sexta-feira, 3 de abril de 2020

"Os oportunistas do virus chinês", por Wilson Lima

Revista Oeste
Aconta do socorro emergencial para o combate à pandemia de coronavírus chegará em breve. Será um valor alto, com potencial de desestruturar a economia brasileira por até cinco anos. Aumento de impostos, expansão da dívida, disparada do desemprego e inflação serão algumas das consequências caso o pacotaço de ajuda, até agora da ordem de R$750 bilhões, seja formulado do modo como querem governadores, Fiesp, boa parte da imprensa e até mesmo a opinião pública — esta, por pura incompreensão de questões relacionadas à política fiscal. A equipe econômica do ministro Paulo Guedes empenha-se para inserir racionalidade na equação. Mas os oportunistas do vírus estão operando com voracidade.
Talvez por trabalhar 153 dias por ano para pagar impostos, o brasileiro habitou-se a imaginar o Tesouro Nacional como um ente todo-poderoso, dono de recursos e instrumentos para socorrer os desassistidos, as empresas, os pequenos e médios empreendedores em qualquer situação difícil. Sim, o quadro atual é calamitoso. Sim, o Estado precisa atuar. Mas não se pode negar a realidade. E a realidade é que construímos um Estado disfuncional. Temos uma carga tributária maior que a dos Estados Unidos, do Chile e do Reino Unido e um Índice de Desenvolvimento Humano inferior ao desses países. Gastamos mais com servidores públicos do que com investimentos — são quase 14% do PIB ante 8%. Não topamos repactuar “direitos adquiridos”. Queremos ampliar programas sociais. De onde virá esse dinheiro?
Os governadores e seus secretários de Fazenda conhecem bem os números e sabem das limitações da União, orçamentárias e legais. No entanto, em tempos desesperados, e em ano eleitoral, por que não aproveitar a oportunidade para empurrar toda a conta para o governo federal e ainda faturar politicamente?
O Poder Judiciário segue na mesma toada. Alegando situação de emergência, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes autorizou, até o fechamento desta reportagem, a suspensão do pagamento das dívidas com a União durante seis meses por parte de doze estados. As decisões (no plural) de Moraes geram uma perda de caixa de R$10,3 bilhões. Para conseguir o benefício, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), alegou que seu Estado deixará de arrecadar R$10 bilhões este ano. Não apresentou, porém, ajustes que serão feitos no próprio orçamento.
No Rio de Janeiro, a situação é dramática. Desde 2016, o Estado fica acima do limite da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
Em vez de cortar gastos e fazer um amplo enxugamento da máquina administrativa, o governador Wilson Witzel (PSC) assumiu como uma de suas principais medidas a reivindicação de recursos do Fundo da Lava Jato para reforçar o caixa. Conseguiu arrancar no ano passado R$208 milhões.
A Bahia, governada pelo petista Rui Costa, chuta os gastos com a covid-19 em R$ 335 milhões, segundo manifestação da Procuradoria-Geral do Estado ao STF. Costa conseguiu quase tudo. A renúncia fiscal já obtida com o governo federal chegará a aproximadamente R$ 300 milhões em seis meses.
Ou seja: de nada adianta o Tesouro Nacional instituir uma avaliação objetiva para verificar qual Estado tem mais chance de resolver seus problemas de insolvência, se o único ente da Federação que conseguiu a nota máxima no início de 2019 foi o Espírito Santo, comandado pelo governador Renato Casagrande (PSB). Os outros estados tiveram desempenho medíocre ou muito abaixo da média, como aconteceu com os governos de Doria e Witzel.
No mesmo ritmo dos governos estaduais, assembleias legislativas e câmaras de vereadores têm aprovado decretos de estado de calamidade pública — permitindo, portanto, gastos acima dos limites impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Em Sergipe, por exemplo, prefeitos de 40 municípios recorreram à medida. Até a última quarta-feira, dia 1º de abril, apenas três tinham registro de casos de coronavírus: Aracaju, Propriá e Nossa Senhora da Glória.
Na pequena cidade de Pedra Branca do Amapari, a 200 quilômetros de Macapá (AP), a prefeita Beth Pelaes (MDB) aproveitou-se da crise para iniciar, extraoficialmente, sua campanha à reeleição. Dispensou o processo licitatório para comprar duas mil cestas básicas a serem destinadas a estudantes da rede pública. O custo foi de R$ 296 mil e o impacto do gesto é significativo no município de 13 mil habitantes.
Dos grotões do país à Avenida Paulista, todas as articulações são no sentido de aumentar a pressão sobre a equipe econômica do ministro Paulo Guedes. A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) quer, entre várias outras medidas, aumento dos recursos do Programa de Parceria e Investimentos (PPI), carência para o pagamento de impostos e dívidas, suspensão de cobranças junto aos bancos e manutenção dos contratos de obras públicas — com os devidos pagamentos honrados pelos governos federal e estaduais.

