razão e incapazes de compreender a verdadeira natureza da realidade. Essas pessoas não poderiam ser realmente felizes, pois, segundo a doutrina da seita, a felicidade só poderia ser alcançada por quem fosse um randiano convicto. E não poderiam sequer ser consideradas inteligentes, já que como poderiam pessoas aparentemente inteligentes não serem randianas, especialmente quando cometiam o mais grave dos pecados: o de não se tornarem randianas mesmo após terem sido expostas ao novo evangelho.

Excomunhões e expurgos

Já mencionamos anteriormente as excomunhões e as “expurgos” no movimento randiano. Frequentemente, essas excomunhões , especialmente as de membros importantes, ocorriam de maneira ritualística. O membro faltoso era sumariamente convocado a comparecer a um “julgamento” para ouvir as acusações contra si. Se recusasse comparecer, como faria qualquer pessoa que ainda preservasse um mínimo de amor-próprio, o julgamento prosseguia in absentia, com todos os membros presentes se revezando para denunciar o expulso, lendo as acusações contra ele (numa cena estranhamente reminiscentemente orwelliana, como em 1984). Quando sua inevitável condenação era decretada, alguém, geralmente seu amigo mais próximo, redigia uma carta amarga, febril e solene, amaldiçoando o apóstata para sempre e excluindo-o eternamente dos campos elísios da razão e da realidade. Fazer com que o amigo mais próximo tivesse papel central no processo de heresia era, evidentemente, importante: isso o forçava a demonstrar publicamente sua lealdade a Ayn Rand, purificando-se de qualquer mancha por associação. Relata-se que, quando Nathaniel Branden foi expulso, um de seus antigos amigos mais próximos em Nova York lhe enviou uma carta afirmando que o único ato moral que lhe restava seria o suicídio, uma posição bastante estranha para uma filosofia supostamente pró-vida e defensora do propósito individual.

A ruptura com o apóstata, mesmo que se tratasse de um amigo íntimo, deveria ser intransigente, permanente e total. Assim, uma mulher de alto escalão na hierarquia randiana certa vez contratou uma jovem randiana para ser sua assistente editorial em uma revista. Quando essa mulher foi sumariamente expulsa do movimento, sua assistente se recusou terminantemente a falar com ela, exceto estritamente por questões de trabalho, uma postura mantida com rigidez, apesar das tensões óbvias que tal situação gerava no ambiente profissional.

Como ocorre em todos os grupos de caça às bruxas, o maior pecado não era tanto a transgressão específica cometida pelo membro, mas sim qualquer recusa em legitimar o seu próprio processo de caça à heresia. Assim, Barbara Branden relatou que seu maior pecado teria sido recusar-se a comparecer e, portanto, a reconhecer a legitimidade, de seu próprio julgamento; outros expurgados contaram histórias semelhantes.

Não deve causar surpresa saber que, ao contrário da maioria das outras formas de psicoterapia, os Psicoterapeutas Objetivistas atuavam como severos guardiões morais do movimento. Pacientes considerados “imorais” eram expulsos da terapia, prática que atingiu seu auge quando pacientes foram removidos simplesmente por perguntarem aos terapeutas as razões da cisão entre Ayn Rand e Nathaniel Branden.

Assim, mantidos na ignorância do mundo, dos fatos, das ideias ou das pessoas que pudessem divergir da linha randiana oficial, e contidos pela mistura de adoração e terror em relação a Rand e sua hierarquia ungida, emergiu o Homem Randiano, sombrio, robótico e destituído de alegria.

