Por mais de seis décadas, Kazuo Odachi manteve um segredo. Aos 17 anos, ele se tornou piloto camicase, um dos milhares de jovens japoneses que deviam dar sua vida num suicídio na tentativa derradeira do Japão no fim da 2.ª Guerra.
Odachi constituiu uma família, fez carreira como policial em Tóquio, mas sempre manteve sua história escondida, não a revelando nem mesmo para sua mulher, que sabia apenas que ele foi piloto da Marinha japonesa. Na sua opinião, a experiência era muito difícil de ser explicada para uma sociedade que considerava os camicases maníacos fanáticos.
No decorrer dos anos, porém, o complicado relacionamento do Japão com a guerra mudou. Odachi, aos poucos, começou a relatar sua história para um pequeno grupo de amigos. Em 2016, publicou um livro de memórias contando como ia dormir toda noite se perguntando se no dia seguinte seria a sua vez de morrer por uma causa perdida. O livro foi lançado em tradução inglesa em setembro, no aniversário de 75 anos do fim da guerra.
Odachi, de 93 anos, um dos últimos membros ainda vivos de um grupo que não deveria sobreviver, disse que sua intenção foi evocar esses pilotos jovens cujo valor e patriotismo foram explorados. “Não desejo que as pessoas esqueçam que o maravilhoso país que o Japão se tornou hoje foi construído sobre a morte deles”, disse Odachi, em entrevista recente.
Hoje, ele acolhe os visitantes em sua casa no subúrbio de Tóquio, onde vividamente recria velhas cenas de guerra, pisando forte nos pedais de aviões imaginários e fingindo puxar ferozmente o manche da aeronave.
Odachi se alistou como voluntário para lutar numa guerra que achava que seu país não venceria. Estava disposto a morrer para proteger seus entes queridos, mas não jogar sua vida fora. Hoje, ele é radicalmente contra a guerra e acha que a constituição pacifista do país é ótima.
Ele cresceu num vilarejo próximo de uma base aérea e sempre foi fascinado por aviões. Quando a guerra começou, decidiu que um dia voaria em um daqueles aviões. Alistou-se nas Forças Armadas em 1943 e ingressou no Yokaren, grupo de elite de adolescentes que foram treinados como pilotos da marinha imperial japonesa.
Quando chegou a Taiwan, ocupada pelos japoneses, em agosto de 1944, a guerra estava no seu estágio final. As forças japonesas eram derrubadas pela superioridade tecnológica dos americanos e a capacidade avassaladora de produção da máquina de guerra dos EUA.
Uma vitória aliada parecia cada vez mais inevitável e as táticas japonesas começaram a exigir um maior sacrifício humano. “Nas batalhas aéreas, os pilotos eram instruídos a cortar em pedaços o inimigo com a própria hélice”, escreve Odachi. “Naturalmente, era nossa morte certa, mas pelo menos levaríamos o inimigo junto.”
A ideia era mostrar que os soldados japoneses estavam mais dispostos a morrer do que os seus inimigos. A força dessa convicção foi testada em outubro de 1944, quando a Marinha japonesa decidiu apostar tudo para conter um ataque americano nas Filipinas, que ficou conhecido como a Batalha do Golfo de Leyte.
Os oficiais japoneses explicaram a Odachi e seu grupo o plano de usar missões suicidas e pediram voluntários, deparando com silêncio. Somente quando os oficiais começaram a repreendê-los é que alguns se apresentaram. “Fomos basicamente induzidos a cometer suicídio.”
Em 25 de outubro, ele presenciou a primeira saída bem sucedida dos camicases decolando de uma pista nas Filipinas. Mas logo ele e seus colegas se viram presos na ilha quando os bombardeiros americanos destruíram muitos dos aviões remanescentes do seu esquadrão.
Salvo pela rendição
Meses depois, ele e alguns outros escaparam para Taiwan, onde, em 4 de abril de 1945, recebeu ordens para sua primeira missão como piloto suicida num período de 10 meses. O Zero de Odachi – o ágil avião de combate japonês que dominou os céus do Pacífico nos primeiros anos da guerra – estava carregado com uma bomba de quase 500 quilos e pesava tanto que era impossível vencer o inimigo.
Quando os caças americanos o localizaram, ele soltou sua bomba no oceano e fugiu. Na saída seguinte, seu grupo não conseguiu encontrar o alvo. As seis próximas missões também fracassaram.
Depois de cada tentativa, o grupo esperava semanas por novas ordens. Toda noite, os oficiais anunciavam que eles voariam no dia seguinte. “A sensação era de uma condenação à morte, e virava o estômago.”
O momento, contudo, nunca chegou. Na sua última missão, seu avião se preparava para a decolagem quando um membro da equipe de terra correu na pista gritando e acenando para o esquadrão abortar o voo. O imperador havia acabado de anunciar a rendição do Japão. Então, finalmente, ele voltou para casa. / NYT, TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
Ben Dooley, The New York Times, O Estado de S.Paulo