US$ 10 bilhões só em março
deste ano no mundo todo; no
Brasil, das 375 empresas do
setor, 96,8% são pequenas,
com faturamento
de até R$ 3,6 milhões
Pode causar surpresa, mas há um segmento que está passando pela crise econômica gerada pelo novo coronavírus sem prejuízos: a indústria de games. De acordo com a Superdata, empresa do grupo Nielsen, os gastos feitos por consumidores do mundo todo com jogos digitais em março deste ano atingiram a cifra de US$ 10 bilhões, o maior total mensal de todos os tempos e um reflexo direto do isolamento social em prática em boa parte do mundo.
Os dados globais não mostram apenas o potencial do setor, mas também apontam a principal característica dele: games são produtos que nascem de forma internacional. Jogar não requer idioma. Além disso, o game que você comprou pode até ter sido lançado por uma empresa norte-americana, mas ele certamente passou pelas mãos de desenvolvedores, animadores, criadores e demais profissionais de qualquer lugar do mundo.
No Brasil, essa indústria é composta em sua imensa maioria por PMEs (pequenas e médias empresas). Das 375 empresas do ramo no País, cerca de 96,8% têm faturamento abaixo de R$ 3,6 milhões, segundo o II Censo da Indústria Brasileira de Jogos Digitais realizado pela Associação Brasileira de Games (Abragames), em 2018.
Com modelos de negócios diversos, as PMEs nacionais corroboram os dados globais, com lançamentos durante a pandemia e aumento de receita devido à alta do dólar (que ultrapassou a cotação de R$ 5), principal moeda em que ocorrem as transações comerciais do setor.
Modelos de negócios e oportunidades
Para ganhar agilidade e escala, grandes estúdios contratam pequenas empresas para produzir e desenvolver etapas de um novo jogo ou versão de um game já publicado, por exemplo. Outro ponto importante é que criar um game à distância, sem necessariamente ir todos os dias a um estúdio, é uma realidade do mercado. Há empresas em que os funcionários já trabalham de suas casas, muito antes de a pandemia exigir a adoção do home office.
De acordo com o diretor da Abragames Fernando Chamis, as empresas que trabalham com jogos de entretenimento estão ganhando mais no período. “Para aquelas que têm jogos recém-lançados, há um benefício. Com muita gente em casa, o número de jogadores aumenta. Consequentemente, as empresas estão ganhando mais, seja com a venda do jogo, de itens dentro do jogo, com a exibição de anúncio (se tem mais gente jogando, tem mais anúncio sendo exibido). No Brasil, com o dólar mais alto, as empresas estão ganhando mais dinheiro ainda porque tanto as vendas quanto o pagamento de visualização dos anúncios são feitos na moeda”, diz Chamis.
O diretor ainda pontua que o cenário atual traz novas oportunidades. “Para empresas que estavam passando por dificuldades antes desse período, pode ser uma oportunidade de se reinventar. A demanda por jogos corporativos, para promover a integração de equipes à distância, aumentou”, explica. Dono do estúdio WebCore, Chamis completa que em sua empresa a demanda de companhias que buscam orçamentos para fazer jogos internos cresceu quatro vezes.
O trabalho remoto, lembra Chamis, é uma realidade do setor. “A produção de um game não para, diferentemente da de um filme. Não afeta em nada você desenvolver um game em casa. Já existem empresas que trabalham 100% remotas”, diz.
Formas de atuar na indústria de jogos
O estúdio pode desenvolver o jogo do início ao fim e ainda publicá-lo, realizando todas as etapas do processo e, assim, ganhando 100% da receita gerada pelo game. O estúdio também pode criar e desenvolver o game e encontrar uma publicadora para lançá-lo no mercado.
Há publicadoras que querem novos títulos e, apresentando temática específica ou não, buscam estúdios para criá-los. Por fim, muitos estúdios atuam no segmento de external development, que é a criação ou desenvolvimento de etapas específicas de um game (com ou sem propriedade intelectual envolvida).
É o caso do Flux Games Studio, de São Paulo. Há 8 anos no mercado, os primeiros três anos da empresa foram focados no desenvolvimento de jogos eletrônicos por encomenda e não necessariamente de entretenimento. Paulo Luis Santos, CEO do Flux conta que a empresa decidiu, em 2014, focar no mercado internacional de jogos de entretenimento e passou a atuar no desenvolvimento completo de games ou em etapas específicas de jogos produzidos por estúdios maiores.
Em 2015, eles já tinham clientes na Holanda, na Alemanha e na Argentina, entre outros países. Em 2020, a expectativa é que a receita venha de 90% de exportação de trabalhos.