Pois o processo de moldagem da seita de fato conseguiu criar um Novo Homem Randiano, enquanto o homem ou a mulher permanecesse dentro do movimento. As pessoas eram invariavelmente transformadas por esse processo: de indivíduos diversos, muitas vezes simpáticos e agradáveis, tornavam-se figuras sombrias, tensas, hostis e afetadas, cujas personalidades podiam ser resumidas pela palavra “robótica”. De forma mecânica, os randianos entoavam seus slogans, geralmente imitando as poses e os modos de Nathaniel e Barbara Branden e, além disso, reproduzindo a visão comum da seita sobre os heróis e heroínas do cânone ficcional randiano. Se alguém ousasse criticar Ayn Rand ou seus discípulos, ou levantasse argumentos que não soubessem responder, os randianos assumiam um tom de indignação solene: “Como você ousa dizer algo assim sobre ela?”, e então viravam as costas e se afastavam com passos firmes e ofendidos. Nenhum sorriso, nem muitas outras qualidades humanas, conseguia transparecer através de sua fachada ritualizada. Muitos dos jovens homens pareciam cópias idênticas de Nathaniel Branden, enquanto as jovens mulheres procuravam imitar Barbara Branden, completas com o porta-cigarros erguido com elegância, um gesto herdado da própria Ayn Rand, destinado a simbolizar os altos padrões morais e o desdém irônico e altivo que caracterizavam as heroínas randianas.

Filho de Rand

Alguns randianos procuravam imitar sua líder até mesmo mudando seus nomes, trocando os sobrenomes russos ou judeus por nomes anglo-saxões, presumivelmente mais fortes, duros e heroicos. O próprio Nathaniel Branden alterou seu nome original, Blumenthal; e talvez não seja coincidência, como observou Nora Ephron, que as letras do novo nome, quando rearranjadas, formam “B-E-N-R-A-N-D”, que em hebraico significa “filho de Rand”. Uma jovem randiana, cujo sobrenome polonês começava com “G-r”, anunciou um dia que mudaria seu nome na semana seguinte. Quando um observador espirituoso, em tom irônico, perguntou se ela o trocaria para “Grand”, ela respondeu com total seriedade que não, que o novo nome seria “Grant”, presumivelmente, como o observador comentou depois, a letra “t” era seu único gesto de independência.

Se parecer, falar e até mesmo se chamar como os principais randianos era a maneira mais “racional” de agir, e se estar na presença deles o máximo possível era a atividade mais racional, então residir o mais perto possível dos líderes era, logicamente, o lugar mais racional para viver. Assim, o randiano típico de Nova York, após sua conversão, deixava a casa dos pais e procurava um apartamento o mais próximo possível do de Ayn Rand. Como resultado, praticamente todo o movimento randiano nova-iorquino vivia concentrado em poucos quarteirões uns dos outros, na região East 30’s de Manhattan, sendo que muitos líderes moravam no mesmo edifício de Rand.

Se a pressão psicológica constante e intensa era, em parte, responsável pela altíssima rotatividade entre os discípulos randianos, havia ainda outro motivo importante: o fato de o movimento possuir uma linha rígida sobre literalmente todos os assuntos, da estética à história, da epistemologia à política. Em primeiro lugar, isso significava que desviar-se da linha correta era extremamente fácil: por exemplo, preferir Bach a Rachmaninoff já bastava para ser acusado de acreditar em um “universo malévolo”. Se tal desvio não fosse corrigido por meio de autocrítica ou de uma “lavagem cerebral psicoterapêutica”, o membro poderia muito bem ser expulso do movimento. Em segundo lugar, é difícil impor uma doutrina rígida sobre todas as áreas da vida e do pensamento quando — como era o caso de Rand e seus principais discípulos, eles próprios eram amplamente ignorantes nessas diversas disciplinas. A própria Rand admitia que a leitura não era seu ponto forte, e seus discípulos, evidentemente, não tinham permissão para ler o “mundo real das heresias”, mesmo que tivessem o desejo de fazê-lo. Assim, o jovem convertido, e eram quase todos jovens, começava a vacilar à medida que se aprofundava em sua própria área de estudo. O historiador, por exemplo, ao ampliar seu conhecimento, já não conseguia se satisfazer com os ultrapassados clichês burckhardtianos sobre o Renascimento, nem com as simplificações banais sobre os Pais Fundadores dos Estados Unidos. E, se o discípulo começava a perceber que Rand estava errada e era excessivamente simplista em seu próprio campo de especialidade, tornava-se natural que começasse a duvidar de sua infalibilidade também em outros campos.

