sexta-feira, 26 de junho de 2020

"O perigo do debate político sobre a cloroquina", por Paula Leal

Ao tratar do medicamento sob 
a ótica ideológica, a imprensa
tradicional cria ruídos e 
atrapalha o tratamento 
precoce da covid-19

Desde que a disseminação do coronavírus atingiu escala global, os centros mais avançados da medicina e da pesquisa mundial se mobilizam para produzir uma vacina capaz de imunizar a população. Em paralelo, medicações também são testadas no tratamento da covid-19. Para criar do zero um remédio com validação científica no tratamento de qualquer doença, é necessário realizar uma série de experimentos que podem levar anos. Por isso estão em teste remédios aplicados em outras doenças. É o caso do Remdesivir, um antiviral desenvolvido para o tratamento de ebola; da azitromicina, antibiótico usado para combater infecções respiratórias; e da ivermectina, vermífugo utilizado no combate a doenças causadas por vermes e parasitas. E claro, se você esteve atento ao noticiário nos últimos meses, já ouviu falar da cloroquina, talvez a única droga no mundo a ganhar significado político.
Defender a utilização do antimalárico no surgimento dos primeiros sintomas da covid-19, e não apenas no tratamento de casos graves, tornou-se sinal de apoio ao presidente Jair Bolsonaro. A Revista Oeste publicou uma reportagem especial sobre o tema em abril, quando ouviu especialistas e explicou em detalhes o funcionamento da medicação no organismo. Oitenta dias depois, a saga da cloroquina e da hidroxicloroquina, seu parente menos tóxico, mais parece uma interminável série com episódios polêmicos que pouco contribuem para o bom debate da saúde e do controle da epidemia.
Em razão da campanha contra o remédio, há médicos que se constrangem ao prescrevê-lo e também muitos pacientes se assustam antes de tomá-lo
x
Com o esforço da mídia tradicional, que adotou a narrativa de que a cloroquina não funciona, a medicação sofreu um processo de descrédito. E não só no Brasil. Bastou o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, apoiar a cloroquina, que imediatamente a mídia norte-americana considerou a medicação perigosa — com implicações mundiais na disponibilidade de um medicamento genérico e seguro, existente há setenta anos, que já foi usado milhões de vezes para o tratamento de doenças como lúpus e artrite reumatoide, sem necessidade de receita médica. Objetivamente, em razão da campanha contra o remédio, há médicos que enfrentam constrangimento na hora de prescrevê-lo e também muitos pacientes ficam assustados antes de tomar a medicação.

O alarde de estudos inconclusivos

Assim que estudos sem validação científica sobre a cloroquina questionavam seus efeitos, os veículos de mídia logo repercutiam a informação sem ressalvas e sem avaliar os critérios das pesquisas divulgadas.
Há mais dúvidas do que certezas sobre a pandemia, e a própria ciência não sabe o que fazer diante do inimigo desconhecido. Entretanto, em seis meses, já é possível chegar a algumas conclusões. Quando se manifesta, a doença apresenta fases que vão desde sintomas leves a quadros mais graves que podem levar à internação do paciente. De acordo com o virologista Paolo Zanotto, professor do Departamento de Microbiologia da Universidade de São Paulo, não faz sentido ministrar a cloroquina a pacientes em fases avançadas da covid-19. “Se você não der o remédio antes, no sétimo dia o paciente já estará com os pulmões completamente comprometidos. Quando surgirem a tosse seca e a dificuldade respiratória, será muito difícil tratar a doença”, defende. Portanto, todo e qualquer estudo que se preocupe em testar a cloroquina somente em pacientes hospitalizados, ou seja, em estágios mais avançados da doença, chegará à mesma conclusão: a medicação é ineficaz. Isso porque a cloroquina atua inibindo a replicação viral, e sua função é justamente frear a chamada “tempestade inflamatória” provocada pelo coronavírus.
Foi o caso da publicação na prestigiada revista científica britânica The Lancet. Em 22 de maio, o periódico publicou um estudo sem comprovação científica que indicava a ineficácia do uso da medicação baseado em testes em pacientes hospitalizados, ou seja, que estavam nos estágios mais avançados da doença. Menos de duas semanas depois, a publicação emitiu nota de retratação dos autores do estudo. Informou que, após auditoria independente dos dados, já não “poderiam mais ter certeza da veracidade do material analisado e, portanto, dos resultados obtidos”. Mas o estrago estava feito. Na esteira da publicação na The Lancet, a Organização Mundial da Saúde (OMS) suspendeu os estudos da cloroquina, muito embora a pesquisa não tenha cumprido os protocolos de modo a atingir o padrão-ouro em ciência. No vaivém das decisões da OMS, a entidade retomou os estudos uma semana depois e novamente suspendeu os testes com a cloroquina em 17 de junho.
Enquanto a discussão negativa em torno da medicação ganhava espaço nos jornais, profissionais da área de saúde de todo o país foram influenciados pela imprensa tradicional e por estudos questionáveis do ponto de vista científico. O presidente da operadora de saúde Prevent Senior, Fernando Parrillo, conta que, mesmo a empresa tendo adotado em seus protocolos o uso da cloroquina, observou-se resistência por parte dos profissionais de saúde. “Houve uma pressão psicológica muito grande em cima dos médicos. Porque o profissional até poderia prescrever, mas a gente sentiu, inclusive aqui dentro da empresa, que os médicos estavam inseguros em receitar, por conta do Conselho de Medicina”, diz Parrillo.
A imprensa tradicional, que se ocupou fortemente em fazer uma cobertura alarmista sobre o caso, inflamou ainda mais o Fla-Flu ideológico. A discussão sobre a cloroquina, em teoria, favorece a tese do isolamento vertical e a medicação ganhou status de “de direita”. Os chamados formadores de opinião e a dita grande imprensa posicionaram-se automaticamente contrários a esse caminho. Casos como o de Porto Feliz, no interior paulista, ganharam um espaço tímido na mídia. A cidade distribuiu gratuitamente pela rede pública de saúde kits com cloroquina e outros remédios para pacientes em estágio inicial da doença, sempre com prescrição médica, e reduziu o número de internações por covid-19. Ou o procedimento da operadora de saúde Prevent Senior, que adotou o uso do remédio na fase inicial e garante que a doença está sob controle entre seus beneficiários, integrantes do principal grupo de risco. Ou, ainda, o exemplo da cidade de Floriano, no Piauí, que estabeleceu protocolos de tratamento precoce para seus pacientes.
Qualquer sinalização de um remédio que poderia relaxar as medidas de confinamento foi abafada pela imprensa e também por quem decide se você deve ou não ficar em casa

