sexta-feira, 5 de junho de 2020

"A voz e a fúria das ruas", por Selma Santa Cruz

Além da indignação contra
o racismo, a revolta 
norte-americana reflete um
descontentamento com os
rumos do país

“Não consigo respirar.” A última frase de George Floyd, o norte-americano que morreu sufocado pela brutalidade policial em Minneapolis, nos Estados Unidos, não se tornou o lema das manifestações de protesto que se espalharam pelo país, em escala comparável à das convulsões sociais da década de 1960, apenas no sentido literal. Pois, embora deflagradas por mais um episódio de violência racista,  essa chaga permanente da vida norte-americana, elas parecem expressar uma revolta mais generalizada com o estado do país, que acabou exacerbada pela brutal contração da economia e pela perda de quase 30 milhões de empregos, em decorrência da pandemia da covid-19.
Afinal, para grande parte dos norte-americanos, essa realidade representa uma brutal reversão de expectativas. Muitos ainda estão se recuperando da recessão causada pela crise financeira de 2008, que deixou quase 9 milhões sem trabalho e levou milhares de famílias à ruína. Graças à retomada gradual do crescimento e da oferta de emprego, parecia que o pior ficara para trás. Agora, contudo, essa nova redução de postos de trabalho — a mais abrupta e intensa desde que se começou a recolher tais estatísticas, em 1939 — reabre velhas feridas. E não se vislumbram perspectivas de melhora.
A indignação que tomou conta das ruas parece alimentada também pelo forte aumento da desigualdade social nas últimas décadas. Depois de despencar ao longo de quase todo o século 20, a disparidade de renda alcançou, há dois anos, o índice mais elevado já registrado, comparável apenas ao de um século atrás, em torno do ano de 1925, quando o fausto dos barões da indústria contrastava com a miséria das massas de negros e imigrantes.
Sete em cada dez eleitores avaliam que o país está no caminho errado

Segundo dados de 2018, uma ínfima parcela dos norte-americanos — apenas 0,1% — concentra uma renda 196 vezes maior do que a de todos os 90% da base da pirâmide. Mesmo quando se amplia o foco, os números são impressionantes para um país que se tornou símbolo de democracia econômica: a renda dos 10% mais ricos representa nove vezes a dos 90% restantes. Paralelamente, a mobilidade social, que sempre foi um dos pilares do modelo norte-americano, vem estagnando. Apesar de ganhos de produtividade e dos ciclos de crescimento econômico, a média da remuneração dos trabalhadores parou de crescer a partir da década de 1970, assim como a renda média das famílias. Em 2013, mesmo depois de corrigida a inflação, ela havia retrocedido ao valor anterior a 1989.
Esse contexto pode ajudar a explicar também por que, segundo pesquisa divulgada na semana passada pela revista Politico e pela empresa Morning Consult, que vêm auscultando regularmente o ânimo dos norte-americanos com vistas às eleições presidenciais de novembro próximo, sete em cada dez eleitores avaliam que o país está no caminho errado. Em outra sondagem, citada pela CNN, a porcentagem dos insatisfeitos chega a 74%.
Essa frustração com os rumos do país aflige sobretudo os jovens, a parcela da população mais castigada pelo desemprego, que alcançou em abril um índice recorde de nada menos do que 27,40%. Mesmo antes da pandemia, essa já era considerada a primeira geração na história norte-americana que não pode ambicionar um futuro mais próspero que o de seus pais. Um quadro que estaria pondo em dúvida a promessa do American Dream, o lendário sonho americano, sustentado por longos períodos de prosperidade que possibilitaram a incorporação de milhões de deserdados ao american way of life.
A discriminação ainda oprime os negros e ameaça a vida deles cotidianamente