Tabaco racional

A abrangência total da “linha randiana” pode ser ilustrada por um episódio ocorrido com um amigo meu, que certa vez perguntou a um dos principais randianos se ele discordava da posição do movimento em algum assunto concebível. Após vários minutos de profunda reflexão, o randiano respondeu: “Bem, eu não consigo entender muito bem a posição deles sobre o fumo”. Surpreso por descobrir que a seita de Rand tinha uma posição sobre o ato de fumar, meu amigo insistiu: “Eles têm uma posição sobre fumar? Qual é?” O randiano respondeu que, segundo a seita, fumar era uma obrigação moral. Em minha própria experiência, um randiano de alto escalão uma vez me perguntou de forma bastante ríspida: “Como é que você não fuma?” Quando respondi que havia descoberto, desde cedo, que era alérgico à fumaça, o randiano se acalmou e disse: “Ah, então tudo bem”. A justificativa oficial para considerar o fumo uma obrigação moral vinha de uma passagem em Revolta de Atlas, na qual a heroína se refere a um cigarro aceso como símbolo do fogo da mente, o fogo das ideias criativas. (Alguém poderia pensar que simplesmente acender um fósforo já cumpriria essa função simbólica com igual eficiência). Suspeita-se, porém, que a razão real, como em tantas outras partes da teoria randiana, de Rachmaninoff a Victor Hugo, passando até por sapateado, era que Ayn Rand simplesmente gostava de fumar e sentia a necessidade de construir um sistema filosófico que transformasse seus gostos pessoais não apenas em algo moralmente justificável, mas em um dever moral universal, obrigatório para todos que desejassem ser racionais.

Se a linha randiana era totalitária, abrangendo todos os aspectos da vida, então, mesmo quando todas as premissas gerais eram aceitas e os membros já haviam consultado a sede para saber quem estava “dentro” ou “fora”, ainda havia necessidade de um mecanismo “judicial” para resolver questões concretas e garantir que cada membro mantivesse a posição oficial sobre qualquer tema. Ninguém podia ser neutro em relação a nada. O mecanismo judicial para resolver essas disputas concretas era, como de costume em seitas, o posto hierárquico que o indivíduo ocupava dentro do movimento. Por definição, o randiano de posição mais alta estava certo, o de posição inferior estava errado, e todos aceitavam esse Argumento de Autoridade, algo que, ironicamente, não parecia muito compatível com a suposta devoção randiana à Razão.

Um episódio bastante curioso ilustra bem esse sistema de decisão pela hierarquia. Certa vez, surgiu uma disputa concreta entre dois randianos certificados e de alto escalão, ambos considerados “racionais” por seus Psicoterapeutas Objetivistas. Mais especificamente, uma era secretária do outro. A secretária foi até seu chefe e exigiu um aumento, algo que ela intuía racionalmente ser seu justo merecimento. O chefe, contudo, após “verificar sua própria razão”, decidiu que ela era incompetente e, portanto, a demitiu. Agora havia um conflito de interesses entre dois randianos certificados. Como deveriam os demais membros decidir quem estava certo (e, portanto, racional) e quem estava errado (irracional, e portanto passível de expulsão)? Em qualquer grupo verdadeiramente racional, evidentemente, somente os dois diretamente envolvidos, por serem os únicos familiarizados com os fatos do caso, teriam motivo para tomar uma posição. Mas tal neutralidade benigna não era permitida em uma seita, inclusive na seita randiana. Diante da necessidade de impor uma linha uniforme a todos, a disputa foi resolvida da única forma possível dentro do movimento: pela hierarquia. O chefe ocupava um posto superior entre os discípulos, enquanto a secretária estava em um nível mais baixo; logo, ela não apenas perdeu o emprego, mas também foi expulsa do movimento randiano.

