Governos já encomendaram 11,6 bilhões de doses de vacina contra o vírus chinês, segundo o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância). Seriam doses suficientes para vacinar pelo menos a população mundial inteira com 19 anos ou mais (cerca de 5 bilhões de pessoas). Os laboratórios têm capacidade de fabricar o que foi encomendado?
De acordo com o próprio Unicef, em tese, sim. Considerada só a capacidade de fabricação de vacinas aprovadas por ao menos uma autoridade nacional (agência reguladora ou similar), as fábricas dos laboratórios e suas subcontratadas poderiam fabricar 11,92 bilhões de doses neste ano (4 bilhões no primeiro semestre, outros 7,92 no segundo). É apenas uma estimativa.
Até sexta-feira (30), havia sido aplicado 1,134 bilhão de doses no mundo inteiro, segundo o Our World in Data (site de estatísticas mantido por um grupo da Universidade de Oxford).
A velocidade de aplicação tem aumentado rápido. Ao final de janeiro, eram vacinados 3,7 milhões de pessoas por dia (média móvel da quinzena) no mundo. No final de fevereiro, 5,7 milhões. No final de março, 13,2 milhões. No final de abril, 17,9 milhões. No último dia de abril, foram vacinados 22 milhões de pessoas.
Nesse ritmo, o restante da população adulta do mundo inteiro poderia ser vacinada em menos de seis meses —se o problema fosse apenas de aritmética.
Não é. Além de problemas operacionais, há desigualdade socioeconômica. Dos 11,6 bilhões de encomendas de doses, 4,28 bilhões são da União Europeia, 3,56 bilhões pelos Estados Unidos e 750 milhões pela União Africana. Vai sobrar vacina na Europa e nos Estados Unidos. O problema é distribuir a sobra.
O Unicef tem um sistema de acompanhamento de aprovação, encomendas, produção, entrega e preço de vacinas contra o vírus chinês, mas já tinha alguma tradição no rastreamento da fabricação e comércio de remédios e de outras vacinas.
Recorre a informações públicas (de empresas ou governos, por exemplo), pede informações a laboratórios e fabricantes e complementa seu levantamento com dados da empresa Airfinity.
A Airfinity, baseada em Londres, é uma companhia de projeções, previsões e consultoria de desenvolvimentos científicos e tecnológicos na área de biotecnologia. A empresa previu com acerto (diz) que seria produzido cerca de 1 bilhão de doses do início do ano até abril. Estima agora que, até 27 de maio, seria produzido outro bilhão.
A Airfinity afirma que não pretende divulgar outro prognóstico, mas fez uma tabela com dados de capacidade de produção de vacinas, por laboratório, neste ano. Pelos dados declarados coletados, a capacidade seria de cerca de 17,5 bilhões (tanto de vacinas aprovadas quanto de produtos ainda em desenvolvimento e testes).
Um grupo ligado à Universidade Duke, nos Estados Unidos, o Duke Global Health Innovation Center, estima a capacidade de produção em cerca de 13,4 bilhões (também inclui vacinas aprovadas e em testes). No entanto, nem todas as vacinas das tabelas da Airfinity e de Duke são as mesmas e algumas estimativas são diferentes.
Como diz o centro da Duke, o “cenário [da fabricação de vacinas] é notavelmente opaco”. A informação pública disponível é “escassa e fragmentada”. Assim, quem precisa tomar decisões tem dificuldade de “entender completamente as várias cadeias de produção envolvidas” e avaliar riscos.
Segundo o Unicef e equipe da Universidade McGill, no Canadá, 14 vacinas já foram aprovadas por pelo menos uma autoridade nacional (agência reguladora ou equivalente) e outras 31 estão na fase 3 de testes (segundo a McGill).
Os pesquisadores alertam que o número pode estar defasado, pois os dados são recolhidos de várias fontes e não há centralização de informação a respeito do estágio de desenvolvimento dos imunizantes.
Os dados do Unicef de vacinas encomendadas incluem cinco produtos ainda em fase de teste, por exemplo (três na fase 3, uma na fase 2 e uma na fase 1). No entanto, alguns desses produtos já estão sendo dados como de uso certo, caso da vacina Medicago, no Canadá, e da Novavax, nos Estados Unidos.
Além do problema de não haver fonte central de dados, a perspectiva do desenvolvimento e fabricação muda constantemente. Também há imprevistos e acidentes. A entrega de insumos pode atrasar (como atrasou no caso de Butantan e Fiocruz), pode haver problema na linha de produção (como houve no lacre dos frascos da Fiocruz).
Podem acontecer erros graves. Um fabricante da vacina Janssen nos Estados Unidos, a Emergent, perdeu matéria-prima para fabricar 15 milhões de doses em março porque confundiu insumos de vacinas da Janssen com as da Astrazeneca.
Algumas vacinas são fabricadas e acabam não sendo distribuídas ou aplicadas, pois governos passam a rever a segurança do imunizante por causa de efeitos colaterais (casos de Astrazeneca e Janssen na União Europeia) ou as pessoas se recusam a tomá-las.
O procedimento de fabricação não é previsível como o engarrafamento de refrigerantes. Envolve processos biológicos que não são perfeitamente controláveis. A Astrazeneca diz, por exemplo, que a produção de sua vacina pode levar de 90 a 120 dias, desde o estágio inicial até o empacotamento.
A capacidade de produção pode mudar, a depender da dosagem do produto. A Moderna diz que pode produzir muito mais caso se dedique mais a entregar doses de reforço menores (se for essa a decisão científica), de 50 microgramas ou menos, em vez dos atuais 100 microgramas.
Novos contratos de produção vêm sendo fechados com rapidez. Em março e abril, quatro fabricantes da Índia acertaram a produção de cerca de 700 milhões de doses da vacina Sputnik V neste ano, segundo notícias da mídia indiana e russa e as empresas. Uma das fabricantes indianas, uma empresa experiente no ramo, se chama Panacea.
Em suma, há dificuldades de projetar com certeza a escala de produção. A estimativa depende de declarações das empresas, para começar.
Na Airfinity, por exemplo, o que se faz é recolher esse número declarado da capacidade de produção de doses e observar o ritmo de entregas de doses.
No caso de vacinas em que a produção industrial não começou, estima-se quando o laboratório que a desenvolveu vai publicar seu estudo da fase 3 (em que o produto pode ser submetido a reguladores) e quando o imunizante pode ser aprovado. As estimativas de produção são então confrontadas com a produção de fato, o que serve para ajustar o modelo de previsão
Com informações da Folha de São Paulo