sexta-feira, 29 de maio de 2020

"Palmas para quem?", por Theodore Dalrymple

Desconfio fortemente que o aplauso das pessoas na janela e na sacada é, na verdade, para si mesmas. “Veja como sou generoso”

Toda noite, às 8, as pessoas vão até sua janela ou sacada em Paris, onde estou fazendo meu confinamento durante esta grande epidemia, para aplaudir os funcionários dos hospitais que, pondo em risco a si mesmos, estão tratando os pacientes da doença. O gesto me irrita — talvez não profundamente, mas um pouco. Por quê?
Para mim, parece kitsch ou sentimental. Sentimentalismo, disse Oscar Wilde, é desejar ter o luxo de uma emoção sem pagar por isso. As pessoas aplaudindo os profissionais de saúde de sua janela querem sentir que estão expressando sua gratidão sem ter de pagar nada, tangível ou não, por isso. A gratidão deve ser expressa para os indivíduos a quem ela é devida pessoalmente ou com algum custo para aquele que a está expressando, por exemplo, contribuindo com fundos para soldados feridos depois de uma guerra justa. Aplausos enviados pelos ares são como uma mensagem dentro de uma garrafa lançada no oceano. Não significam nada.
Existem outras razões pelas quais eu não gosto do gesto. Ele me parece uma forma leve de bullying. Se você não participa do aplauso, significa que não aprecia ou não valoriza de fato o trabalho das pessoas nos hospitais? Você é ingrato em relação a isso? Para aqueles que têm uma tendência de procurar e encontrar “inimigos do povo”, sem dúvida é o que pareceria. Assim, é mais seguro participar e evitar suspeitas. Participar quando você na verdade não aprova o gesto é, no fim das contas, um comprometimento da integridade tão pequeno que quase não tem importância. Mas a probidade raramente é perdida de uma vez, ela se erode aos poucos.
Os funcionários dos hospitais estão longe de ser os únicos a demonstrar devoção por seu dever em tempos difíceis
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E se você aplaudir, mas parar antes dos outros? A intensidade de sua gratidão pelos profissionais de saúde será medida pela duração de seu aplauso? E quanto ao volume do barulho que você faz? De modo sutil, lembrei-me das cenas depois da morte de Kim Jong-il na Coreia do Norte, quando era perigoso ser pego sem estar chorando histericamente.
Com algumas exceções, gestos públicos desse tipo logo deixam de ser sinceros. E então existe o fato de que o heroísmo sendo aplaudido enquanto é desempenhado logo deixa de ser heroísmo e se torna outra coisa. Você pode aplaudir o heroísmo em retrospecto, mas, se aplaudir um herói por seu heroísmo enquanto ele está sendo heroico, você sutilmente o coloca na direção do exibicionismo. Ele deixa de fazer o que faz com naturalidade, só porque é seu dever fazê-lo, mas porque sabe que será aplaudido e fica em busca do aplauso. O heroísmo é como a excentricidade. Ao se tornar consciente de si mesmo, sua natureza muda e se torna outra coisa. Por exemplo, o verdadeiro excêntrico se comporta de maneira excêntrica porque não lhe ocorre ser diferente. Ele não está deliberadamente tentando se destacar dos demais. A partir do momento em que busca a reputação da excentricidade, ele deixa de ser excêntrico e se torna um personagem — em geral, um personagem ruim.
Além disso, os funcionários dos hospitais estão longe de ser os únicos a demonstrar devoção por seu dever em tempos difíceis. O homem que entrega a correspondência e a mulher no caixa do supermercado são heroicos à sua pequena maneira. Ninguém sai para a sacada nem aparece na janela para aplaudir essas pessoas, mas, na verdade, elas são tão essenciais, talvez mais essenciais, para a continuidade dos vestígios de normalidade quanto os funcionários dos hospitais.
“Acho que mereço um aplauso. Aliás, todos nós merecemos um aplauso”
Desconfio fortemente que, embaixo da superfície, o aplauso das pessoas na janela e na sacada é, na verdade, para si mesmas. “Veja como sou generoso.” “Veja como me comporto bem apesar de meu longo confinamento dentro de casa!” “Algum dia já houve tamanha indulgência em condições difíceis quanto a minha, já houve tanto altruísmo, tanta generosidade?” “Acho que mereço um aplauso. Aliás, todos nós merecemos um aplauso.”
Nesta epidemia, fui um dos sortudos. Já trabalho em casa, então o confinamento é apenas uma alteração relativamente pequena em meu estilo de vida. Estou escrevendo um livro — na verdade, dois — e, de certa forma, o confinamento é uma ajuda para mim, porque há pouca coisa parar tirar a atenção deles. Mas nem todo mundo, longe disso, está nessa situação — ou, pelo menos, espero que não. Se todos em casa estiverem escrevendo dois livros, que esperança posso ter de que algum dos meus vá vender? Um aumento no número de recém-nascidos é esperado para depois do confinamento — bem como, talvez, no número de assassinatos domésticos —, e é possível que haja um aumento similar no número de livros escritos, se não publicados.
Sinto leve vergonha diante das pessoas que vêm fazer entregas à minha porta. Seu trabalho não é muito bem remunerado, e me fazem sentir como um paxá. Em geral, elas vêm de manhã, antes que eu tenha saído da cama. Outro dia, por exemplo, o carteiro chegou com um pacote grande para mim que continha as memórias de Madame Lafarge, a suposta envenenadora do marido em meados do século 19 — o caso é infinitamente fascinante, e ainda existem defensores de sua culpa e de sua inocência. Eram cerca de 11 da manhã e eu estava de pijama. Como o carteiro deve ter me achado um moleque mimado e preguiçoso! Não tive a chance de explicar para ele que, na verdade, eu estava trabalhando na cama fazia três horas. Mas longe de ser rabugento ou desagradável, como seria de esperar caso achasse que estava lidando com um explorador das massas, ele foi extremamente educado e empolgado, e pareceu feliz em fazer seu trabalho.
Tem se falado muito na França, e sem dúvida em toda parte, sobre a divisão da sociedade entre aqueles que têm a possibilidade de ficar em casa durante a epidemia e aqueles que não têm; o primeiro grupo sendo dos privilegiados e afortunados, e o segundo, dos miseráveis e explorados. Se for esse o caso, o segundo grupo, considerando os que encontro, está fazendo um bom trabalho em disfarçar seus sentimentos. Acho que o que de fato importa é como alguém se comporta com as pessoas.
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Theodore Dalrymple é o pseudônimo do psiquiatra britânico Anthony Daniels. Daniels é autor de mais de trinta livros sobre os mais diversos temas. Entre seus clássicos (publicados no Brasil pela editora É Realizações), estão A Vida na Sarjeta, Nossa Cultura, ou O Que Restou Dela e A Faca Entrou. É um nome de destaque global do pensamento conservador contemporâneo. Colabora com frequência para reconhecidos veículos de imprensa, como The New CriterionThe Spectator e City Journal.

Revista Oeste