A pirâmide

O movimento randiano era estritamente hierárquico. No topo da pirâmide, naturalmente, estava Ayn Rand, a Decisora Suprema de todas as questões. Logo abaixo vinha Nathaniel Branden, seu “herdeiro intelectual” designado e o verdadeiro “São Paulo” do movimento, ocupando a posição número dois. Em terceiro lugar na hierarquia estava o círculo superior, composto pelos discípulos originais, aqueles que haviam sido convertidos antes da publicação de A Revolta de Atlas. Como haviam sido convertidos pela leitura de seu romance anterior, A Nascente, publicado em 1943, esse grupo era conhecido dentro do movimento como “a turma de 43”. Havia, porém, uma designação não oficial, muito mais reveladora: o grupo era chamado de “coletivo sênior”. Superficialmente, essa expressão pretendia “reforçar” a alta individualidade de cada membro randiano; na realidade, contudo, havia uma ironia dentro da ironia, pois o movimento randiano era, de fato, um “coletivo” no sentido mais literal do termo. O vínculo entre os membros do coletivo sênior era ainda mais forte pelo fato de que todos eram parentes entre si, compondo uma única família judaico-canadense, parentes de Nathan ou de Barbara Branden. Entre eles estavam, por exemplo: Elaine Kalberman, irmã de Nathan; Harry Kalberman, seu cunhado; Dr. Allan Blumenthal, primo de Nathan e, após a expulsão de Branden, principal Psicoterapeuta Objetivista; Leonard Peikoff, primo de Barbara Branden; e Joan Mitchell, esposa de Allan Blumenthal. A relação familiar de Alan Greenspan era mais distante, sendo ele ex-marido de Joan Mitchell. A única não parente na “turma de 43” era Mary Ann Rukovina, que alcançou o círculo superior após ter sido colega de quarto de Joan Mitchell na universidade.

Esses eram os discípulos anteriores à publicação de A Revolta de Atlas. Depois disso, Nathaniel Branden iniciou sua série de palestras introdutórias, que logo evoluíram para o Nathaniel Branden Institute (NBI), o braço organizacional do movimento randiano. Com o tempo, o NBI foi instalado no simbolicamente heroico, para a filosofia randiana, Empire State Building, embora, de modo nada heroico, ficasse no porão. Em Nova York, as diversas palestras e séries de conferências eram realizadas presencialmente; fora da cidade, cada região ou município possuía um representante designado do NBI, encarregado de organizar exibições das palestras gravadas em fita. O representante do NBI era, em geral, o randiano mais robótico e devoto de sua área, e, por isso, procurava-se reproduzir, embora nem sempre com total sucesso, o clima de reverência e obediência que dominava a seção-mãe em Nova York. Havia esforços deliberados para converter os leitores em massa dos best-sellers de Rand em discípulos fiéis: primeiro, assinantes da revista The Objectivist; depois, participantes regulares das exibições das palestras gravadas do NBI em suas regiões, sendo assim gradualmente incorporados ao movimento. Enquanto um fluxo constante de revistas, fitas e livros recomendados partia do NBI em direção aos membros de base, um fluxo inverso de dinheiro e trabalho voluntário seguia rumo à sede, incluindo pagamentos pelos serviços de psicoterapia objetivista.

Está evidente, ao longo de todo este texto, que a estrutura e o credo implícito, o funcionamento real, do movimento randiano se encontravam em oposição radical e diametral ao credo exotérico oficial de individualidade, independência e da ideia de que cada pessoa deveria reconhecer apenas a autoridade de sua própria mente e razão. Contudo, ainda não examinamos diretamente o axioma central do credo esotérico do movimento randiano, a premissa implícita, o programa oculto que garantia e impunha a lealdade inquestionável dos discípulos.

Esse axioma central era a afirmação de que “Ayn Rand é a maior pessoa que já existiu ou que jamais existirá”. Se Ayn Rand era, portanto, a maior pessoa de todos os tempos, seguia-se logicamente que ela estaria certa em toda e qualquer questão ou, no mínimo, que seria muito mais provável que estivesse certa do que qualquer discípulo comum, que jamais se atribuiria tamanho grau de perfeição e abrangência intelectual.

