sexta-feira, 5 de junho de 2020

"O veneno da violência"

Como os grupos “antifascistas” 
estão agredindo a democracia, 
sob o beneplácito da imprensa

Em 23 de janeiro de 1992, Rodrigo de Gasperi, de 13 anos, morreu quando uma bomba de fabricação caseira explodiu durante um jogo entre São Paulo e Corinthians. Oficialmente, Gasperi foi a primeira vítima a ser morta em confronto entre torcidas organizadas no Brasil. Antes dessa partida pela Copa São Paulo de Futebol Júnior, a violência nos estádios parecia uma exclusividade de torcedores de outros países, como os hooligans ingleses ou os barra bravas argentinos.
Manifestantes atiram pedras contra policiais militares, que revidam com bombas de efeito moral
Em 20 de agosto de 1995, Marcio Gasparin, de 16 anos, foi morto a pauladas em mais um enfrentamento entre são-paulinos e palmeirenses no Estádio do Pacaembu, que feriu outros 102. De lá para cá, mais de 300 foram assassinados em confrontos do gênero. A selvageria epidêmica acabou amputando o espetáculo do futebol com o advento dos jogos com torcida única. É proibida a entrada de quem não torce pelo time mandante.
Nos atos “pró-democracia” ocorridos em 31 de maio e 1º de junho, ao lado de integrantes de torcidas organizadas, agiram os antifas, abreviação de “antifascistas”. O manual “Formando um grupo de afinidade antifa”, traduzido e divulgado pelo Coletivo Planètes, detalha algumas regras e orientações destinadas aos interessados na criação de ramificações dessa tribo. Em sua página na internet, o Planètes se apresenta como “um bando de anarquistas baderneiros, predispostos a um anarquismo sem adjetivos”. Logo no início, o documento explica que “o nome antifa lhe dá um certo nível de reconhecimento […] mas também inclui obrigações e desvantagens”.
Uma das imagens que ilustram o manual “Formando um grupo de afinidade antifa”

Treinamento em artes marciais, uso de armas brancas e até mesmo porte de armas de fogo

Os antifas estão envolvidos nos protestos contra o racismo que eclodiram nos Estados Unidos depois da morte do segurança George Floyd, assassinado de maneira cruel pela polícia em Minneapolis há uma semana. As cenas de baderna, furto e depredação do patrimônio fizeram com que o presidente Donald Trump rotulasse essas organizações como “terroristas”. Manifestações antifas também ocorreram em Paris e Amsterdã. Na Cidade do México, um policial chegou a ser morto.
“Construa uma cultura de não cooperação com os agentes da lei”, ensina a versão brasileira do manual. “Os policiais serão apoiadores de Bolsonaro; não colabore com eles.” Em outro ponto, a sugestão é que os integrantes dos grupos antifas cuidem da autodefesa”. “Enquanto a maioria das ações antifas não envolve confronto direto, e a quantidade de confrontos varia de grupo para grupo, às vezes o confronto é necessário”, explica o documento. O manual também recomenda treinamento regular de artes marciais.
Outro conselho diz respeito a análise das leis locais sobre posse de dispositivos como sprays de pimenta e tacos retráteis. No trecho sobre armas, os autores recomendam : “Se você optar por possuir armas, pratique regularmente. […] Tenha em mente que as lojas de armas e os próprios proprietários dos clubes de tiro são frequentemente ligados a grupos políticos de direita.” Adiante, alerta-se para que os ativistas não postem nas redes sociais imagens de armas.
Alheios a essas evidências, a maior parte da imprensa e os idealizadores dos protestos acharam normal a presença em manifestações “pró-democracia” de gente que rejeita o convívio entre contrários e tem muito apreço por guerras permanentes. Também não enxergaram impressões digitais dos torcedores fanáticos na depredação do patrimônio público e nas batalhas contra a Policia Militar. Novas manifestações foram convocadas para este fim de semana e mais cenas de violência podem vir a ser registradas.

