Por motivos familiares, estou passando esse período de isolamento em Paris. Talvez o leitor veja isso como um golpe de sorte, considerando todos os lugares no mundo onde eu poderia estar confinado. Mas, quando não se pode ir a lugar algum, na verdade não importa muito onde você está. Afora lojas que vendem alimentos e farmácias, está tudo fechado. Até mesmo o Cemitério do Père Lachaise, cuja entrada fica a uns noventa metros do meu apartamento, está fechado — exceto para enterros.
Adoro caminhar por cemitérios e, quando estou em Paris, tento dar uma volta no Père Lachaise todo dia. O túmulo mais devotadamente cuidado ali é o de Allan Kardec, espírita francês, cujo nome real é Hippolyte Léon Denizard Rivail. São seus seguidores brasileiros que mantêm o sepulcro o mais visivelmente decorado em um cemitério no qual 1 milhão de pessoas estão enterradas. Só fui ouvir falar de Kardec bem tarde na vida e descobri, para meu espanto, que não só ele tem mais fiéis no Brasil do que em qualquer outro lugar, mas a maior parte da literatura sobre ele está em português.

Túmulo de Allan Kardec (1804-1869) no Cemitério de Père Lachaise, mantido sempre bem ornamentado graças aos espíritas brasileiros. No alto, o Arco do Triunfo sem visitantes durante a pandemia de coronavírus
Em Paris, temos autorização para sair do confinamento uma vez por dia, para fazer as compras necessárias ou tomar um pouco de ar. Não podemos ir além de 1 quilômetro de nossa residência nem demorar mais que uma hora. É preciso portar um laissez-passer — uma espécie de autorização — impresso, com data e hora, e um policial pode pedir para vê-lo a qualquer momento. Se não estivermos com ele, ou se seu preenchimento estiver incorreto, poderemos receber uma multa de 135 euros no ato, que pode aumentar consideravelmente em caso de reincidência. Também é preciso manter uma distância de pelo menos 2 metros de qualquer pessoa que não more na mesma casa.
Deixo para os virologistas e epidemiologistas decidirem se todas essas regulamentações foram, e são, necessárias e eficazes. Todo mundo tem suas próprias ideias, e eu tenho as minhas. Em vez disso, vou descrever uma pequena cena que observei ontem quando saí em busca de um pouco de ar fresco.
Em dado momento, eles interromperam esse importante trabalho para gritar com duas pessoas que transitavam ali perto sem guardar a distância de 2 metros, como as regulamentações exigiam que fizessem. O tom dos policiais (um deles era mulher) não era de servidores públicos, mas de senhores do público. Na melhor das hipóteses, eles falavam como professores de jardim de infância raivosos tentando controlar crianças pequenas e indomáveis durante uma excursão escolar. “Mantenham a distância de 2 metros”, gritavam para os travessos membros da população.
O que os policiais pareciam não compreender é que, ao exigir o laissez-passer dos que estavam na rua, eles se colocavam a uma distância de menos de 25 a 50 centímetros deles e, além disso, não estavam usando máscara. Assim, havia uma regra para a interação das pessoas entre si, e outra para as interações com a polícia.
Imagino que seja possível fazer algum tipo de racionalização para justificar essa diferenciação (até a pessoa mais idiota é capaz de racionalizar, o que sugere que a racionalização é uma das faculdades mentais humanas mais básicas). Quanto mais vezes e quanto mais tempo você passa perto dos demais, maior probabilidade tem de se infectar. Se você seguir as regras de distanciamento social, exceto quando a polícia pede seu laissez-passer, é improvável que seja infectado. E, assim como quem dirige embriagado, o mesmo vale para a regra do distanciamento social: se uma pessoa é pega dirigindo enquanto está bêbada, ela tem maior probabilidade de dirigir bêbada com frequência, da mesma forma que uma pessoa que, por acaso, a polícia venha a flagrar não obedecendo às regras tem maior probabilidade de não seguir as regras que as demais.
Além disso, se não houvesse policiais para exigir o cumprimento das regras, é mais provável que elas fossem desobedecidas com maior frequência. (Não estou preocupado, aqui, com sua eficácia.) Assim, a diferença no cumprimento das regras entre a interação de membros da população e com policiais é justificada.
Mesmo assim, a conduta da polícia, que talvez não tenha feito essa constatação se lhe fosse pedido, era de uma pessoa que exige que você “Faça o que eu digo, não o que eu faço!” — uma atitude que quase com certeza gera resistência mesmo quando o que está sendo exigido é a coisa certa a fazer e está de acordo com os interesses da pessoa de quem está sendo exigido.
Pela expressão no rosto dele, e por seus movimentos, eu diria que ele não só estava bêbado, como era alcoólatra. Algumas pessoas foram ajudar, enquanto outras tentaram chamar a atenção da polícia — que naquele momento estava procurando indícios de incompletude nos documentos, o que seria melhor para a aplicação da multa e, portanto, um pouco melhor para a situação das finanças do Estado.
De início, como estavam de costas para o homem caído, os policiais ignoraram os pedidos de ajuda, mas presumiu-se que a assistência deles era aquilo de que se precisava naquele caso. Depois de um tempo, eles se dirigiram até o homem, colocaram-no de pé e, após restaurar a integridade do cidadão, foram embora numa viatura.
Achei essa cena, que não deve ter durado mais do que três minutos, esclarecedora. Primeiro, vimos o público não conseguindo reagir a um exercício desagradável de autoridade policial. Então, vimos o público recorrendo à polícia quase instintivamente, como crianças recorrem aos pais
Se eu, como um reles membro da população, tivesse falado com as duas pessoas que não estavam a 2 metros de distância usando o mesmo tom que os policiais, teria sido, ao contrário da polícia, atacado por eles. Mas, em comparação, ninguém se voltou para mim para perguntar o que fazer com o bêbado caído. Desse modo, nós tememos nossos governantes e recorremos a eles em busca de proteção.
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Theodore Dalrymple é o pseudônimo do psiquiatra britânico Anthony Daniels. É autor de mais de trinta livros sobre os mais diversos temas. Entre seus clássicos (publicados no Brasil pela editora É Realizações), estão A Vida na Sarjeta, Nossa Cultura, ou O que Restou Dela e A Faca Entrou. É um nome de destaque global do pensamento conservador contemporâneo. Colabora com frequência para reconhecidos veículos de imprensa, como The New Criterion, The Spectator e City Journal.
Revista Oeste