Um episódio típico dessa mentalidade ocorreu em uma reunião de jovens randianos de destaque, da qual um amigo meu participou. O encontro transformou-se em uma sequência de depoimentos, em que cada pessoa, por sua vez, testemunhava a influência avassaladora que Ayn Rand exercera em sua vida. Um deles declarou: “Ayn Rand trouxe ao mundo o conhecimento de que A é A e que 2 mais 2 são 4”. Certa vez, ao ouvir que um membro notoriamente refratário, que estava em processo de deixar o movimento, havia escrito uma paródia no estilo filosófico randiano, uma espécie de “prova” de que Ayn Rand era Deus, um randiano de alto escalão, em genuína perplexidade, perguntou: “Ele está brincando, não é?”

Havia entre os randianos uma preocupação obsessiva com a grandeza e a hierarquia. Era unanimemente aceito que Ayn Rand era a maior pessoa de todos os tempos. A partir daí, surgia uma disputa amistosa sobre a posição exata de Nathaniel Branden no ranking dos maiores de todos os tempos. Alguns sustentavam que Branden era o segundo maior da história; outros, que ele empatava em segundo lugar com Aristóteles. Esse era o limite do desacordo permitido dentro do movimento randiano.

A adoção do axioma central da grandeza de Rand era possibilitada por seu indiscutível carisma pessoal, um carisma reforçado por sua aura de arrogância e autoconfiança inabaláveis. Esse carisma e arrogância eram parcialmente emulados por seus principais discípulos. Como o adepto comum sabia, no fundo, que não era muito sábio nem totalmente autoconfiante, tornava-se muito fácil subordinar sua própria vontade e intelecto à de Rand. Assim, Rand passou a encarnar a própria Razão e a própria Realidade. Por alguma força de personalidade singular, ela conseguia incutir em seus discípulos a convicção de que seu valor mais elevado era obter sua aprovação, enquanto o maior pecado era incorrer em sua desaprovação. A crença fervorosa na originalidade suprema de Rand era, evidentemente, reforçada pelo fato de seus discípulos não terem lido, ou não poderem ler, outros autores que, muito antes dela, já haviam dito as mesmas coisas.

Expulsão do paraíso

A seita de Rand cresceu e floresceu até a cisão irreversível entre a Maior e o Segundo Maior, até que Satã fosse expulso do Paraíso, no outono de 1968. A ruptura entre Ayn Rand e Nathaniel Branden destruiu o Nathaniel Branden Institute (NBI) e, com ele, todo o movimento randiano organizado. Desde então, Rand não demonstrou nem a capacidade nem o desejo de reunir os fragmentos e reconstituir uma organização equivalente. A revista The Objectivist foi substituída por The Ayn Rand Letter, que, por sua vez, também acabou extinta.

Com a morte do NBI, os adeptos randianos foram, pela primeira vez em uma década, lançados à própria sorte, livres para pensar por conta própria. De modo geral, suas personalidades retomaram o estado não robótico de antes da conversão randiana. No entanto, alguns legados infelizes da seita permaneceram. Em primeiro lugar, há o problema do que os tomistas chamam de “ignorância invencível”. Muitos ex membros da seita continuam imbuídos da crença randiana de que cada indivíduo é capaz de deduzir todas as verdades a priori, a partir de sua própria mente, razão pela qual não veem necessidade de aprender fatos concretos sobre o mundo real, seja sobre a história contemporânea, seja sobre as leis das ciências sociais. Munidos de princípios axiológicos supostamente autoevidentes, muitos ex-randianos julgam não precisar aprender mais nada. Além disso, a soberba randiana remanescente leva muitos ex-membros a acreditar que cada um é capaz, e está qualificado, a desenvolver, por si só, uma filosofia completa da vida e do universo, inteiramente deduzida a priori. Tais aberrações deram origem a grupos como os “Estudantes do Objetivismo pela Bestialidade Racional”, que não estão muito distantes das bizarrices de muitas filosofias neo-randianas, cada uma pregando para um punhado de partidários fervorosos. Por outro lado, há uma reação igualmente compreensível, porém lamentável: após anos de submissão às imposições randianas em nome da “razão”, alguns ex membros da seita tendem a pender para o extremo oposto, rejeitando completamente a razão e o pensamento, em favor da sensação hedonista e do capricho impulsivo.