Algum juízo, por favor

Sob alta pressão, o secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, tenta preservar as finanças públicas dos ataques oportunistas. Mansueto trabalha para cercar-se de um aparato regulatório que impeça governadores e prefeitos de rumar para uma farra fiscal. É uma preocupação relevante, dado o histórico do país. Um bom exemplo é o tal PPI, o programa que a Fiesp quer ver ainda mais robusto.
Mas o que era circunstancial não apenas tornou-se perene como cresceu exponencialmente. No ano passado, o PPI custou R$442 bilhões.
Numa de suas visitas ao Congresso, Mansueto foi cercado por um grupo de parlamentares que reivindicava uma ajuda de R$300 bilhões para pequenas e médias empresas. Sem dúvida, esses empreendedores precisarão de apoio. Mas há números a observar: se todo o ecossistema de negócios das pequenas e médias soma R$500 bilhões, como um socorro extraordinário custaria 60% do total?
O que se vê no Parlamento, vê-se também nos estados. A maior parte dos governadores tem focado no discurso populista fácil com claros propósitos eleitorais. “Alguns governadores oportunistas, com ambições para sentar na cadeira presidencial em 2022, têm avançado com muita sede ao pode”, considera o deputado federal Alexis Fonteyne (Novo-SP).
Brasil fragmentado
Se o pacote de emergência sair como querem governadores, prefeitos e Fiesp, a conta será catastrófica para a União.
“Vai ter muita gente aproveitadora que deixará a austeridade de lado. Obviamente, agora, é ruim falar em austeridade. Mas não há por que deixar de ser responsável sob a justificativa de que enfrentamos uma situação grave”, completa Fonteyne.
A deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP), da base governista, recomenda que os brasileiros monitorem as despesas. “O cidadão de bem precisa estar mais atento. Assim como existem pessoas bem-intencionadas, existem os mal-intencionados que vão aproveitar essa pandemia e o excesso do dinheiro do contribuinte para fazer mal uso dos recursos”, diz ela.

