sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

"A independência do Banco Central", escreve Ubiratan Jorge Iorio

O projeto de autonomia do BC contém devaneios românticos e intervencionistas, como o fomento ao pleno emprego. A Câmara precisará ajustá-lo




Não é imprudência e insensatez colocar uma tigela de leite na frente de um gato faminto, para que ele tome conta? Pois bem, pelo mesmo motivo, é recomendável que a sociedade estabeleça instituições adequadas para impedir que a gestão da moeda e do crédito seja vulnerável à influência de políticos ou a outros grupos de interesse, como banqueiros.

Teoricamente, existem três mecanismos para neutralizar ou minimizar os ataques de gatos à vasilha monetária: a autonomia ou “independência” dos bancos centrais, o regime do padrão-ouro e a supressão do monopólio estatal sobre a moeda, com o estímulo à competição entre diversas moedas dentro do país. Por razões de geopolítica e de teorias econômicas imperfeitas, a partir da 1ª Guerra Mundial o padrão-ouro começou sistematicamente a ser abandonado, até ser extinto em 15 de agosto de 1971.  A competição entre moedas, ao menos por ora, está fora de cogitação. Assim, resta apenas a primeira alternativa. Mas o que vem a ser um banco central autônomo?

A ideia é que o banco seja uma autarquia especial, no mesmo nível dos ministérios, sem subordinar-se, portanto, a nenhum deles, e com razoável autonomia técnica, operacional, administrativa e financeira, sujeito tão somente às normas que regem os demais sistemas da administração federal. O argumento é que, assim resguardado de ingerências políticas, o Banco Central ganha credibilidade com os investidores nacionais e estrangeiros, pela expectativa de que poderá garantir a estabilidade da moeda e a segurança do sistema financeiro indispensáveis para a saúde da economia, bem como para reduzir o risco-país, contribuindo para atrair capitais externos.

Costuma-se citar como exemplo de banco central independente o norte-americano Federal Reserve System (Sistema de Reserva Federal), o Fed, criado em 1913 e formado por um chairman nomeado pelo presidente do país, um board de sete membros com mandato de catorze anos, todos substituídos, um por um, a cada biênio, e treze bancos centrais: o principal, em Washington D.C., e outros doze regionais, que são organizações não estatais e teoricamente voltadas para o “interesse público”. Entretanto, o mais independente de todos os bancos centrais sempre foi o Deutsche Bundesbank, considerado desde o final da 2ª Guerra Mundial a instituição mais confiável da Alemanha. Mesmo tendo perdido sua principal função com a introdução do euro, é o membro mais influente do Sistema Europeu de Bancos Centrais (SEBC).

A autonomia ajuda a separar o regime monetário do regime fiscal. Dá ao banco os meios para controlar permanentemente a inflação, ao estabelecer tanto o regime quanto a política monetária, escolhendo e anunciando, por exemplo, a trajetória da base monetária, ou seja, do total de moeda em circulação mais as reservas bancárias dos bancos comerciais. Desse modo, determina quanto suprirá às autoridades fiscais, que deverão necessariamente financiar o que faltar para cobrir seus déficits pela emissão de títulos no mercado.


Um tema que se arrasta há três décadas


No último dia 3 de novembro, o Senado, em sessão plenária, aprovou e encaminhou à Câmara um substitutivo do senador Telmário Mota (Pros-RR) ao Projeto de Lei Complementar (PLP) 19/2019, de iniciativa de seu colega Plínio Valério (PSDB-AM), propondo a “independência” ou autonomia do BC. O PLP estabelece para o presidente e os diretores da instituição mandatos estáveis e não coincidentes com o do presidente da República, bem como requisitos para nomeação, impedimento e demissão. Existem outros projetos semelhantes dormitando nas gavetas do Parlamento, como o PLP 112/19, apresentado pelo Executivo em abril do ano passado. A este projeto foi apensado o PLP 200/1989, do então senador Itamar Franco (1930-2011). Outro dispositivo cochila há quinze anos, o PLS 73/05, do senador Ney Suassuna (Republicanos-PB).