Concluímos nossa análise da seita de Rand observando que se trata de um exemplo extremo da contradição entre o credo exotérico e o credo esotérico. Em nome da individualidade, da razão e da liberdade, a seita de Rand, na prática, pregava algo totalmente oposto. O movimento não se preocupava com a individualidade de cada pessoa, mas apenas com a individualidade de Rand; não com a razão de todos, mas somente com a razão de Rand. A única individualidade que florescia, ao ponto de ofuscar todas as demais, era a da própria Ayn Rand; todos os outros deveriam tornar-se meros instrumentos, submetidos à mente e à vontade de Rand.

A célebre denúncia de Nikolai Bukharin sobre a seita stalinista, disfarçada na Rússia dos anos 1930 como uma crítica à Ordem dos Jesuítas, não parece exagerada quando comparada à realidade randiana:

“Foi dito, com acerto, que não há maldade no mundo que não encontre para si uma justificação ideológica. O rei dos jesuítas, Inácio de Loyola, desenvolveu uma teoria da subordinação, a chamada ‘disciplina de cadáver’, segundo a qual cada membro da ordem devia obedecer ao seu superior ‘como um cadáver que pode ser virado em qualquer direção, como um bastão que segue todo movimento, como uma bola de cera que pode ser moldada e estendida em todas as direções’… Esse ‘cadáver’ é caracterizado por três graus de perfeição: subordinação pela ação, subordinação da vontade e subordinação do intelecto. Quando se alcança o último grau, quando o homem substitui o pensamento pela obediência cega, renunciando a todas as suas convicções, então se tem um homem cem por cento jesuíta”[iii].

Observou-se que existia uma contradição curiosa na perspectiva estratégica do movimento randiano. Por um lado, os discípulos não podiam ler nem conversar com outras pessoas que, em muitos casos, estavam bem próximas deles em termos de afinidade ideológica, como libertários ou objetivistas independentes. Dentro do movimento racionalista ou libertário mais amplo, os randianos adotavam uma postura 100% pura, ultrassectária e exclusivista. Por outro lado, no cenário político mais amplo, a estratégia randiana mudava radicalmente: Rand e seus discípulos estavam dispostos a apoiar e trabalhar com políticos apenas um milímetro mais conservadores do que seus oponentes.

Nesse contexto mais vasto, qualquer preocupação com pureza ideológica ou princípios parecia totalmente abandonada. Daí vieram os entusiasmados apoios de Rand a Barry Goldwater, Richard Nixon e Gerald Ford, e até mesmo a senadores democratas como Henry Jackson e Daniel P. Moynihan.

Nem liberdade nem razão

Há apenas uma maneira de resolver a contradição na visão estratégica randiana, que combinava sectarismo extremo dentro do movimento libertário com oportunismo extremo e disposição para alianças com líderes estatais ligeiramente mais conservadores no mundo externo. Essa resolução, confirmada pelo restante da análise da seita, revela que o espírito orientador do movimento randiano não era a liberdade individual, como parecia aos jovens membros, mas sim o poder pessoal de Ayn Rand e de seus principais discípulos. Pois o poder dentro do movimento só podia ser garantido por meio do isolamento totalitário e do controle das mentes e das vidas de cada membro; mas essas táticas dificilmente funcionariam fora do movimento, onde o poder só poderia ser buscado através da aproximação com o presidente e com os círculos internos de domínio do estado.

