O século 21, com sua velocidade, suas guerras híbridas, seus agentes invisíveis e seus autoritarismos fantasiados de justiça social, exige mais do que nunca a lucidez de quem compreende que liberdade não é um estado natural — é uma conquista permanente
H á datas que não precisam de calendário. Elas sobrevivem porque carregam em si algo que o tempo não consegue corroer. O dia 22 de novembro de 1963 é uma dessas datas. A tarde em que John Fitzgerald Kennedy caiu em Dallas não matou apenas um presidente, mas interrompeu uma promessa. A “Nova Fronteira”, que simbolizava a coragem da juventude americana, a crença no futuro e a disposição de enfrentar o desconhecido com clareza moral, foi brutalmente rasgada diante de uma nação atônita. O tiro que ecoou em Dealey Plaza não se limitou ao Texas.
Ele atravessou o século. Essa tragédia, porém, não existe isolada. Não faz sentido compreendêla sem olhar para o ano que a precedeu, para o momento em que o mesmo Kennedy segurou o mundo com as próprias mãos. Em outubro de 1962, o planeta passou treze dias respirando como quem teme abrir a porta da própria casa. A Crise dos Mísseis em Cuba revelou o quão perto o mundo esteve do abismo nuclear. Basta lembrar das fotos que os aviões U-2 trouxeram e que tiraram o sono do mundo: mísseis soviéticos instalados a menos de 150 quilômetros da Flórida. O relógio da humanidade começou a correr mais rápido.
Kennedy enfrentou aquela crise como estadistas enfrentam dilemas reais: com firmeza, mas sem imprudência; com coragem, mas sem histeria; com força, mas sem arrogância. Seu conselho de segurança queria bombardear Cuba. Generais clamavam por invasão. Mas Kennedy entendeu que decisões tomadas com fígado demais e razão de menos costumam custar civilizações. A diplomacia ali não foi sinônimo de recuo, mas sinônimo de responsabilidade.
No fim, os mísseis saíram de Cuba, o mundo respirou, a história agradeceu. E é justamente por isso que o assassinato de Kennedy, um ano depois, ainda pesa tanto. Não porque interrompeu a vida de um presidente da maior potência do mundo, mas porque interrompeu a trajetória de alguém que demonstrara, por fatos, possuir a fibra moral capaz de impedir a destruição do planeta. A bala que o atingiu destruiu, simbolicamente, uma era em que estadistas compreendiam que a paz verdadeira exige vigilância constante.
Seis décadas depois, a América Latina volta ao centro de um jogo perigoso. A Venezuela de Nicolás Maduro tornou-se aquilo que a Cuba de Fidel Castro foi nos anos 1960 — e, em muitos aspectos, pior. Em vez de servir como posto estratégico de uma superpotência ideológica, transformou-se na principal plataforma do narcoterrorismo transnacional, conectando dissidências das Farc, ELN, redes iranianas, operadores russos, milícias locais e braços de financiamento do Hezbollah. Não se trata mais de ogivas soviéticas apontadas para a Flórida, mas de algo mais difuso e perverso: rotas clandestinas, tráfico de cocaína, lavagem de dinheiro, infiltração paramilitar e uma elite criminosa que governa um Estado falido como se fosse uma empresa privada de caos.
O paralelo é inevitável. Em 1962, a ameaça era nuclear. Em 2025, ela é assimétrica. Em 1962, o inimigo era identificado. Hoje, ele é múltiplo, nebuloso, em rede. Mas a lógica permanece. A América Latina volta a ser utilizada como zona de pressão estratégica por regimes que se escondem atrás de discursos revolucionários. Para entender Maduro basta lembrar Fidel. Para entender a movimentação americana no Caribe, basta lembrar de Kennedy. A presença do USS Gerald Ford, o maior porta-aviões do mundo, não é um gesto teatral. É a mensagem objetiva de que, mesmo em um mundo onde as ameaças são menos visíveis, a dissuasão continua sendo o idioma mais universal da geopolítica. \
Como a história insiste em nos lembrar, a civilização só dura enquanto houver quem esteja disposto a defendê-la. Há quem considere exagero conectar Dallas e Caracas. Mas a história raramente oferece coincidências perfeitas: ela oferece padrões. E o padrão é simples: quando o mundo livre duvida de si mesmo, outros atores entram em cena.