No mais recente capítulo sobre a medicação, em 15 de junho a imprensa divulgou massivamente que a Food and Drug Administration (FDA, em inglês), órgão equivalente à Anvisa nos Estados Unidos, revogou a autorização para uso emergencial dos medicamentos hidroxicloroquina e cloroquina para o tratamento dos casos de coronavírus. Entretanto, faltou mencionar que a recomendação da entidade só vale para casos mais avançados da doença. Não se sabe se a informação dada de forma incompleta pela mídia é consequência da pressa, do preconceito contra a medicação, da falta de compreensão da língua inglesa na tradução do relatório ou se é por má-fé mesmo. 
A cloroquina não é sozinha a panaceia para vencer a pandemia. Aliás, sua indicação depende da fase da doença e é sempre acompanhada de outros fármacos, como azitromicina, zinco e, eventualmente, corticoides. A prescrição deve ser feita por um médico, que avalia as condições de saúde do paciente antes de indicar a dosagem e o coquetel de remédios a ser usado para combater a doença de forma segura.
Entretanto, qualquer sinalização de um remédio que poderia relaxar as medidas de confinamento foi abafada pela imprensa e também por quem decide se você deve ou não ficar em casa. Oeste revelou que o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, quando esteve à frente da pasta, ignorou uma manifestação da Sociedade Brasileira de Cancerologia (SBC) em favor da utilização precoce da cloroquina e da hidroxicloroquina no país, em pacientes com os primeiros sintomas de covid-19.

Tratamento precoce

Só no Brasil, mais de 53 mil pessoas já morreram em razão da covid-19. Vidas poderiam ter sido poupadas caso a discussão do uso de um medicamento não houvesse transbordado a esfera da medicina e ido parar na política. Milhões de reais foram gastos na construção de hospitais de campanha, na montagem de leitos de UTI e na compra de respiradores — medidas importantes para equipar o sistema de saúde do país, sem dúvida.
Mas por que não investir no tratamento pré-hospitalar como modo de atacar a doença em suas fases iniciais, evitando a progressão para as formas graves, que minimizam as chances de vida do paciente? Apenas um em cada três pacientes graves de covid-19 que são entubados nas UTIs brasileiras se recupera e consegue voltar para casa. A mortalidade entre esses doentes é de 66%, de acordo com um levantamento do Projeto UTIs Brasileiras, da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib) e do Epimed, uma ferramenta de análise de dados e desempenho hospitalar.
Apesar das evidências de que a cloroquina funciona para deter o avanço do coronavírus, os estudos ainda são inconclusivos por não ter havido tempo para cumprir os protocolos exigidos pela ciência. Entretanto, em tempos excepcionais, se um remédio com baixo risco pode abreviar o sofrimento de pacientes e evitar que sejam levados à UTI, por que tanta discussão em torno de uma única droga? [Clique aqui e leia os depoimentos de pacientes que utilizaram a cloroquina no tratamento da covid-19.] A médica Cristiana Altino de Almeida, coordenadora de um grupo formado por 43 médicos de diferentes especialidades que elaborou o Protocolo Brasileiro de terapia pré-hospitalar da covid-19, questiona a politização da medicina e o medo que paralisou a população diante de previsões catastróficas sobre o vírus chinês. Diz Cristiana: “Não é possível entender os interesses em condenar a hidroxicloroquina como a droga mais perigosa da medicina ou em condenar à morte milhares de pessoas que não sabem mais do que ter medo. Medo de ficar em casa. Medo de tomar hidroxicloroquina, depois de tanta divulgação de seus efeitos colaterais possíveis mas não frequentes, um medicamento que antes tomariam da maneira como tomam paracetamol?”

Revista Oeste