É imperativo que haja uma
contracorrente conduzida por
famílias que exerçam a proteção
necessária dos filhos
sem enfraquecê-los
Quando o escritor francês Michel Houellebecq afirmou que seu livro Submissão não era uma previsão a respeito da dominação muçulmana na França, mas uma descrição do temor das pessoas diante dessa possibilidade, expôs um dos grandes males atuais: a incapacidade para enfrentar incertezas e inseguranças. Em períodos como este de pandemia, é algo que tende a se agravar.
Com a prosperidade econômica, conforto, mais tempo livre, desenvolvimento científico, médico e farmacológico, muitos que nasceram após a 2ª Guerra alimentaram a ilusão segundo a qual as incertezas poderiam ser neutralizadas (inclusive com drogas) e que a única e melhor maneira de garantir a própria segurança e a de seus familiares era evitar tudo aquilo que pudesse deixá-los em risco.
Se antes os pais protegiam os filhos sem blindá-los da realidade, mostrando-lhes quais eram os riscos de viver em sociedade, ensinando-lhes como poderiam se proteger, o Ocidente viu emergir nas últimas décadas um processo de infantilização de jovens e adultos. Superproteger ou mimar os filhos era uma forma (equivocada) de não repetir a educação rígida que receberam ou de oferecer a eles aquilo que não tiveram.
A superproteção produz indivíduos completamente despreparados para a vida em sociedade
Antes o motivo (legítimo) para a superproteção era a violência urbana das grandes cidades; depois, foram as doenças, o bullying, a possibilidade de fracassar na vida. Segundo esse raciocínio torto, as crianças deveriam ser preservadas de sofrimento físico ou psicológico.
O efeito dessa blindagem paterna foi a incapacidade dos filhos para lidar ou reagir diante da dor. Vimos ainda nascer esse estranhíssimo fenômeno de pais que superprotegem os filhos mas terceirizam a educação deles para as escolas e universidades. E é nos colégios e nas instituições de ensino superior que parte desses jovens, psicologicamente desprotegidos, se entrega à ideologia, às drogas, ao álcool, e vive uma experiência de desumanização cuja mudança na aparência (vestuário, corte e cor de cabelo, tatuagem, piercings) é apenas a face exterior desse processo.
O resultado disso é a formação de pessoas completamente despreparadas para a vida em sociedade, o que também implica uma incapacidade para reconhecer e defender a cultura e a tradição que nos foram legadas. Se é verdade que é antiga a sensação — e constatação — de desencanto e desespero diante do problema da cultura no mundo contemporâneo, as mudanças negativas ocorridas são, de fato, o resultado da perda da integridade, do menosprezo pelos valores espirituais, do desrespeito pela moralidade individual e pública, como observou Mário Vieira de Mello em seu livro Cidadão — Ensaio de Política Filosófica (Topbooks, 1994).
Procuram fazer com que a sociedade seja um experimento permanente de “quebra de tabus”
Combater a autoridade da família, da religião, do ensino era — e continua sendo — o pretexto daqueles cuja estratégia de ação inclui “quebrar tabus”. E o fazem desrespeitando a si mesmos, os outros, as regras, com a finalidade de estabelecer uma nova ética e destruir o tecido social. Perante a pressão no ambiente familiar, houve quem optasse por aprender com os pais a não repetir seus erros, a lapidar seus acertos; mas houve quem recorresse ao caminho mais fácil: fugir, romper, destruir.
Passado o período mais agudo de ruptura dos anos 1960, nas décadas seguintes aqueles jovens e adultos foram envelhecendo e ocupando, alguns deles, espaços de poder nas universidades, na política, no Judiciário, na promotoria, na imprensa. A partir dessas posições privilegiadas, de maneira mais ou menos radical, iniciaram a segunda fase da engenharia social: fazer com que a sociedade fosse um experimento permanente de “quebra de tabus”.
Não é sem razão a projeção de determinados assuntos no debate e de determinadas posturas na política (drogas, aborto, feminismo, prostituição, LGBTXYZfobia, transgêneros, vitimismo social, desarmamento et cetera).
O atual período exige respostas rápidas que não são de ordem exclusivamente políticas
Nesse processo revolucionário e de fragilização dos espíritos juvenis, determinados departamentos de universidades mundo afora tiveram papel relevante e cumprem uma tarefa perniciosa, como mostra, a partir do caso norte-americano, o livro The Coddling of the American Mind: How Good Intentions and Bad Ideas Are Setting Up a Generation for Failure (Penguin Press, 2018), de Jonathan Haidt e Greg Lukianoff. O caso brasileiro merecia um livro que fizesse similares diagnóstico e prognóstico.
Retomando o ponto de Houellebecq que citei no início do artigo, se por um lado temos gerações criadas para ter medo de que algo ruim lhes aconteça, por outro lado, temos pais que terceirizam a educação dos filhos e as criaturas dos anos 1960 que utilizam os estudantes como instrumentos de destruição cultural. Os ataques, principalmente, contra a família e a religião são parte desse processo, pois ambos são obstáculos à revolução, à engenharia social, ao Estado autoritário ou totalitário.
O atual período de isolamento social forçado, de medo diante do que estava por vir, de manifestação na política de espíritos autoritários, de exibição nas redes sociais de espíritos atormentados suscita questões e exige respostas rápidas que não são de ordem exclusivamente políticas.
Porque se é possível que o problema atual se aprofunde, com o agravamento do autoritarismo na política e da doença intelectual de professores e comentaristas profissionais e amadores, com pais agindo de forma ainda mais superprotetora, formando ou alimentando covardes e mimados, também é possível (e imperativo) que haja uma contracorrente conduzida por famílias que exerçam a proteção necessária dos filhos sem enfraquecê-los e com base numa educação que ensine a beleza contida nas inevitáveis incertezas da vida e a dose necessária e responsável de coragem para viver, lutar e morrer.
Revista Oeste