sexta-feira, 29 de maio de 2020

"Em tempos de crise, sabedoria e paz", por Alexandre Borges

A oração dedicada a Salomão serve de guia e inspiração, não de salvo-conduto ou escudo contra críticas e cobranças

Acredita-se que o Salmo 72, o hino ao “rei prometido”, tenha sido escrito pelo rei Davi para seu filho Salomão, que estava prestes a assumir o trono de Israel em 970 a.C. É um salmo também evocado por doentes em busca de cura. Para Davi, um rei guerreiro e conquistador, o reino de seu filho deveria ser abençoado por Deus e curativo para seu povo, mas pela sabedoria e pela paz. A passagem do trono de Davi para Salomão é um dos momentos mais importantes do Antigo Testamento, iniciando uma dinastia de quatro séculos e uma linhagem que chegará até Jesus.
Os que oram citando o Salmo 72 costumam pedir um reinado de justiça com a graça de Deus para novos governantes. Se foi mesmo criado para Salomão por seu pai, Davi pode se orgulhar do resultado, já que Salomão foi tido como o mais sábio dos reis da Antiguidade, governando Israel por quatro décadas de paz, boas relações com as nações vizinhas, prosperidade e justiça. Evidentemente, é hora de lembrar e refletir sobre seu legado, especialmente nestes tempos de crise e pandemia.
Enquanto contou com a graça de Deus e respeitou os ensinamentos divinos, Salomão liderou a mais admirada gestão de todos os reinados registrados pelo Antigo Testamento, o que incluiu a criação do primeiro Templo de Jerusalém, o centro mais importante da fé judaica e que ainda contava com a mítica Arca da Aliança. O Salmo 72 é, portanto, uma oração que dedica o novo reinado que virá a Deus e, em troca, pede sabedoria, senso de justiça e o poder curativo do Espírito Santo pairando sobre o reino. Pense num país que precisa desesperadamente de tudo isso hoje.
Toda vez que Salomão se distanciava dos ensinamentos e da inspiração de Deus, sofria as consequências
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O presidente que tem Messias no nome é declaradamente cristão e costuma encerrar suas falas com “Deus acima de todos”. Se Bolsonaro ou seus pastores tiverem familiaridade com o Salmo 72, saberão que a arma mais poderosa em tempos turbulentos é a sabedoria, aquela inspirada pelo Altíssimo e que pacifica o coração e traz justiça, paz e a equidade que acalma e ajuda a superar as piores tempestades.
Seguindo o conselho do hino de Salomão, o novo líder viverá longamente, trará “a abundância da paz” com compaixão pelos pobres e mais necessitados. É a esse tipo de reino descrito no Salmo 72 que São Paulo se refere em Romanos 13, uma mensagem do Novo Testamento que costuma ter seu sentido pervertido.
A palavra hebraica para Salomão (Shlomô) tem origem num dos mais conhecidos vocábulos judaicos: Shalom, ou “paz”, um termo familiar não apenas ao povo hebreu mas um patrimônio do mundo todo. Contando com as bênçãos de Deus, o governante que seguir os ensinamentos do patriarca, para quem tem fé, vê aumentar as chances de uma gestão gloriosa. Salomão não foi apenas sábio, ele acumulou tantas riquezas que “as minas do rei Salomão” entraram eternamente no ideário popular. Sabedoria e paz são indissociáveis desde sempre.
A despeito da fama e dos sucessos, o reino de Salomão, como qualquer outro, não foi perfeito. Toda vez que se distanciava dos ensinamentos e da inspiração de Deus, sofria as consequências. Sempre lembrado pela famosa disputa em que, ao ver duas mães disputando um bebê, Salomão opta pela mãe que implora que a criança não seja dividida ao meio, reconhecendo de imediato o verdadeiro amor materno, o rei mostrou que seu poder e fortuna eram meras consequências de sua arma mais poderosa, a sabedoria. E é de sabedoria que o Brasil mais precisa neste momento.
Evocar a sabedoria milenar de Davi e Salomão não é querer dar ares de divindade a um governante ou sugerir uma teocracia

Abomino qualquer relação messiânica de um povo com governos e governantes. Sou visceralmente cético e desconfiado de políticos e burocratas do Estado. Mas, como são necessários para a administração pública e para a salvaguarda do estado democrático de direito, da aplicação das leis e da manutenção da ordem, que sejam ao menos iluminados por Deus e bons conselhos na tarefa e saibam retribuir a confiança e o poder conferidos temporariamente e condicionalmente. E o mais importante que tudo: que lembrem a todo momento que não são deuses.
Evocar a sabedoria milenar de Davi e também de Salomão, autor dos livros sapienciais da Bíblia, não é querer dar ares de divindade a um governante ou sugerir uma teocracia, um erro que muitos cometem por má-fé, literalmente. Quando os hebreus fugiram do faraó do Egito no êxodo, deixando a escravidão e as pragas para trás sob a liderança de Moisés, estavam também rejeitando qualquer governante que se ache um deus, uma heresia que os faraós simbolizavam como poucos.
A oração dedicada a Salomão serve de guia e inspiração, não de salvo-conduto ou escudo contra críticas e cobranças. A busca de um reino inspirado por justiça, sabedoria e paz implica o reconhecimento de que os governantes não são deuses. Pelo contrário, são humanos, pecadores e falhos e assim devem ser tratados, especialmente em tempos de crise. Shalom!
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Alexandre Borges é podcaster e analista político. Seu canal no YouTube Imprensa Livre teve mais de 2 milhões de views no segundo turno da eleição de 2018. É também analista político e colunista da revista Veja, do jornal Gazeta do Povo e autor contratado da Editora Record. Na dio Jovem Pan, foi apresentador do programa 3 em 1, líder de audiência no segmento.

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