quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

J.R. Guzzo - A esquerda considera ‘fascista’ quem critica Lula e STF

 Toda essa gente, segundo rezam as doutrinas do 'campo progressista', é um risco mortal para a civilização humana


É esse oceano de gente que infesta o mundo com sua recusa em aceitar a única fé permitida pelo presente 'processo civilizatório' — a fé em Lula, no 'globalismo', na 'mudança do clima' e no resto do evangelho que está aí | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Texto publicado originalmente no O Estado de S. Paulo 


Palavras têm a tendência de irem perdendo valor conforme a quantidade de vezes com que são usadas. Como o dinheiro, que vale cada vez menos quanto mais moeda houver circulando na praça, as palavras se desvalorizam — ficam baratas, e precisam ser usadas cada vez mais, ou com voz cada vez mais alta, para transmitir a mesma carga de significado. 

À certa altura, de tão repetidas, começam a perder o seu sentido original, e aí desaparece sua utilidade como meio de informar o que é, objetivamente, essa ou aquela coisa. É o que está acontecendo com a palavra “fascismo”, ou com a sua derivada “fascista”. Deixou de descrever um movimento político criado na Itália e extinto há 80 anos e passou a ser um insulto. 

Não é nem mais uma palavra normalmente privativa das classes culturais, e utilizada em casos agudos de divergência com o pensamento de direita, mas ofensa em estado bruto — como “safado”, ou “canalha”, e daí para baixo. 

Quando não está sendo isso, “fascista” é simplesmente quem acha que Lula, o STF e a máquina estatal como um todo são um atraso de vida para o Brasil. 

Debatedores de metafísica política têm insistido muito nesse ponto: não se pode mais pensar que o fascista é apenas aquele sujeito que veste camisa preta, faz a saudação a Benito Mussolini e sabe cantar a Giovinezza. Isso é o que eles querem que se pense, para enganar as pessoas com a ideia de que o fascismo não existe mais. Mas segundo os árbitros que definem o que é vício e virtude hoje em dia, o fascismo não só continua existindo como nunca foi tão perigoso. 

É esse oceano de gente que infesta o mundo com sua recusa em aceitar a única fé permitida pelo presente “processo civilizatório” — a fé em Lula, no “globalismo”, na “mudança do clima” e no resto do evangelho que está aí.


Embora desejasse voltar à Itália e reassumir o poder, Mussolini foi considerado incompetente pelos seus novos ‘tutores’ alemães, que impediram seu retorno | Foto: Reprodução/Wikimedia Commons 

Toda essa gente, segundo rezam as doutrinas do “campo progressista”, é um risco mortal para a civilização humana. É o que eles estão chamando, com angústia crescente, de “direita mundial”. São basicamente os que não concordam com os governos de esquerda — ou que se apresentam como tal. Seus desvios mais intoleráveis, pelo credo antifascista, começam com a crença de que o trabalho, o mérito individual e a livre iniciativa são as chaves para a ascensão social — e não o “Estado”. A partir daí, fica pior. Essas massas, desprovidas de consciência política e iludidas pelo “discurso demagógico” da “extrema direita”, acreditam que a família é a peça mais importante da sociedade. Acham que o ser humano tem só dois gêneros, masculino e feminino — e que só mulheres podem dar à luz. Não querem políticas sociais. Querem um celular novo. 

Os fascistas de hoje querem votar nos candidatos que bem entenderem, em eleições livres, e não nos que foram aprovados pela USP, pela mídia ou pelo coletivo dos bispos. Querem se manifestar  livremente na internet. Querem uma existência mais cômoda. Não estão interessados em justiça social, mas sim em ganhar dinheiro, o máximo possível, e subir de vida. Não gostam de nada que a esquerda e o governo gostam: bandidos, corrupção, educação sexual para crianças, Bolsa Família, aborto, drogas, morador de rua, Palestina etc. etc. etc. Em suma: são um horror social e têm de ser obrigatoriamente denunciados como “fascistas”. PGR neles. Polícia Federal neles. Xandão neles.

A democracia de Lula 

Há três coisas, em especial, que deixam a esquerda fora de si diante do “fascismo” e dos “fascistas”, e de quem mais eles excomungam como sendo de “extrema direita”. A primeira é que todos os valores denunciados como direitistas fazem muito sentido, do ponto de vista lógico, para o cidadão comum. A segunda é o seu desejo de sair da pobreza, algo que as facções intelectuais acham irritante ao extremo — manifestam um desprezo colérico contra a classe trabalhadora quando ela se imagina capaz de empreender, construir uma vida própria e sair do lugar que lhe foi reservado pelos sociólogos. 

A terceira, e de longe a pior de todas, é a tendência da “extrema direita”, ou do “fascismo”, a ganhar eleições. Eleições limpas, com escrutínio público e nas quais o papel do Estado se limita a contar os votos, são um alicerce fundamental das democracias. Hoje, para o “campo progressista” e para os intelectuais, transformaram-se numa ameaça. É um contrassenso. 

Eleições, a menos que sejam roubadas como as da Venezuela, não podem jamais colocar em risco a democracia, pois expressam a vontade da maioria — e a vontade da maioria é que decide quem tem de governar. Mas é isso, exatamente isso, que está dizendo a religião oficial antifascista. Os adversários podem ganhar, porque são eles que formam a maior parte do eleitorado — e eleição que a maioria ganha é um perigo mortal para a democracia, tal como ela é definida por Lula, o STF e a direção do PT. 




Donald Trump ganhou a eleição nos Estados Unidos. Antes, Javier Milei tinha ganhado na Argentina. Antes dos dois, Giorgia Meloni ganhou na Itália. Teme-se, agora, pela próxima grande eleição — a da Alemanha. Em nenhum dos casos ocorreu aos analistas internacionais que o povo de cada um desses países escolheu com liberdade os seus novos governos. Foi um “retrocesso”. Foi um atentado contra a “civilização”. Foi essa e mais aquela desgraça. O sujeito oculto da frase é que a vontade do povo, quando favorece a direita, não é mais vontade do povo. É “populismo” — e “populismo” não pode ser admitido hoje no livro de regras, sobretudo quando os populistas são populares.

Eleição livre? E se um “fascista” ganhar? A coisa é cada vez mais viável, quando se leva em conta a multiplicação cada vez mais rápida de fascistas que estão por aí e têm título de eleitor. Como faz, então? Acabam as eleições ou acabam os fascistas? O STF ainda não formou maioria a respeito. 

Revista Oeste