A lógica da omissão

A relação tensa entre estados e União existe desde os anos da Primeira República, naquilo que os manuais de história chamam de “política dos governadores” – ou, se quisermos um termo mais apropriado e neutro, a “política dos estados”. Ela foi criada pelo presidente Campos Salles em 1898 e consistia em um caminho oposto àquele pretendido pela liderança liberal surgida após a queda da monarquia, em 1889. Mesmo com a presença quase onipresente do Exército, ela ainda conseguia influenciar a opinião pública a respeito de procedimentos de descentralização de poder que flexibilizariam a representação popular no governo.
Contudo, essa outra forma de praticar política privilegiou o interesse daquele grupo que seria apelidado posteriormente de “oligarquias estaduais”. Na análise de Antonio Paim em Momentos Decisivos da História do Brasil, essa classificação se deve à hipótese de que grupos econômicos seriam os verdadeiros responsáveis pelas decisões federais — a famosa “política do café com leite”, baseada na alternância entre São Paulo e Minas Gerais.
A exceção sempre foi São Paulo, que, por ter uma economia autônoma em relação aos outros grupos de poder, era capaz de se contrapor à União. Naquela época, o país em geral era muito pobre. Apenas para efeitos de comparação: a renda per capita do Brasil era por volta de US$ 50, algo muito abaixo do padrão estabelecido então pelas Nações Unidas, que estimava um valor acima de US$ 400 para que uma nação fosse classificada como desenvolvida. Um dos motivos para isso ocorrer é que as burocracias estaduais procuraram naturalmente fortalecer e controlar entre seus membros as atividades econômicas mais relevantes – em especial a consolidação da produção cafeeira e o surto de industrialização que se seguiu à Primeira Guerra Mundial, impedindo a redistribuição de renda para o resto da sociedade.
A tensão entre governadores e governo federal crescia com o passar dos anos. Para as historiadoras Lilia Schwarcz e Heloisa Starling em Brasil – Uma Biografia, ela devia-se ao fato de que, na “política do café com leite”, os chefes dos estados reconheciam a plena autonomia das elites regionais, faziam vista grossa aos exageros cometidos por elas para elegerem as bancadas estaduais dentro da máquina do governo, acenavam com benesses do Tesouro e apresentavam a fatura — no caso, as unidades da federação deveriam agir coesas e em consonância com as decisões do poder central. Se porventura houvesse algum conflito, os estados resolveriam entre si — e daí nascia uma “lógica da omissão”, segundo a qual se todos são responsáveis pelas suas contas, então ninguém de fato o é.
Nessa falta de responsabilidade coletiva, a distribuição de representação popular (e, portanto, de poder efetivo) era decidida por meio da hierarquia da unidade federativa mais importante.
Assim, a estabilidade da República estava garantia por três procedimentos principais: “o empenho dos governos estaduais em manter o conflito político confinado à esfera regional; reconhecimento por parte do governo federal da plena soberania dos estados no exercício da política interna; manutenção de um processo eleitoral em que, apesar dos mecanismos políticos que controlavam as disputas locais, as fraudes continuavam frequentes, graças à concentração de poder na figura do ‘coronel’, o dono supremo da propriedade rural”. Em suma: não havia a menor possibilidade de representatividade popular — e o que se vivia então era a percepção de que o país, como diziam alguns satiristas da época, “não passava de uma grande fazenda”.
Essa fazenda seria queimada com a Revolução de 1930, depois que o presidente paulista Washington Luís não quis cumprir o acordo “café com leite” e colocou como sucessor o conterrâneo Júlio Prestes, em vez do já esperado governador mineiro Antonio Carlos Ribeiro de Andrade.
Para a surpresa de muitos que viviam aquele cenário, descobriu-se que corria por fora da disputa de poder um outro político — o gaúcho Getúlio Vargas (que foi ministro da Fazenda de Luís).
crash da bolsa de Nova York contribuiu ainda mais para o clima tenso, mesmo que ele já tinha sido esboçado antes devido à superprodução do café e sua consequente supervalorização por meio de financiamentos públicos elevados. Para Paim, com a falência financeira levando o país à beira do abismo, o advento de Vargas vai se contrapor ao modelo consagrado da “política dos estados”, irá suplantá-lo e, como resultado, constituirá um Estado nacional unitário, cuja primeira meta era impedir a desorganização que transformava cada Estado em um país à parte, os quais visavam apenas os interesses regionais ou os da política partidária. Segundo um dos apoiadores do governo provisório comandado pelo gaúcho e estabelecido após 1930, Gustavo Capanema, “não há exagero em dizer que as unidades da federação se assemelhavam a verdadeiros feudos, onde as conveniências da orientação particularista dos governos davam margem a empirismos e abusos lamentáveis nos serviços públicos”.
O modelo de unidade estabelecido por Vargas após a Revolução seria dominante no Brasil, sobrevivendo ao Estado Novo, à reabertura, à era de Juscelino Kubitscheck e à ditadura militar, até a Nova República contemporânea. Com a eleição de Jair Bolsonaro em 2018, é nítido que os governadores se aproveitaram da pressão exercida pela esquerda radical a respeito da crise do coronavírus para impedir o retorno de um autêntico projeto de liberalismo, ao mesmo tempo em que exigem do Executivo formas alternativas de arrecadação, para dizer o mínimo, e assim mitigarem as dívidas públicas consolidadas.

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