São Paulo

Em São Paulo, o protesto começou por volta do meio-dia do domingo 31, em frente ao Masp, na Avenida Paulista. A maioria dos manifestantes vestia roupa preta ou camiseta de torcidas organizadas, usava máscara de proteção e boné, gorro ou capuz, o que dificultava a identificação. Com braços erguidos e punhos cerrados, eles marchavam e gritavam palavras de ordem contra o governo federal, os fascistas e pela democracia.
Num dos vídeos do ato, torcedores da Gaviões da Fiel começam a cantar um hino da torcida que diz “A gente gosta de bater nos porco, de dar porrada e de dar paulada, a gente bate, bate, bate forte e não quer parar”. Quase imediatamente são repreendidos por uma voz que diz “Não! Não! Não! Os caras sabe que nóis tá aqui [sic]”.
Perto dali, próximo à esquina com a Rua Pamplona, um grupo bem menor de apoiadores de Jair Bolsonaro ostentava camiseta da Seleção Brasileira, carregava bandeiras do Brasil e reivindicava a reabertura do comércio durante a pandemia de coronavírus. Outra meia dúzia pedia intervenção militar, o fechamento do Congresso e o fim do Supremo Tribunal Federal.
O estopim para o início da confusão aconteceu por volta das 14 horas, quando integrantes dos dois grupos se cruzaram próximo ao prédio da Fiesp. Além de uma mulher de meia-idade, que carregava as bandeiras do Brasil e dos Estados Unidos e segurava um taco de beisebol, os manifestantes “antifascistas” se indignaram com a presença de um homem que tinha sobre os ombros uma bandeira da Ucrânia — classificada por eles como um “símbolo nazista usado pelo partido de extrema direita ucraniano”.
Embora o governo da Ucrânia negue, a bandeira rubro-negra é considerada pelos grupos antifascistas um “símbolo nazista usado pelo partido de extrema direita ucraniano”
“A bandeira rubro-negra é histórica. A faixa negra simboliza a terra fértil da Ucrânia, e a vermelha, o sangue que ucranianos durante séculos derramaram na luta por nossa soberania, liberdade e independência”, tentou explicar, em vão, Rostyslav Tronenko, embaixador da Ucrânia no Brasil, no dia seguinte ao do confronto. “Em 2015, o Parlamento ucraniano aprovou uma lei que proíbe o uso de símbolos nazistas e comunistas. Existe uma lista de símbolos proibidos, e essa bandeira não está entre eles.”
A Polícia Militar se colocou entre os dois grupos para tentar evitar o confronto. Mesmo assim, houve confusão. Pouco depois, manifestantes “antifascistas” começaram a arremessar pedras e pedaços de pau contra os policiais, que revidaram com bombas de efeito moral. Barricadas com objetos em chamas foram montadas. Uma caçamba foi arrastada para o meio da rua e uma banca de jornal acabou depredada. Cinco pessoas foram presas. Algumas portavam produtos químicos e armas brancas.

Rio de Janeiro

No Rio de Janeiro, os conflitos aconteceram na Praia de Copacabana, quando grupos “antifascistas” e integrantes da “Democracia Rubro-Negra”, torcida organizada do Flamengo, se aproximaram de manifestantes que gritavam palavras de ordem a favor de Jair Bolsonaro. Numa das fotografias tiradas no momento da confusão, um homem vestido de verde e amarelo aparece deitado no chão, tentando se proteger com os braços, enquanto recebe um chute na costela. Os policiais usaram spray de pimenta e gás lacrimogêneo.
Manifestante a favor de Jair Bolsonaro é espancado por grupo rival


Curitiba

Realizado na noite de segunda-feira, 1º de junho, o protesto na capital paranaense foi o mais violento. Enquanto gritavam palavras de ordem contra o racismo, os manifestantes aproveitaram para depredar o Fórum Cível, a Junta Comercial, agências bancárias, pontos de ônibus e outros patrimônios públicos.
Em frente ao Palácio Iguaçu, sede do governo do Estado, integrantes do grupo não se intimidaram. “Tentaram entrar, passaram a arremessar pedras contra o edifício, arrancaram a bandeira do mastro, rasgaram e queimaram parte dela”, relatou o comando da Polícia Militar, em nota.
Enquanto queimavam a bandeira nacional, os manifestantes gritam “Fogo no Brasil!”. Sete pessoas foram presas por depredação e vandalismo e encaminhadas ao Centro de Operações Policiais Especiais. Entre os detidos, estava Kevin Pereira Nunes, de 21 anos, filiado ao MDB.
“O Movimento Democrático Brasileiro do Paraná tomou conhecimento de que uma das pessoas presas sob suspeita de depredar patrimônio público é filiada do partido desde 2015”, afirmou em nota Paulo Galeto, secretário-executivo do partido no Paraná. “De modo algum o MDB compactua com qualquer ato de destruição. Lamenta o ocorrido, ao mesmo tempo que reconhece a impossibilidade de seguir passo a passo todos os filiados.”
Também filiada ao partido de Roberto Requião, um dos maiores críticos do governo Bolsonaro, Vera Regina Giebmeyer, advogada de Kevin, explicou que seu cliente foi às manifestações atraído por uma postagem no Facebook que mencionava uma “manifestação pacífica e antirracista”. A advogada nega que ele tenha se envolvido em atos de vandalismo. Em depoimento, Kevin afirmou que foi preso “porque alguém tem que pagar pelo ato, não importando quem seja”.
Leonardo Maia de Ávila, outro manifestante detido, publicou em seu Facebook um texto em apoio aos protestos contra a morte de George Floyd. “A noite foi marcada por fortes confrontos, com carros e edifícios incendiados, barricadas foram erguidas em todos os cantos da cidade e grandes lojas foram saqueadas”, diz o relato. “A casa do policial responsável pelo assassinato de Floyd foi cercada por manifestantes, e sua delegacia está totalmente destruída. A cidade está fora do controle e a polícia se encontra totalmente acuada.” Em outra publicação, ele celebra o reaparecimento do Anonymous “depois de seis anos”. O grupo é acusado de ser o responsável pela divulgação ilegal de dados pessoais de Bolsonaro, familiares e aliados do presidente.
Todos os sete detidos em Curitiba foram liberados.