Não tem muito sentido a empresa mirar no mercado local a não ser que ele tenha uma particularidade muito grande. A regra é criar uma propriedade intelectual que possa ser comercializada no mundo inteiro”
Sobre o atual momento de crise global, Santos acredita que ele é oportuno. “Esse é um mercado que atravessa crises com bastante sucesso mesmo diante das adversidades. É o que a gente está vivendo agora. Há visibilidade para quem já tem produtos ou está lançando produtos. O lado bom da crise é que tem mais gente olhando para nós”, acredita.
O trabalho mais recente que o Flux realizou foi uma cena brasileira para o game Avakin Life, que em 2019 atingiu a marca de 1 milhão de usuários ativos por dia. Publicado por uma empresa do Reino Unido e popular no Brasil, Santos conta que a empresa queria contemplar os jogadores brasileiros. “Criamos uma cena brasileira, com roda de samba e baile funk, representando a vida noturna no Sudeste”, conta. A cena entrou no jogo na última quinzena de abril.
Sobre a folga orçamentária que a crise cambial gerou para as empresas de games, Santos diz que o projeto valendo mais em real fez com que ele abrisse quatro vagas de trabalho no estúdio.
A maior prova de que nascer internacional é a melhor forma para se estabelecer na indústria de games vem de Rodrigo Carneiro, CEO do estúdio Puga, localizado em Recife (PE). Fundada em 2013, a empresa quebrou três anos depois.
“Afunilamos o escopo da empresa e de jogadores. Fizemos um game para o Esporte Clube do Recife. Na época, poderíamos ter atacado o mundo, mas atacamos o Brasil, pessoas do Estado de Pernambuco, que são torcedores do Esporte Clube do Recife e, por fim, do time de basquete”, conta.
Em 2017, a empresa decidiu retomar as atividades com a exportação de serviços e, de acordo com Carneiro, a Puga renasceu com força um ano depois, em 2018. O resultado é que, mesmo sem o fim do primeiro semestre de 2020 e em meio a uma pandemia, a empresa já superou o faturamento bruto de 2019. A Puga já exportou serviços para Bélgica, Canadá, Estados Unidos, Inglaterra, entre outros.
“Nesse momento, o mundo demanda produtos de entretenimento. Quem tem projeto para ser lançado agora vai ter uma vantagem comercial absurda, pois as plataformas de publicação estão batendo recorde de usuários jogando e de vendas. O mundo quer mais conteúdo por conta do isolamento social”, acredita Rodrigo, que não pode contar sobre os próximos lançamentos devido a contratos de confidencialidade.
Promover um lançamento em meio à pandemia do coronavírus parece loucura? Não para os sócios do Arvore, que cria conteúdos imersivos e games de realidade virtual. O estúdio é o responsável pelo game Pixel Ripped 1989, um hit do segmento. No dia 23 de abril, eles lançaram a segunda versão do game, o Pixel Ripped 1995.
Rodrigo Terra, um dos sócios da empresa, diz que o cenário da Arvore muda em relação às outras empresas de games neste período de pandemia, principalmente sobre o home office.
“A realidade virtual não existe sem a física. Por mais que a gente crie um produto digital, a gente depende do espaço físico. É diferente de um game que você faz todo o desenvolvimento no computador. O desenvolvedor tem que colocar o óculos de realidade virtual e se mexer na cadeira, levantar, subir, andar. A pandemia trouxe um novo entendimento para a gente. Faz falta o espaço físico em determinadas etapas do processo”, explica.
Festival e projeto de internacionalização
A 8ª edição do BIG Festival, maior evento de games realizado no Brasil, informa que não será cancelado por conta da covid-19. Será realizado de forma online entre os dias 22 e 26 de junho, quando serão promovidas rodadas de negócios para que as empresas nacionais possam ter contato com publishers e players do mercado internacional.
O evento é uma iniciativa da Abragames e da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex-Brasil), que coordena o projeto de internacionalização do setor, o Brasil Games. Para Mariana Gomes, analista de negócios internacionais da Apex-Brasil, mesmo em tempos de pandemia, o projeto não sofrerá alterações.
“Esse mercado não é baseado em fronteira, mas em consumo. Como é um produto que nasce digital, existe essa facilidade de fazer negócios quando eu comparo com outros setores”. A entidade promoveu um estudo em que aponta os Estados Unidos como um dos principais mercados para empresas nacionais fazerem negócios.
“O estudo aponta o constante crescimento de jogos para mobile para o mercado americano. Mesmo com a pandemia, isso não vai mudar. A oportunidade existe.”
Letícia Ginak, O Estado de São Paulo