sexta-feira, 3 de abril de 2020

"Onde estão os inimigos", por J.R. Guzzo

A realidade financeira mostrada a seguir é um retrato perfeito de quem são, realmente, as pessoas que estão mandando em nós neste momento de coronavírus e de angústia. As cifras são de São Paulo – justamente de São Paulo, onde ocorreram cerca de 3.506 casos, dos quase 8.000 registrados no Brasil até o dia 2º. de abril, e 188 das 299 mortes atribuídas à epidemia. Mais: São Paulo é o palco do maior espetáculo de fogos de artifício montado em torno do problema, sob a direção do governador João Dória e com o apoio encantado da classe política, dos crentes no “isolamento horizontal” em modo extremo e da mídia em geral. A realidade citada na primeira linha acaba com as mínimas possibilidades de se levar a sério, por um minuto que seja, a sinceridade dos governantes paulistas em sua discurseira sobre o vírus. Vamos a ela. O Orçamento da Assembleia Legislativa de São Paulo, em 2019 foi de 1 bilhão e 300 milhões de reais, nem um centavo a menos. Precisa dizer mais alguma coisa?
É o que a linguagem popular chama de “prova provada”. Nada do que os políticos dizem é verdade. Tudo o que eles têm é roubado. Não é roubo à mão armada, é claro, porque eles não precisam correr os riscos que correm os assaltantes comuns — roubam do contribuinte em geral, por atacado, e roubam escrevendo leis. No caso, esse assalto faz da Assembleia de São Paulo a mais cara de todo o Brasil, segundo reportagem que O Estado de S.Paulo publicou, com esses números, em março do ano passado. Tanto o governador como os deputados podem dizer que o orçamento de 2019 não foi feito por eles, mas pela turma que veio antes. Tudo bem. Mas agora, fala a sério: alguém acredita que eles estejam contra? E o que estão fazendo para reduzir essa monstruosidade pela metade, por exemplo, para o ano que vem?
Todos eles pregam, de joelhos, que a população faça “sacrifícios” para enfrentar a epidemia. Mas, eles mesmos, que sacrifícios farão, de verdade?
Não vão fazer sacrifício nenhum. O governador, pelo menos, abriu mão de receber os R$18 mil por mês do salário a que tem direito por exercer o cargo. Os outros não soltam nem um miserável tostão. Só os deputados estaduais de São Paulo têm essa conduta? Imagine. O Brasil seria um país de bem com a vida se fosse assim. Nenhum político dá nada. O pior de tudo é o Congresso Nacional. Ali, deputados e senadores preferem morrer a ceder para o combate à epidemia um único centavo dos bilhões que roubaram para formar os fundos “Eleitoral” e “Partidário”.
O comportamento dessa gente toda, na vida prática, é uma das demonstrações mais exemplares de como o Brasil está dividido: a classe que manda e todos os demais cidadãos, que carregam nas costas, há décadas, o peso de sustentar os seus senhores. São eles, e ninguém mais, os verdadeiros inimigos do país. Nem num momento como o de hoje, uma emergência nacional clara e que está devastando justamente a vida dos mais pobres, eles são capazes de abrir mão do mínimo benefício material que possuem. São os primeiros, é claro, a exigir que “o governo federal” solte sabe lá Deus quantos bilhões para “ajudar os menos favorecidos”, ou quem mais que lhes interesse agradar — como se “o governo” tivesse um real de dinheiro próprio para dar a alguém. Tudo, absolutamente tudo, sairá do bolso do contribuinte.
São eles, todos esses grandes marechais-de-campo do combate à covid-19, que se recusam ao mínimo gesto de solidariedade, os que mais atiçam o assalto à propriedade privada e ao estado de direito.
Proíbem-se as empresas de demitir, mesmo que elas não consigam faturar nada por causa da paralisação da economia imposta pelas autoridades. Confisquem mercadorias dentro das fábricas. Fechem tudo o que pode ser fechado. Prendam, com algemas, cidadãos que saem de casa — mesmo que seja para ganhar a sua vida.
Tudo isso só se tornou possível porque a justiça brasileira, em grande parte, parou de funcionar. Ou se recusa a agir, ou então passou, abertamente, para o lado do arbítrio, da ilegalidade e da desordem. Onde estão os nossos 18 mil juízes, mais os desembargadores, ministros de tribunais superiores, membros do Ministério Público? Todos têm o dever de assegurar o cumprimento da lei, pois sem isso não há estado de direito em país nenhum. Mas entraram, eles próprios, em quarentena. Não adianta procurar quase nenhum magistrado no Brasil de hoje para defender as suas liberdades e os seus direitos constitucionais — você vai procurar, mas eles não estarão lá. Esses mesmos, que até outro dia entravam em colapso nervoso para proteger “a democracia” dos “abusos da autoridade”, sumiram. Aceitam, ou incentivam, qualquer ato totalitário se for para “combater a epidemia” e promover o “bem comum”. Um fiscal de prefeitura de Arroio dos Ratos manda mais do que eles. Uma sociedade passa a viver fora da lei quando a lei é a vontade dos que mandam.
É para isso que o Brasil está caminhando. Viver sem lei é viver sem leis, ensinava o jurista americano Thurgood Marshall. Viver em anarquia é viver em anarquia. Nenhuma causa pode servir de desculpa para uma coisa ou para a outra, dizia ele.
O desastre fica tanto pior quando mais regras eles inventam, e quanto mais gente aparece para mandar em você — no caso do coronavírus brasileiro, são 27 governadores, 5.550 prefeitos, cerca de 60 mil vereadores, um número incalculável de fiscais. Essa multidão é a pior ameaça à legalidade que o Brasil enfrenta hoje. É bom prestar atenção nisso. A vida sem lei é um hábito que se pega rápido, tanto quanto um vírus. Ele tende a se auto perpetuar. E costuma se expandir por conta própria, sem pedir autorização a ninguém.

Revista Oeste