Democracia X Democracia

Embora classifiquem a si próprios como integrantes de movimentos “pela democracia”, os organizadores desses atos têm uma visão do sistema democrático bastante relativa. “Foi tudo bem até as 14 horas, quando passaram duas pessoas vestidas de militares de um lado e, do outro lado, uma senhora com um taco de beisebol na mão. Daí, é claro, deu confusão, bateram neles”, relata Chico Malfitani, um dos fundadores da Gaviões da Fiel. “Nem houve briga. Se tivesse havido, seria um massacre. Mas não era nossa intenção. Queríamos defender a liberdade e a democracia. Até a liberdade do outro lado.” Em seguida, pondera: “Desde que não seja a liberdade de pedir uma ditadura”.
Curiosamente, nenhuma torcida organizada jamais foi às ruas manifestar-se contra a roubalheira na CBF ou em oposição à corrupção generalizada em governos anteriores.

Manifestações em tempos de coronavírus

Enquanto as manifestações em apoio a Jair Bolsonaro que vêm acontecendo semanalmente há meses foram sempre muito criticadas por causarem aglomerações, o que aumenta o risco de contaminação pelo coronavírus, a imprensa parece ter se esquecido da existência do vírus chinês no último fim de semana. Foram raríssimas as reportagens que fizeram referência ao tema. Alguns textos publicados em sites e redes sociais, ao contrário, estimularam o comparecimento aos atos.
Pouco se falou do risco de contaminação pelo coronavírus com as aglomerações
“Essa é a hora de darmos uma resposta à altura”, escreveu no site do Mídia Ninja Amara Moira, uma das porta-vozes da chamada esquerda, que se define como “travesti, feminista, trabalhadora sexual e autora do livro E Se Eu Fosse Puta”. “É um risco grande, mesmo tomando todas as medidas de segurança — máscara o tempo todo, álcool em gel sempre à mão, distância mínima, evitando contato físico e mexer no rosto. Mas é um risco que precisamos correr, sobretudo os que estiverem numa situação mais privilegiada nesse confinamento.”
Quebrar o confinamento, no caso, foi descrito como um “ato de reação necessária”. “Assumimos esse risco e soltamos recomendação para que as pessoas fossem de máscara, levassem álcool em gel”, contou ao UOL Danilo Pássaro, evangélico, integrante da Gaviões da Fiel, estudante de História na USP e filiado ao Psol, que acabou assumindo uma função de liderança na manifestação de domingo. “Assim que a gente chegou, fiz um discurso dizendo que preferia estar em casa cuidando da minha família e da saúde. Hoje o Brasil tem quase 30 mil pessoas mortas na pandemia. E isso é uma das coisas que têm nos incentivado a manifestar.”

Os números

A obsessão por números também desapareceu do noticiário. E os pouco mais de 4 mil manifestantes estimados extraoficialmente nos atos do fim de semana em quatro capitais (São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba e Porto Alegre) foram tratados como responsáveis pela iminente queda do governo.
O que existiu, na realidade, foram pequenos grupos de radicais dos dois lados. Seitas que defendem suas verdades à esquerda e à direita.As grandes ausências não se limitaram às multidões. Também a democracia não compareceu.
Manifestantes contra e a favor do governo se enfrentam na Avenida Paulista. A imagem é a ilustração da intolerância

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