Trata-se de um passo que vem sendo ensaiado há três décadas — a rigor, desde a promulgação da atual Constituição. Um passo que sempre enfrentou forte resistência de políticos, sob a alegação de que há riscos de desalinhamento da instituição com o restante da política econômica ou com governos dados a crer em contos de fadas, como os de que o papel da política monetária é manter os juros baixos para gerar empregos, de que expansões da oferta de dinheiro fazem todos os cidadãos felizes para sempre e de que o Banco Central tem, até mesmo, uma função “social”, a de “combater desigualdades”. Como disse certa vez um aluno sagaz e irônico: “Um banco central politicamente correto não é um banco central, é no máximo um banco lateral”.

Caso os deputados aprovem o substitutivo mencionado — que deverá ser analisado e votado em conjunto com os projetos anteriores —, o Banco Central passa a ser formalmente autônomo em relação ao governo. O presidente do BC e os diretores continuarão sendo indicados e nomeados pelo presidente da República e sabatinados no Senado. Seus mandatos serão de quatro anos, sempre referenciados ao do chefe do Executivo: o do presidente do banco, iniciado em 1º de janeiro do terceiro ano de mandato, e os da diretoria com substituições de dois dos oito membros a cada ano. Além disso, a proposta obriga o presidente do BC a apresentar semestralmente relatórios em arguições públicas no Senado.

As intenções são boas, mas há problemas. O maior deles é que, embora o projeto mencione acertadamente que o objetivo fundamental do Banco Central é assegurar a estabilidade de preços, estabelece outros propósitos que são devaneios intervencionistas, como “suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e zelar pela solidez e eficiência do Sistema Financeiro Nacional” e “fomentar o pleno emprego”, que podem ser românticos, mas que tecnicamente são descabidos, além de se chocarem com a missão prioritária. Outro problema previsível diz respeito às renovações anuais de quarta parte da diretoria — um permanente minueto, aquele gênero musical francês em que os dançarinos trocam seus pares; bonito de ver, mas de execução problemática pela velocidade do rodízio e curta duração dos mandatos. A expectativa é que essas e outras falhas sejam escoimadas na Câmara, para que prevaleça o objetivo de fato importante da independência do BC, que é a autonomia do banco para perseguir a estabilidade de preços.

Na prática, o projeto põe no papel um acordo tácito que já vem acontecendo, de não interferência do governo nas decisões da instituição. A lei que criou o Banco Central (nº 4.595, de 31/12/1964) previa a autonomia, mas esta foi sendo empurrada com a barriga. Seu primeiro presidente, o economista Dênio Nogueira, no início dos anos 1990, relatou-me pessoalmente o teor de sua exoneração, por meio da ligação telefônica que lhe fez o presidente Costa e Silva: “Professor, precisamos do seu cargo, esquece o mandato, o governo precisa ter no banco alguém de confiança do novo ministro da Fazenda [Delfim Netto]”. Os presidentes militares seguintes também não manifestaram simpatia pela autonomia, assim como José Sarney, Fernando Collor e Itamar Franco. Itamar chegou a demitir um presidente do BC por ter se recusado a cumprir sua “ordem” de baixar a taxa básica de juros. Nos governos de FHC, Lula e Michel Temer, o acordo tácito foi razoavelmente cumprido. Mas, no mandato desastroso de Dilma Rousseff, economistas extremamente incompetentes e pressões políticas excessivamente persistentes implodiram o acordo.

Embora a autonomia seja desejável, ela não é panaceia. Ela não assegura que o objetivo de manter a estabilidade da moeda seja alcançado, pela mesma razão que não se pode garantir que alguém que bebeu excessivamente caminhe em linha reta. Presidentes e diretores de bancos centrais precisam ser sóbrios e fazer as coisas certas, sem embustes heterodoxos.


Ubiratan Jorge Iorio é economista, presidente do Conselho Acadêmico do Instituto Mises Brasil e professor associado (aposentado) da Uerj.


Revista Oeste