Foi assim no início da Guerra Fria.
Foi assim quando Fidel se lançou nos braços de Moscou. Está sendo assim com Maduro, isolado internamente, mas sustentado por alianças externas que garantem impunidade. E, como sempre, o Caribe volta a ser uma fronteira simbólica entre a estabilidade hemisférica e a expansão de regimes predatórios. O assassinato de Kennedy, assim como a Crise dos Mísseis, permanece como uma espécie de bússola moral. Ele recorda que a defesa da liberdade não é automática, não é intuitiva e não nasce de discursos bem intencionados.
Nasce de escolhas difíceis e de decisões que cobram um preço; de uma disposição quase espiritual de manter os olhos abertos quando muitos preferem fechá-los. A pergunta que sobrevive a 22 de novembro de 1963 não é “Quem puxou o gatilho?”, mas “Quem não deixará o gatilho ser puxado na próxima crise?”
Hoje, quando o Caribe volta a ferver, quando regimes autoritários usam o vocabulário revolucionário para esconder alianças criminosas, quando o narcoterrorismo se mistura com geopolítica e quando potências rivais testam os limites da ordem ocidental, a figura de Kennedy reaparece como sombra e inspiração. Ele simboliza aquilo que está faltando — e também aquilo que ainda pode ser recuperado. A morte de JFK marcou o início do fim de uma inocência geopolítica.
E talvez seja esse o verdadeiro motivo pelo qual sua ausência ainda é comentada e sentida por um mundo que carece de homens daquela estirpe. Não porque ele era perfeito, mas porque era consciente. Não porque era invencível, mas porque entendia que a liberdade exige vigilância — e a vigilância exige coragem. Os Estados Unidos sobreviveram àquele novembro porque tinham instituições sólidas, liderança madura e uma sociedade consciente do papel que representavam no mundo.
Hoje, ao observarmos Caracas, Havana, Moscou, Teerã e suas ramificações clandestinas no continente, é impossível não sentir que as lições de 1962 e 1963 voltam a bater à porta. Nenhum perigo é menor apenas porque não está apontado por um míssil. Nenhum regime criminoso se contém apenas pela distância. Nenhuma ameaça se esvai por cansaço. O Ocidente, sempre que hesitou em defender aquilo que o tornou grande — seus valores, seus limites, suas fronteiras morais —, pagou caro.
Kennedy não volta. Mas a compreensão histórica de Kennedy continua disponível. Sua morte não encerrou apenas uma vida; encerrou um aviso. E esse aviso retorna agora, quando a América Latina volta a ser o centro de um tabuleiro em movimento, quando as democracias ocidentais experimentam fadiga moral e quando a civilização se encontra novamente diante de escolhas que determinarão seu curso.
A bala de Dallas foi disparada há 62 anos, mas seus ecos continuam audíveis. E talvez a pergunta mais urgente não seja por que Kennedy 21/11/2025, 11:55 Entre Dallas e Caracas - Revista Oeste https://revistaoeste.com/revista/edicao-297/entre-dallas-e-caracas/ 8/13 morreu, mas por que continuamos tão dispostos a esquecer por que sua liderança importou, e por que seu exemplo continua fazendo falta. Como a história insiste em nos lembrar, a civilização só dura enquanto houver quem esteja disposto a defendê-la. E o século 21, com sua velocidade, suas guerras híbridas, seus agentes invisíveis e seus autoritarismos fantasiados de justiça social, exige mais do que nunca a lucidez de quem compreende que liberdade não é um estado natural — é uma conquista permanente.
E se aquela violência parecia confinada ao passado, Butler, em 13 de julho de 2024, lembrou ao mundo que o perigo nunca desaparece, apenas muda de forma. Um tiro dirigido a Donald Trump, a poucos metros de distância, deixou claro que a vulnerabilidade presidencial permanece como parte da paisagem política americana. A ferida aberta em Dallas ainda não cicatrizou; ela apenas encontrou novos contornos.
Depois de duas guerras mundiais, da vitória contra regimes opressores e do colapso da União Soviética, a democracia moderna ainda demonstra ser mais frágil do que parece. A história não se repete — mas, às vezes, ela rima.
Ana Paula Henkel - Revista Oeste