Assim, o poder, e não a liberdade ou a razão, era o impulso central do movimento randiano. A grande lição que a história desse movimento deixa aos libertários é a de que “isso pode acontecer aqui”, que os libertários, apesar de sua declaração explícita de devoção à razão e à individualidade, não estão imunes ao misticismo e a seitas totalitárias que permeiam outros movimentos ideológicos e religiosos. Espera-se que, tendo sido infectados uma vez por esse vírus, os libertários possam agora se tornar imunes.

Nota bibliográfica

Entre os vários trabalhos sobre o randianismo, apenas um se concentrou na seita propriamente dita: Leslie Hanscom, “Born Eccentric”, publicado na revista Newsweek (27 de março de 1961), pp. 104–105. Hanscom capturou com brilhantismo e ironia o espírito da seita de Rand, ao assistir e trabalhar como reporter em uma das palestras de Nathaniel Branden. Hanscom escreveu:

“Após três horas de atenção heroicamente absorta à monótona exposição de Branden, os fãs foram recompensados com a aparição pessoal da Srta. Rand em pessoa, uma senhora de olhos pretos e perfurantes, sotaque russo, e que frequentemente usa um broche em forma de cifrão como ícone pessoal(…)

“‘Seus livros’, disse um dos membros da congregação, ‘são tão bons que a maioria das pessoas não deveria ter permissão para lê-los. Antes eu queria trancar nove décimos do mundo em uma jaula e, depois de ler seus livros, quero trancar todos eles’. Mais tarde, esse mesmo rapaz, um consultor de investimentos autônomo de 22 anos, recebeu um golpe direto da lógica implacável de sua ídola. Ao submeter uma pergunta durante o evento, um privilégio reservado apenas aos alunos pagantes, o jovem aspirante a Baruch acabou revelando ser apenas um visitante. A Srta. Rand, cuja expressão poderia murchar um cacto, repreendeu-o do púlpito, chamando-o de ‘fraude barata’. Outros buscadores de sabedoria tiveram melhor sorte. Um discípulo preocupado foi informado de que era permitido celebrar o Natal e a Páscoa, desde que rejeitasse o significado religioso (o tema da palestra daquela noite era a tolice da fé). Já uma dona de casa foi tranquilizada ao ouvir que não precisava sentir culpa por ser dona de casa, contanto que tivesse escolhido o ofício por razões não emocionais (…)

“Embora o misticismo seja uma das palavras mais detestadas em seu arsenal político, não houve, desde Aimee Semple McPherson, uma ‘messias feminina’ capaz de hipnotizar uma plateia ao vivo como Ayn Rand”[iv].

Pelo menos tão revelador quanto o artigo de Hanscom foram os previsíveis gritos de indignação exagerada por parte dos membros da seita randiana. Duas semanas depois, sob o título “Thugs and Hoodlums?” (“Marginais e Vândalos?”), a Newsweek publicou trechos de cartas enviadas por randianos em reação ao artigo. Uma das cartas afirmava: “Sua tirada perversa, vil e obscena contra Ayn Rand representa um novo patamar de baixeza, mesmo para vocês. Ter permitido tamanha torrente de invectivas abusivas (…) é um ato de depravação moral sem precedentes. Uma revista composta por vândalos irresponsáveis não tem lugar em minha casa”. Outro homem escreveu que: “Aquele que leu as obras da Srta. Rand e ainda assim escreve um artigo desse calibre só pode ser movido pela vilania. É a obra de um bandido literário”. Um terceiro advertiu: “Já que vocês decidiram se comportar como baratas, preparem-se para ser tratados como tal”. E, por fim, uma mulher chamada Bonnie Benov revelou o axioma central da seita: “Ayn Rand é (…) o maior indivíduo que já viveu”. Brincando com o fanatismo dos seguidores, a Newsweek publicou uma fotografia particularmente pouco favorecedora de Rand logo abaixo da carta de Benov, com a legenda irônica: “A maior de todos os tempos?”[v]

Este artigo foi originalmente publicado no Lew Rockwell.com.


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