“A mobilidade social e as oportunidades econômicas são valores definidores da América”, pontua a Opportunity National, coalizão que reúne 350 organizações voltadas à promoção de empregos para os jovens. “Sempre acreditamos que as condições em que você começa na vida não podem determinar aonde você pode chegar, mas esse ideal corre o risco de desaparecer.”
Não se questiona, obviamente, que a indignação contra o racismo, tão profundamente arraigado na cultura norte-americana desde os tempos da Ku Klux Klan e das chamadas Leis de Jim Crow, que legalizaram a segregação após a abolição da escravatura, seja o propulsor da revolta. Afinal, embora proibida após a longa luta pelos direitos civis da década de 1960, a discriminação ainda oprime os negros e ameaça a vida deles cotidianamente. O ídolo aposentado do basquete Magic Johnson, por exemplo, conta que é parte do papel de todos os pais como ele ensinar aos filhos como se precaver contra agressões da polícia — o que ele faz continuamente, como era o caso de seu pai, que por sua vez aprendeu com seu avô.
A prefeita de Atlanta, Keisha Lance Bottoms, tem uma experiência semelhante. “Embora a polícia se reporte a mim como prefeita, eu não sei o que pode acontecer com meu filho se ele for interpelado por policiais. Não é possível que continuemos assim.” Parece absurdo que, em uma nação fundada sobre o preceito da igualdade, a condição de negro ainda possa representar, com tanta frequência, uma sentença de morte. E que, em consequência da cor de sua pele, os norte-americanos de origem africana continuem em condições inferiores em relação aos brancos em quase todos os indicadores econômicos e sociais.
A desigualdade estaria minando o sistema norte-americano e corrompendo-o

Mas essa problemática estaria se complicando ainda mais agora que a falta de mobilidade social começa a afetar também a população branca. É o que sugere o economista Robert Reich, professor da Universidade da Califórnia em Berkeley e ex-secretário do Trabalho da administração Bill Clinton, em seu livro Salvando o Capitalismo, de 2015, escrito após percorrer o país durante um ano para tentar detectar as causas do crescente sentimento antiestablishment. Seu diagnóstico é que a desigualdade estaria minando o sistema norte-americano, corrompendo-o tanto no que diz respeito às oportunidades econômicas quanto à representatividade política. Opinião similar é compartilhada pelo cientista político e fundador da renomada consultoria Eurasia, Ian Bremmer, para quem o Sonho Americano de igualdade, que inspirou idealistas no mundo todo, já não cumpre a sua promessa. “O modelo está em xeque, precisamos de mudanças.”
Esse desafio, como os protestos desta semana, influenciará certamente as eleições presidenciais de novembro. A aposta de Donald Trump é que o temor de instabilidades favoreça o voto conservador pela “lei e ordem”, como ocorreu na vitória de Richard Nixon, após os tumultos de 1968. Mas há quem acredite que, desta vez, o peso do voto negro e dos brancos insatisfeitos pode fazer pender a balança para o outro lado, favorecendo uma plataforma de mudanças.
É um embate de visões que valerá acompanhar de perto, até pelo que o resultado das eleições poderá revelar sobre a vitalidade do sistema norte-americano. Afinal, o país sempre soube se reerguer, após um sem-número de crises ao longo da história, fazendo pouco dos recorrentes prognósticos sobre seu iminente declínio. Em parte, justamente, pela capacidade de seu sistema político de se reformular continuamente a partir de críticas e questionamentos. Até porque lá, como ressaltou em editorial o jornal The New York Times, protestar de modo pacífico não é apenas um direito, garantido pela primeira emenda à Constituição. Mas praticamente um dever patriótico, quando se trata de apelar ao governo para a reparação de queixas.

Selma Santa Cruz foi editora e correspondente internacional do jornal O Estado de S. Paulo e da  revista Veja, na França e nos Estados Unidos, antes de se dedicar à comunicação corporativa como sócia-diretora da TV1, grupo de agências especializadas em marketing digital, conteúdo, live marketing e relações públicas. É mestre em comunicação pela USP e estudante permanente da História.

Revista Oeste